Tem vindo a causar polémica a homenagem organizada pelo Tribunal da Relação da Coimbra a Antunes Varela, no passado dia 15 de Dezembro, que contou com a presença do senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça e da senhora ministra da Justiça. Na altura, a senhora ministra da Justiça salientou ter sido Antunes Varela “um dos mais brilhantes juristas portugueses do século passado”, sendo hoje recordado não apenas como autor do Código Civil Português, mas também pelo facto de ter impulsionado a construção de tribunais e prisões, recorrendo ao investimento público. O senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça afirmou também na altura que essa homenagem era um “claro testemunho de reconciliação e encontro de um país com a sua história”. No seu entender, “ver uma ministra da Justiça, 45 anos depois do 25 de Abril, homenagear um ministro da Justiça do 24 de Abril é, sem dúvida, um facto especialmente simbólico”. E corroborou também a obra de Antunes Varela na construção do parque judiciário nacional, referindo que alguns governantes talvez “devessem corar ao ver o estado de obras judiciárias recentes que se desfazem às primeiras intempéries ou à passagem de meia dúzia de anos”, ou a instalação de tribunais “em edifícios indiferenciados, destinados à habitação e escritórios, sem dignidade para a função”.
Vários comentadores apareceram a criticar a cerimónia e estas declarações, salientando a pertença de Antunes Varela a um governo da ditadura, com tribunais plenários e polícia política. Não parece, porém, que tal seja impeditivo desta homenagem. Duarte Pacheco também foi ministro da ditadura e hoje tem uma estátua à entrada de Lisboa, em virtude da obra que deixou nesta cidade. Ora, a obra que Antunes Varela deixou como ministro da Justiça e como professor universitário é absolutamente extraordinária. Exerceu o cargo de ministro da Justiça durante 13 anos, entre 1954 e 1967, tendo, no entanto, prosseguido simultaneamente a sua carreira académica, o que o levou a suspender o cargo em Junho de 1955 para realizar o seu concurso para professor extraordinário, sendo na altura substituído interinamente por Pires de Lima. Antunes Varela não se quis apresentar a provas na qualidade de ministro da Justiça para não pressionar o júri, mas também não interrompeu a sua carreira académica por ter sido ministro, ao contrário do que tantos fizeram. A tese que apresentou nesse concurso, Ensaio sobre o conceito do modo, ainda hoje constitui uma obra de referência sobre um difícil instituto do direito civil. Mas a sua opus magna é o livro Das Obrigações em Geral, que continua a ser uma obra essencial para o estudo deste complexo ramo do direito.
Como ministro da Justiça, Antunes Varela deixou-nos imensos tribunais, inclusivamente no interior do país. Recordo-me que no início de 1995 tive ocasião de acompanhar a minha mulher, então jovem magistrada, a Avis e Fronteira, onde tinha sido colocada como juíza. Na altura, o funcionário disse-nos que o Tribunal de Fronteira era magnífico porque tinha sido mandado construir pelo prof. Antunes Varela, que era natural do Ervedal e não queria que as gentes da sua terra ficassem privadas de ter um tribunal digno. Tal representa uma enorme diferença em relação a posteriores ministros da Justiça, cujo programa foi antes o de encerrar tribunais, privando as populações de a eles terem acesso.
Antunes Varela foi essencial para a elaboração do Código Civil, tendo reactivado os seus trabalhos preparatórios, de que estavam encarregados vários professores universitários, os quais mandou publicar no Boletim do Ministério da Justiça. Depois efectuou pessoalmente duas revisões aos projectos que lhe foram apresentados, dando ao código a sua estrutura final. É a ele, assim, que se pode atribuir a autoria do Código Civil, que constitui ainda hoje, mais de cinco décadas depois, o principal monumento jurídico quer de Portugal, quer dos países africanos lusófonos, e que merece claramente a designação de Código Varela. Napoleão proclamou que a sua verdadeira glória não residia em ter ganho 40 batalhas, pois todas elas seriam eclipsadas por Waterloo, mas o que ninguém conseguiria apagar, pois viveria eternamente, era o seu Código Civil. Da mesma forma, o que ninguém conseguirá apagar é o Código Civil de Antunes Varela, o que constitui mais do que um justo motivo para que prestemos homenagem à sua perene memória.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990