É incompreensível que após séculos de utilização de vacinas e dada a sua elevada importância para uma melhor saúde pública, e de todas as provas científicas dadas da sua utilidade, que sejam cada vez maiores as reservas apresentadas por parte de certas franjas da sociedade que acabam por colocar em risco não só a si próprias, mas a própria sociedade onde estão inseridas.
Até introdução no mercado, as vacinas e outros fármacos são sujeitos a diversos anos de desenvolvimento, incluindo testes clínicos para assegurar a eficácia do medicamento e a inexistência de efeitos secundários graves.
Toda esta dinâmica foi, no entanto, alterada quando em dezembro de 2019 uma nova doença altamente infecciosa e mortal, a covid-19, foi reportada pela primeira vez em Wuhan, na China. Devido à elevada taxa de infecciosidade e mortalidade do vírus SARS-CoV-2, em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) categorizou a doença como pandemia global. Como tal, para um futuro pós-covid seria necessária imunização da população. O tempo corria contra a indústria farmacêutica e a saúde global dado que o desenvolvimento mais rápido de uma vacina (papeira) tinha levado quatro anos. No entanto, diversos países garantiram elevado financiamento para o desenvolvimento desta vacina, duas empresas (Moderna e Pfizer) decidiram recorrer a uma tecnologia bastante discutida, mas ainda não utilizada: as vacinas de mRNA. O desenvolvimento deste tipo de vacinas foi tão rápido que em 14 de julho e a 12 de agosto foram publicados os resultados da fase I/II dos testes clínicos para a Moderna e a Pfizer, respetivamente. E apesar de se tratar de testes com uma baixa amostragem, como tipicamente ocorre nos testes clínicos nas primeiras fases, ambas as vacinas demonstraram elevada proteção e produção de anticorpos contra a proteína S nas pessoas que receberam a vacina. Para ambas as vacinas, uma percentagem de eficácia de 95% foi conseguida. No caso da vacina desenvolvida pela Moderna, nenhuma das pessoas com covid-19 que recebeu o tratamento desenvolveu casos severos da doença que necessitasse de hospitalização. Outras vacinas foram, entretanto, desenvolvidas, como a vacina da AstraZeneca/Oxford e da Johnson, entre outras, utilizando tecnologias bastante estabelecidas no mercado, ao contrário da de mRNA utlizada pelas outras duas companhias. A primeira vacina foi administrada, a 8 de dezembro no Reino Unido, menos de um ano após o aparecimento da doença.
Até 5 de setembro de 2021, mais de 5 mil milhões de pessoas (40.3% da população mundial) receberam a primeira dose da vacina contra a covid-19 e mais de 2 mil milhões encontram-se já completamente vacinados (27.8% da população mundial). Em Portugal, a primeira vacinação ocorreu a 27 de dezembro de 2020 sendo que até à data 74.8 % da população já se encontra vacinada (cerca de 7.49 milhões) e 84.7% já recebeu a primeira dose da vacina (quase 9 milhões)
Dados do US-CDC demonstram que uma percentagem superior a 99.999% de pessoas vacinadas e que são infetadas pelo vírus SARS-CoV-2 não morrem de covid-19, sendo que pessoas não vacinadas têm 25 vezes mais probabilidade de morrer pela doença.
A História está, no entanto, muito longe de começar em 2019:
Estamos em 1796, Edward Jenner, médico britânico, usa material de pústulas de varíola bovina para promover proteção contra a varíola. Desta forma, Edward Jenner criou imunidade à varíola, tornando esta prática comum. Os métodos por ele utilizados sofreram diversas alterações médicas e tecnológicas durante 200 anos, levando mais recentemente à erradicação da varíola. No entanto, a história da vacinação, do latim vaccinus que significa “de vaca”, não começou com Edward Jenner mas muito antes, com uma longa história de doenças infecciosas em humanos e, em particular, com o uso inicial de vírus de varíola para criar imunidade contra a doença. Diversas evidências foram encontradas em que os chineses utilizavam inoculação deste vírus (técnica chamada de variolação) desde 1000 EC. Esta prática era comum também em África e na Turquia, antes de se tornar comum na Europa e nas Américas.
Na Europa do século XVIII estima-se que 400.000 pessoas morriam anualmente de varíola, e que 1/3 de todos os casos de cegueira se deviam a esta doença. No século XX, estima-se que a varíola terá causado a morte a cerca de 300 milhões de pessoas, e cerca de 500 milhões nos últimos 100 anos de existência da doença. Mesmo tão recentemente como em 1967, a varíola infetava 15 milhões de pessoas por ano. O risco de morte devido à doença era de cerca de 30%, apresentando risco superior para os bebés.
Devido principalmente à introdução da vacinação, o último caso natural de varíola foi diagnosticado em outubro de 1977, tendo a Organização Mundial de Saúde (OMS) certificado, em 1980, a erradicação global da doença.
Após Edward Jenner, Louis Pasteur criou, em 1885, a vacina contra a raiva, com elevado impacto na saúde humana. A partir deste ponto no tempo, nos inícios da bacteriologia, diversos desenvolvimentos ocorreram. Antitoxinas e vacinas contra difteria, tétano, antraz, cólera, tifoide, tuberculose e muitas outras foram desenvolvidas durante os anos 30 do século passado.
Devido às vacinas, diversas doenças potencialmente mortais são de fácil prevenção encontram-se algumas praticamente já esquecidas, fazendo algumas destas doenças, já parte apenas dos livros de História. Entre as quais temos: 1) a poliomielite; 2) o tétano; 3) hepatite B; 4) hepatite A; 5) rubéola; 6) sarampo; 7) tosse convulsa (pertussis); 8) gastroenterite por rotavírus; 9) papeira; 10) varicela, entre outras.
É, portanto, incompreensível que após séculos de utilização de vacinas e dada a sua elevada importância – em conjunto com a recolha e tratamento dos esgotos e os antibióticos – para uma melhor saúde pública, e de todas as provas científicas dadas da sua utilidade, que sejam cada vez maiores as reservas apresentadas por parte de certas franjas da sociedade que acabam por colocar em risco não só a si próprias, mas a própria sociedade onde estão inseridas. Vacinação deixa de ser uma questão de liberdade individual quando começa a ser uma questão de saúde pública.
Investigadores do Laboratório de Análises
do Instituto Superior Técnico