Os qualificativos que as suas mãos já receberam por parte dos autores que integraram o catálogo das editoras que percorreu – sapientes, exigentes, selectivas, laboriosas – representariam um bom arranque para um dicionário da competência. Ao público português levou alguns dos grandes nomes da literatura universal, então ausentes das livrarias nacionais. Umberto Eco é apenas um exemplo. Mas não esqueceu os autores portugueses, nem a poesia, tendo publicado nomes como Eduardo Guerra Carneiro, Albano Martins, Vasco Graça Moura ou Luís Filipe Castro Mendes.
Com o jornalista, editor e designer gráfico Rogério Petinga, esse decisivo nome cujos trabalhos marcaram a edição portuguesa dos anos 80 e 90, também co-fundador da Quetzal, formou um dos mais conhecidos pares da edição em Portugal.
Creio que foi aluna do Vitorino Nemésio, verdade?
Sim, fui aluna dele, na cadeira de Cultura Portuguesa, e depois editora. Era um professor muito disperso, nunca tinha um plano: começava numa ponta e acabava noutra completamente diferente, mas depois tudo se unia, tudo fazia sentido. As suas aulas eram extremamente interessantes. Depois, conhecemo-nos melhor na Bertrand. O Nemésio era administrador da Bertrand, na altura, embora fosse um administrador mais que longínquo, era um título. Fui muito amiga dele até ele morrer. Chegou a fazer-me um poema que me descreve, com graça. Eu passava-lhe algumas coisas à máquina. O Nemésio teve aquela grande paixão tardia e tinha vergonha de pedir à filha para ela lhe passar os poemas eróticos. Ficava embaraçado e então pedia-me a mim.
Tinham uma relação muito próxima?
Sim, muito. E depois um editor quando publica muito um autor, acaba por ficar ligado também à família desse autor. Com quase todos os autores que publiquei muito criei relações muito estreitas. Foi o caso do Vasco Graça Moura, o Antonio Tabucchi, o Marcelo Duarte Mathias, o Vergílio Ferreira, o Fernando Namora, embora, em termos familiares, menos com o Namora. Tínhamos uma boa relação pessoal, mas nunca cheguei a fazer parte da família. O caso do Namora era muito curioso.
E porquê?
As coisas que vinham dele eram completamente ordenadas, prontas a fazer, ao contrário, por exemplo, do António Lobo Antunes, que é um pesadelo absoluto [risos], porque escreve numas folhinhas pequenas que, depois de lidas com uma lupa, passa para folhas A4. As folhas pequeninas são escritas com a mão esquerda, de jacto; posteriormente, com a mão direita, desenha as letras e faz uma segunda versão; aproveita para rever e limpar o que fez. Tudo é muito complicado, não escreve à máquina sequer…
E o trato, é fácil?
Lobo Antunes não é propriamente o que se possa chamar uma pessoa fácil mas respeitamo-nos mutuamente e temo-nos dado muito bem. É um autor que me aborve muito, não só pelos livros dele – que são muitos e com muitas reedições. Agora está a ser publicado na China, na Albânia, nos países mais incríveis. Mas, dizia, também pela parte internacional, que sou eu que faço inteiramente, organizo e arquivo, inclusive, todos os contratos e tudo isso me dá muito trabalho. Ele tem uma agente mas a real secretária… sou eu.
Curiosamente, em Portugal a dinâmica parece ser a inversa: alguma baixa de interesse por parte dos leitores, consequente quebra de vendas…
Um pouco, mas as coisas arrebitaram bastante com a publicação das “As Crónicas”, um trabalho que fiz durante o primeiro confinamento. Li mais de 400 crónicas para seleccionar menos de duzentas. Ele não queria que este volume fosse publicado: que não prestavam, não valiam nada. E vou fazer para o ano o segundo volume de crónicas, inéditas em livro, porque o autor, que não viu o livro senão depois de impresso, entretanto se reconciliou com as crónicas.
Faz intervenções nos textos de António Lobo Antunes?
Ele não deixa. Diz para fazer, que fique à-vontade para corrigir, para sugerir, mas depois não liga nenhuma. Assinalo coisas com um marcador amarelo, daqueles transparentes, ele observa e diz-me: “Mas que merda é aquela a amarelo?”. De modo que todo o meu trabalho acaba por cair ali.
O desencontro entre o autor e o Nobel já vai longo. Ainda há esperança?
Hoje, a atribuição do Nobel parece obedecer a necessidades específicas que ultrapassam a própria literatura, parece reger-se por critérios geo-estratégicos. O Lobo Antunes teria gostado de o ganhar, mas lá atrás. Hoje, já não é importante.
De um modo geral, os seus autores acolhiam bem as suas sugestões?
Sim. Vou-lhe dar um exemplo muito curioso. Certo dia, recebi por correio um manuscrito de alguém que não conhecia, o nome soava-me completamente novo: Fernando Campos. Fui eu que publiquei o seu primeiro livro. Era uma coisa bastante volumosa, “A Casa do Pó”. Comecei a ler e a gostar: era raro aparecer assim um romance tão forte, tão bem escrito. Entrei em contacto com ele e disse-lhe que tinha gostado bastante e tinha interesse em publicá-lo, mas que era um romance muito extenso, comercialmente inviável. Perguntei-lhe se não se ofendia se lhe propusesse cortes. Tirei cem páginas, coisas ao lado da trama, e ele, com muita abertura, aceitou perfeitamente. Era um belo livro, sem sombra de dúvida.
E foi uma boa aposta. Foi considerado pela crítica como um dos melhores romances históricos publicados em Portugal.
Na altura, na Difel, ninguém acreditava. Também só eu o tinha lido… E tinha um director editorial, que, quando o publiquei, andava, muito contrariado, no corredor com um espanador na mão a dizer: “Dá-se um espanador a quem comprar uma Casa do Pó”. Depois, bem que se tramou porque o livro foi um sucesso. E saiu no Expresso uma crítica da Clara Ferreira Alves, que na altura tinha muito peso, o que também ajudou. Mas havia autores em que não me atrevia a mexer nos textos. Por exemplo, o Vergílio Ferreira. Já os autores mais novos estavam mais dependentes da aceitação. E eu ia ajudando nesse aspecto: propondo reduções, alongamentos. Hoje, muitos autores ficam ofendidos diante destas coisas. E faz falta a figura do editor, daquele editor que conversa, que interfere. Creio que só a Maria do Rosário Pedreira faz esse trabalho. Eu fiz isso com o primeiro prémio LeYa [“O Rastro do Jaguar”, de Murilo Carvalho]. Dei várias sugestões que foram todas aceites: corte de texto, explicações mais detalhadas sobre aspectos que não eram claros para o leitor, muito embora o autor, que aceitou tudo, pudesse achar que sim.
Como é que entrou no mundo da edição?
Pela via da tradução. Quando a edição me apareceu, eu achei desde logo que era o trabalho da minha vida. Era mais do que eu podia sonhar: eu vinha do Vale de Santarém. Ser tradutora já seria a glória. E comecei como tradutora, com o Dinis Machado, que então trabalhava numa editora chamada Íbis, que fazia bandas desenhadas e uma colecção de policiais [a colecção «Rififi»], onde, aliás, publicou os seus três livros com o pseudónimo Dennis McShade. Ele sabia que eu queria fazer traduções e começou a passar-me esses trabalhos.
Era bem remunerada?
Recebia 750 escudos por cada livro. Dava jeito. Traduzia sobretudo do espanhol. Acontecia o herói morrer e ressuscitar a meio, era uma coisa muito mal feita. Depois, a íbis foi vendida à Bertrand e, nessa altura, convidaram-me para fazer traduções, mas um trabalho com outra responsabilidade. Depois, o António Ramos, que era o director editorial, convidou-me para ficar como assistente editorial na Bertrand. Tinha então 25 anos e acabei por ficar onze.
Entretanto, não torna à faculdade?
Gostei tanto que nunca mais me liguei à universidade, que era uma coisa um tanto enfadonha e o trabalho na edição era empolgante: conhecer os autores, trabalhar com eles. De modo que nunca terminei curso nenhum (tenho três anos de Germânicas e dois de História). Meti-me no mundo da edição e nunca mais saí. Nunca estive um dia desempregada. Aconteceu-me sair à sexta-feira de uma casa para iniciar, em princípio num sítio melhor, à segunda. O Sr. Bulhosa, que era dono da Bertrand, propôs-me fazer uma editora nova, porque a Bertrand estava com muitos problemas nessa altura e, caso tivesse de fechar, aproveitaríamos os autores… Eu escolhi uma equipa e fui fazer a Difel, em 1982; fiquei quatro anos. Correu muitíssimo bem: publiquei “O Nome da Rosa”, “A Casa dos Espíritos”, o primeiro livro da Isabel Allende. E tive a sorte de publicar “O Amante” da Marguerite Duras, que foi o Prémio Goncourt nesse ano. Traduzi este livro com a Luísa Costa Gomes, com quem gostei muito de trabalhar. Reflectimos bastante sobre tradução.
Na altura, também o Nelson de Matos, na Dom Quixote, começava um projecto novo. Concorriam?
De certo modo, sim, porque tínhamos uma certa aproximação de gostos, e também da editora que gostávamos de fazer. O Nelson de Matos começou a publicar o Kundera, que foi um sucesso imenso.
Seguiu-se a Quetzal. Foi um catálogo criteriosamente construído?
Com o meu marido [Rogério Petinga] e mais dois amigos, a Maria Carlos Loureiro e o Francisco Faria Paulino, fomos fazer a Quetzal, em 1987. Tínhamos um bom catálogo. Foram anos gloriosos para mim, estes anos 90. Marcámos a diferença, também pela qualidade do grafismo, a qualidade do papel. E também havia livros melhores do que há hoje, creio eu.
As capas de Rogério Petinga, que prendiam a retina, marcaram a edição portuguesa, pertencem ao domínio da história da edição portuguesa.
Sem dúvida, fez um trabalho fantástico em livros de autores como Jorge Luis Borges, Julian Barnes, Umberto Eco, Bruce Chatwin, Antonio Tabucchi e tantos outros, alguns dos quais o catálogo da Quetzal ainda mantém.
E momentos menos gloriosos, houve?
Sim, sem dúvida. E depois também publiquei coisas em que tive razão antes de tempo. Posteriormente, outros editores pegaram e tiveram algum sucesso. Por exemplo, o Bolaño. O primeiro livro dele que saiu cá, “Nocturno Chileno”, fui eu que publiquei. Não vendeu nadinha. Depois, propuseram-nos “Os Detectives Selvagens” e eu – com boas razões – tive receio. O Carlos Ferreira fez e teve algum sucesso. Do Javier Marías fiz os dois primeiros livros. Resultado: não vendi nada. E a Joan Didion é outro exemplo à mão. Muito bem acolhida nos Estados Unidos e na altura não teve eco nenhum por cá. Também publiquei a Susan Sontag, que conheci bem. Tinha uma primeira abordagem bastante altiva, mas depois tornava-se muito agradável.
E quando é que começa a publicar o Antonio Tabucchi?
Comecei a publicar o Tabucchi ainda na Difel e depois veio comigo para a Quetzal. Conheci-o através do Mega Ferreira, que era na altura a única pessoa que conhecia os seus livros, falou-me dele e eu fiquei muito encantada, com ele e com os livros que escrevia. Passados dois ou três anos, ele passou a ser o director do Instituto Italiano e as nossas relações estreitaram-se. Também publiquei livros da Maria José Lecastre [mulher de Tabucchi], por exemplo a fotobiografia do Fernando Pessoa. Ele era divertido, agradável e era profundo. Interessava-se por uma imensa quantidade de coisas, porque ele não escrevia sempre o mesmo livro, experimentou variadíssimas coisas.
Antonio Tabucchi acreditava justamente que o fascínio da literatura residia na possibilidade de cada livro ser uma coisa diferente, mesmo admitindo a hipótese do falhanço. Sentia que ele preferia o falhanço à ideia da repetição?
Ele arriscava bastante. Um grande escritor, na minha opinião, e estou nisto muito e bem acompanhada. Tinha uma impressionante diversidade. Tinha a capacidade de escrever sobre uma infinidade de coisas. Há escritores que escrevem sempre o mesmo livro; o Tabucchi gostava de se situar em zonas de risco. Parece-me que, uns mais densos, outros mais ligeiros, uns com mais ritmo, outros com ritmo menos acelerado, todos os livros dele são bons: variados, cultos, interessantes, escrita magnífica. Tem livros extraordinários. “Estórias com figuras”, por exemplo, é um belíssimo e perturbante livro. E era uma pessoa de causas, um defensor de causas.
O que lhe trouxe problemas de sobra…
Muitos problemas com o Silvio Berlusconi, inclusivamente duríssimos processos em tribunal, o que o fez sair de Itália, porque o ambiente se lhe tornou impossível. Foi quando comprou um apartamento em Paris e foi viver para lá. Mais tarde, veio definitivamente para Portugal e morreu cá.
O advogado, do romance “A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro” [acabado de reeditar pela Dom Quixote] diz bem desse sentido de justiça.
É uma personagem fantástica esse advogado. O Tabucchi era um homem que fervia quando lhe soava a injustiça, a desigualdade. Não suportava a injustiça, aquela subida da extrema direita em Itália abateu-o muito.
Guarda do autor boas recordações?
A grande recordação, a mais marcante, que eu tenho do Tabucchi é de um fim-de-semana num verão, em Agosto, numa quinta em Azeitão, alugada por ele e pela mulher para passar férias. Havia uma amoreira muito grande, com uma mesa de pedra por baixo; em cima, um copo de vinho branco e o texto do “Requiem” (1991), que ele tinha escrito em português. A certo altura, diz-me: não ponha isto em português que eu quero que o livro tenha sotaque. O livro é escrito por um escritor, não de língua portuguesa, mas que quer escrever em língua portuguesa, em jeito de homenagem. Nesse fim-de-semana fantástico, trabalhámos o livro todo e acabámos por nos divertir, foi um trabalho bom de fazer.
Cumprem-se dez anos desde o desaparecimento de Tabucchi, cuja obra continua a ser publicada pela Dom Quixote. Há eventos previstos para assinalar a data?
Sim, claro, e um pouco por todo o mundo, não fosse o Tabucchi um dos escritores italianos mais conhecidos do mundo: França, Itália, na Coreia do Sul, no Irão. E vão-se multiplicar as publicações e apresentações de livros, colóquios, homenagens, festivais e feiras de livro dedicadas ao escritor. Por cá, também estamos a programar várias actividades.
Além dos livros do Tabucchi que outros gosto muito de publicar?
Houve muitos. E guardo as viagens que fiz no âmbito do salão do livro, as muitas pessoas interessantes que conheci. Houve uma altura em que havia um grupo de editores a que chamávamos Pequenos Editores Literários do Sul da Europa, composto por várias editoras francesas, espanholas… ao nível da Quetzal. Fazíamos reuniões em várias cidades e conhecíamo-nos muito bem uns aos outros. Tenho uma fotografia muito curiosa, no Palácio de Belém, num jantar oferecido pelo Dr. Mário Soares, estava a Catherine Deneuve, que estava cá a fazer “O Convento” do Manoel de Oliveira, o Marcello Mastroianni, nessa altura também em Portugal a gravar o “Afirma Pereira”, do Tabucchi. Nessa fotografia está o Dr. Soares, o Tabicchi, a Ingrid Fratinelli, o Christian Beauvoir… Olho para a fotografia e dou-me conta de que já morreram todos.
E quando olha para o caminho andado, que balanço faz?
A melhor coisa da minha vida foi a profissão que tive. Nunca me arrependi. É claro que há momentos difíceis, mas acabam por se ultrapassar. A propósito, fiz um livro que é a vergonha da minha cara: “o Reino”, do Jo Nesbø, um calhamaço comercial. Por causa desta 'coisa' que é o acordo ortográfico há sempre os fatos e os factos. Li integralmente a tradução e emendei duas vezes 'fatos' para 'factos'. A menina da produção, que era suposto fazer aquelas duas emendas, pôs no automático. Resultado: todos os 'fatos' ficaram 'factos': factos de mergulho e outras coisas do género… Sinto vergonha. Um livro pronto, só com aquelas duas emendinhas que tinha pedido para fazer converte-se numa nódoa.
Há editores que dizem que livro sem gralhas é como jardim sem flores…
Ora … Quando eu estava na Bertrand, havia um departamento de revisão, com uma equipa de cerca de oito revisores, todos muito bons. Hoje, em todos o lado faltam revisores, no campo da edição, nos jornais. Na ausência dessa equipa, o editor tem de ler tudo com muita atenção. Caso contrário, podem acontecer coisas tremendas. Eu leio sempre as traduções. E quando gosto do livro, traduzo eu.
E continua a traduzir?
Continuo sim. Actualmente há traduções portuguesas muito melhores, há outro cuidado. Mas há tradutores que beneficiam claramente a língua de chegada, aportuguesam muito.
Acompanha o que actualmente se publica no campo da literatura portuguesa?
Agora acompanho muito menos. Mas sei que aparecem coisas muito fraquinhas, algumas das quais sem ponta por onde se pegue. Falta substância, falta cultura, memória literária. No meu tempo, dedicávamos as férias grandes à leitura, agora ninguém faz isso. Ando a ler coisas da Agustina e, por vezes, penso: o vocabulário desta mulher! É extenssíssimo.