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"Nunca tinha ficado tanto tempo na escola". Na Escola de Comércio de Lisboa, acolher também é aprender

"Nunca tinha ficado tanto tempo na escola". Na Escola de Comércio de Lisboa, acolher também é aprender

Bruno Gonçalves Marta F. Reis 05/04/2022 14:03

É uma das escolas profissionais mais antigas de Lisboa, com cerca de 700 alunos. Nas últimas semanas, as salas que simulam um centro comercial acolheram uma centena de ucranianos que fugiram da guerra. No centro de acolhimento temporário, trabalharam professores e alunos voluntários.

Multiplicam-se os gestos de solidariedade no acolhimento de refugiados ucranianos. Na Escola de Comércio de Lisboa, na Encarnação, foi esse o mote das duas últimas semanas, quando decidiram colaborar com o Serviço Jesuíta aos Refugiados e transformar as salas de aula frequentadas anualmente por 700 alunos de cursos profissionais do ensino secundário num centro de acolhimento temporário. Por ali passaram já cem refugiados e o último grupo saiu na sexta-feira, a maioria para famílias de acolhimento em diferentes pontos do país ou para a casa de familiares e conhecidos no Algarve.

As camas continuam prontas para acolher quem chegue, sempre na base de um estadia temporária enquanto são encontradas soluções mais permanentes. À porta de cada sala, bens de higiene e snacks, numa escola que aproveitou a experiência dos cursos que ministra a alunos do secundário na área de hotelaria e comércio e se reformulou em 24 horas.

E chamou os jovens a participar, por acreditar que isso também faz parte da formação. 

Piedade Pereira, diretora daquela que é uma das escolas profissionais mais antigas a funcionar em Lisboa e recebe alunos de toda a região num acordo de parceria com o Estado, diz que em 27 anos na instituição foram as semanas mais intensas e também um desafio especial para todos, o método de aprendizagem usado nas diferentes disciplinas.

“Queremos que saiam daqui bons técnicos mas também boas pessoas”, resume, sensibilizada pela forma como professores e estudantes se mobilizaram. Estão num momento de estágios, que os jovens realizam em vários pontos dos cursos que vão de vendas e marketing, vitrinismo e design de loja, cozinha e pastelaria a restaurante bar a informática, por isso nem todos puderam estar presentes, mas muitos responderam à chamada.

Transformaram as salas em dormitórios e montaram uma capela para as orações das famílias, sempre com sinaléticas em português e ucraniano. Com o apoio de empresas que costumam colaborar nos estágios recolheram bens pessoais, vestuário e alimentos, com a cozinha industrial e restaurante em que os jovens têm aulas de culinária e serviço de bar e restaurante transformados em centro de logística com o apoio de cozinheiros profissionais que se voluntariaram para trabalhar ao lado do chef Mateus Freire, professor na ECL e que dirigiu o serviço de refeições. A ajuda chegou também de médicos que se voluntariaram para consultas e de farmácias locais, que garantiram a dispensa gratuita de medicamentos.

“Percebemos os estragos da guerra” Aos alunos, couberam turnos em tarefas de apoio. Igor, Diogo, Ricardo e Rafael, do curso de Informática e Sistemas, não tiveram propriamente de usar as aprendizagens das aulas mas ajudaram na orientação e organizaram uma sessão de cinema. “E tirámos cafés”, contam, agora a voltar à rotina. “Nunca tinha estado tanto tempo na escola. Saímos daqui à noite”, atira Diogo, de 16 anos, que acabou por faltar aos treinos de kickboxing para não deixar o posto. “O mestre disse que fiz bem. Foi uma ideia muito boa na escola, que quer que nós sejamos pessoas conscientes”, explica. “Olhava para a guerra como se fosse algo lá longe e muda um bocado quando vemos a cara de pessoas destroçadas que tiveram de fugir”, continua Ricardo. “Percebemos os estragos da guerra”, remata o colega.

Igor, filho de pais ucranianos emigrados em Portugal, é dos quatro o único que fala um pouco da língua e diz que depois de acompanharem o que está a passar pelas notícias foi duro ver ali muitas mulheres, com crianças, sem os maridos ou os avós que ficaram na Ucrânia. A mãe foi uma das voluntárias na escola e admite estar pronto para voltar se for preciso. 
Sem saberem se voltarão a ser ativados, Piedade Pereira diz para já que o plano é manter o centro de acolhimento aberto até à Páscoa. 

Em duas semanas, houve trabalho mas também muita emoção, das mães que finalmente tinham um sítio em condições para ter os bebés a dormir e trocar fraldas a uma das jovens que depois de estar vários dias sem comer em Kiev num bunker não conseguia alimentar-se e finalmente acabou por ir fazer as refeições ao buffet. “Foi uma adaptação para todos. A certa altura percebemos que não estavam habituados a sopa passada e com uma simples alteração passámos a servir sopa que já estava ao gosto de todos”, exemplifica a diretora, que colocou nas paredes do refeitório uma carta em ucraniano que lhes deixaram como agradecimento. Elisabete Faria, coordenadora do curso de Restaurante-Bar, partilha que isso foi o mais marcante: “Ver no final do dia de trabalho o quanto as pessoas pareciam agradecidas.”

Parte da rede de escolas inovadoras da OCDE, Piedade Pereira acredita que a experiência poderá levar a novos projetos, já que incentivavam os alunos a fazer voluntariado mas nunca tinham tido uma experiência assim dentro da escola que está organizada como se fosse um centro comercial, com cada sala apadrinhada por uma empresa diferente e átrio central com o nome de Marquês de Pombal, por ter sido Sebastião José de Carvalho e Melo a criar a primeira aula de comércio de Lisboa, em 1759. 

Ali, a ideia de que cursos profissionais são para alunos sem rendimento escolar é coisa do passado há muito e 80% dos estudantes segue para o Ensino Superior, diz a responsável. A abertura a mundos e realidades diferentes faz parte do currículo, com estágios nacionais e internacionais ao abrigo do programa Erasmus, onde atualmente estão 152 alunos em programas que podem ir de poucas semanas em que têm protocolos com outras escolas e conhecem o tecido empresarial local a três e seis meses colocados por exemplo em hotéis em Londres ou Paris. 

Por agora, são as cores da Ucrânia que saltam à vista nos corredores, a começar por flores amarelas e azuis à entrada, oferta do Horto do Campo Grande, ao lado de um cartaz com os princípios que desejam para os jovens que por ali passam: serem conscientes, colaborativos, criativos, competentes e comprometidos. 

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