23/03/2023
 
 
Angela Merkel. Um legado em questão

Angela Merkel. Um legado em questão

Pedro Miranda 07/07/2022 16:44

Numa biografia que, sendo embora elogiosa, não faz a hagiografia da líder alemã, Katie Marton traça o perfil de uma mulher que forçou a Alemanha a expiar os crimes do seu passado.

Muitas notas biográficas sobre Angela Merkel tendem a principiar com a indicação de que é filha de um pastor luterano. Falta, no entanto, lembrar o essencial: essa condição dá-se no interior de um estado ateu (RDA), capitis diminutio não apenas impedindo a mãe de Angie (no estatuto de esposa do pastor) de prosseguir a carreira de professora de Inglês, como implicando que, nos bancos da escola, Angela, enquanto alguém que recebia instrução cristã, fosse obrigada a levantar-se (distinguir-se, com sentido pejorativo implícito) para o afirmar diante da turma. Mais, ainda: o pai de Merkel vai, voluntariamente, de Oeste para Leste, na Alemanha, visando evangelizar (em) território difícil. E virá a acreditar - até ao esmagamento da Primavera de Praga, que lhe desfará ilusões - na possibilidade de uma certa compatibilidade de objetivos, no plano social, entre cristianismo e marxismo. Os pais de Merkel, ideologicamente à esquerda (de Angela), nunca votarão na sua filha. A mãe, com quem Merkel teria uma grande proximidade, manter-se-ia fiel ao SPD ao longo da vida. Angela, para sobreviver na RDA, será obrigada à flexibilidade de, em simultâneo, obedecer ao regime e integrar algumas das suas estruturas - nomeadamente, as criadas para os jovens -, e, bem assim, ser uma empenhada devota cristã (protestante). Tal postura, com o seu quê de dissimulação ou camuflagem (note-se que a Stasi tinha um informador por cada 63 pessoas; penetrou, pois, mais profundamente na sociedade do que a Gestapo), viria a colar-se-lhe como uma segunda pele, travando, sempre, na sua trajetória de vida e na política, arrebatamentos e ousadias. 

Fortemente marcada pelo passado alemão de meados do século XX (o nazismo, evidentemente), recusou, para lá da falta de vocação, a eloquência como registo. Cética quanto ao uso da palavra (com o perigo de arrastar multidões para o pior, como sucedeu com o histrião que incendiou cervejarias, e outros auditórios mais seletos, nos anos 30), foi uma aluna brilhante - recebeu prémios, por exemplo, pelo seu desempenho na cadeira de Russo, na qual se ensinava aquela língua/cultura, que muito continuou a admirar até aos nossos dias -, dir-se-ia sobredotada mesmo (a sua tese de doutoramento em Física foi amplamente elogiada e editada nas melhores publicações académicas internacionais), procurando decompor, até ao mais ínfimo pormenor, os problemas - e tentando encontrar-lhes solução.

Dominando, amplamente, os dossiers, nomeadamente, nos 16 anos em que liderou o executivo alemão e um Ocidente desprovido de figuras maiores, impressionando com os detalhes que conhecia de cor de cada tema em deliberação os dirigentes de outros países, e decidindo sempre no limite dos prazos estabelecidos, modo, igualmente, de procurar persuadir e levar a decisão para o ponto pretendido, sem, ao mesmo tempo, querer uma Alemanha percecionada como dominadora, ‘demasiado forte’ para liderar, com ‘demasiada História’ em cima para a sua liderança internacional/europeia, explicitada sem matizes, ser aceitável.

Se Merkel foi uma líder política que reclamou o primado da razão, em um momento de mudança de época em que os valores de fiabilidade, de confirmação de informação, de confiança na ciência foram sendo erodidos por outros atores políticos emergentes na cena internacional - e esse respeito pelo conhecimento, pelo valor da verdade, pela procura de uma fundamentação bastante, sólida das suas decisões adquire não pouca relevância -, por outro lado, no olhar de Katie Marton, em A Chanceler. A notável odisseia de Angela Merkel (Desassossego, 2022) Merkel é não apenas uma personalidade muito marcada por uma forte austeridade, sobriedade, frugalidade (com que fora educada e em que procuraria viver, também por opção), a qual imprimiria certo “moralismo” (aqui entendido como ato de julgar moralmente os outros, não sem facilidade nesse juízo) ao seu agir (político também), como lhe acrescentaria - aquelas características declinariam em  falta de empatia com as populações de muitos países europeus no momento em que, na sequência da falência do Lehman Brothers, os sistemas financeiros interligados, e várias dívidas públicas galopantes, colocaram muitos setores da sociedade num nível de precariedade absoluta.

Quando Merkel visitou Atenas, há já mais de uma década, ficou chocada com os cartazes que a retratavam como um Hitler de saias - ela que fizera da obrigação de recordar, em permanência, o passado nazi da Alemanha, bem como a solidariedade com o povo judeu, como absoluto no espaço público alemão e nas políticas que conduziu. Mas, na realidade, a líder do governo alemão não abriu as portas, e nisso devia ter atentado à responsabilização da banca alemã (que de prudente e responsável, em muitos casos, não o fora na sua relação com a Grécia) e impôs medidas e programas ou resgates draconianos em termos sociais e em diferentes latitudes. Foi incapaz de perceber as concretas e quotidianas consequências das mesmas, uma espécie de ‘expiação’ necessária face à dívida contraída, sendo que, valha ainda a verdade, foi ela a impedir o “borda fora” da Grécia da zona euro, o qual lhe era solicitada pelos falcões do seu governo e do seu partido - e este aspeto foi quase que rasurado da História. 

Se houve momento, diversamente, em que o seu vínculo cristão falou mais alto - o seu primeiro marido, diria, mesmo, que foi a única vez, nos seus mandatos, em que tal sucedeu, aplaudindo a sua coragem ‘evangélica’ - tal deu-se no momento em que decidiu abrir as fronteiras a muitas centenas de milhares de refugiados, nomeadamente advindos da Síria (em 2015).

Apesar das críticas de muitos, na Alemanha (desde logo), essa hospitalidade, apontada por Merkel como um ‘dever em si mesmo’, verdadeiro ‘imperativo categórico’, também não deve ser encarada, exclusivamente, em bases antitéticas: num país em que os nascimentos rareiam, as necessidades crescentes e prementes de mão de obra tornaram a opção da chanceler como algo que satisfez tanto os ‘valores’ mais elevados, como os ‘interesses’ mais pragmáticos - ainda que, como tantas vezes em política, a decisão de Merkel de ‘portas abertas’ tenha sido ensejo de múltiplas críticas de homólogos internacionais, pela ausência de consulta e unilateralidade na decisão tomada. 

Todavia, é difícil tomar como boas críticas por não se acolher os que mais precisam, os descartados da Terra, e…por o fazer convitamente, num tempo de urgência. Acrescente-se que o livro de Marton, cuja interpretação da figura e ação política de Merkel é, globalmente, marcado por um olhar elogioso, autoriza a simultânea leitura de censura na sua atuação durante a crise da zona euro e de franco encómio na sua abordagem da chegada de muitos milhares de refugiados à Alemanha em 2015, não se descortinando contradição alguma, ao contrário do que tantas vezes se arguiu, nesta avaliação diversa de momentos diferentes nas políticas prosseguidas por Merkel nos seus mandatos. 

Merkel, a mulher que ascendeu politicamente pela mão de Helmut Kohl - que, numa sociedade conservadora, sempre a tratara como “a minha menina”; deste conservadorismo também dará conta o facto de Merkel ser tratada, e até cantada, como “Mutti”, mãezinha, o papel a que se confinavam, ou primacialmente se entendia ser dever feminino, pelos seus concidadãos, constantemente, ao longo da década e meia em que governou a Alemanha. E Merkel faria da descrição uma arma, num mundo (político) muito masculino e, sobretudo, fortemente centrado e dividido por lutas de egos, e “assassinaria o pai” num artigo de jornal no qual solicitava que Kohl se afastasse da vida política (depois de um conjunto de escândalos de corrupção em seu redor). 

Uma mulher que não gostava particularmente da companhia de outros políticos, Merkel via-os como cinzentões e desinteressantes, preferindo rodear-se de artistas e criadores, ciosa de uma privacidade mantida com mão de ferro, tributária do valor “humildade” como o mais relevante na sua pauta axiológica. Apreciadora de música clássica (não faltava a Bayreuth, com o marido), teria uma palavra e um gesto marcantes na visita ao hospital a Navalny tanto quanto, e logo a seguir, por contraponto, uma gélida aposta na “real politik” na imediata prossecução do “Nord Stream 2” (o qual Merkel foi justificando de diferentes formas, incluindo a necessidade de satisfazer as demandas empresariais daqueles que a apoiavam). Sem embargo de se ter oposto ao alargamento da NATO até à Ucrânia; mau grado, segundo Katie Marton, Putin não deixasse de a ver como adversária à altura e como única dirigente, na UE, a merecer respeito e consideração. A este respeito será especialmente útil ler os capítulos do ensaio de Marton sobre Merkel, a propósito dos idos de 2014, em que, a dado momento, parece que estamos a ler os jornais dos nossos dias a propósito da guerra de agressão, da Rússia de Putin, à Ucrânia.

Embora Merkel tivesse insistido quando Obama desistira face às mentiras do Kremlin, talvez carregue, até ao fim dos dias, o fardo do ramo de flores com que o Presidente da Federação Russa a brindou, aquando da sua despedida da cena política (alemã e mundial, até ver). A incompreensão do Ocidente, e de quem o liderou, do que o dirigente russo (e sua clique) representava, e a resposta daquele (com rosas), em modo “cínico sublime” tendem, hoje por hoje, a, muito naturalmente, sobrelevar numa avaliação de um legado que teria tudo para ser bem mais complexo.   

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