Branko. “A ideia das fronteiras é uma criação humana”

Branko. “A ideia das fronteiras é uma criação humana”


Branko apresenta pela primeira vez em Lisboa o seu áçbum Nosso, que conta com várias participações, como a de Mallu Magalhães.


Foi um dos responsáveis pela banda de maior sucesso que Portugal viu crescer nos lados da Amadora. Os Buraka Som Sistema mudaram a forma como a música portuguesa é ouvida, seja nas rádios ou nos festivais. Com o sentimento de dever cumprido com a banda que o lançou para o mundo da música, Branko lançou-se a solo e veio construir pontes que há muito estavam destruídas. Prova disso é o seu novo álbum, Nosso, que é cantado em quatro línguas e que tem ritmos de todos os cantos do mundo. Foi na vontade de construir pontes e de levar os ritmos portugueses ao mundo que Branko criou a editora Enchufada que reúne artistas de diversas formas artísticas e de diferentes culturas. Em 2017 , os artistas juntaram-se para celebrar a música e o sucesso foi tanto que o Enchufada na Zona chega dia 4 e 5 de outubro ao Capitólio, Lisboa prometendo aquecer as noites de início de outubro com sons vindos desde Cabo Verde a Lisboa. Uma viagem aqui contada por Branko, que, a solo, continua (bem) rodeado de gente que o inspira.

Depois de ter tocado em tantas cidades pelo mundo fora, considera que o público português é mesmo o melhor do mundo?

Isso é uma mentira que os artistas dizem quando estão em frente ao público português. Há uma obsessão nas pessoas com perceberem se são realmente importantes ou não, onde quer que seja. Acho que os públicos e as circunstâncias dizem muito. Tocar em Portugal no evento certo, na hora certa, pode dar muito certo; tocar no mesmo sítio numa situação que não seja exatamente a mesma pode não dar. Acho que há muita coisa que influencia isso. Não é uma coisa em que pense muito, qual é que é o melhor público. A tua experiência de determinado evento ou acontecimento pode variar infinitamente, não é o tipo de coisa em que perca muito tempo a pensar. É super interessante para mim tocar em Portugal, tocar em Lisboa, são sempre espetáculos que sinto que estou a tocar e em que as pessoas têm mais contexto sobre o que estou a tocar e sobre toda esta janela de trabalho que começa nos Buraka em 2006 até agora, ao Nosso, e sinto que isso traz mais carinho e uma relação diferente com as pessoas que tenho à frente. Aqui, tenho um contexto que não tenho em mais sítio nenhum. A música foi feita aqui, nestas circunstâncias sociais e geográficas, e de alguma forma é recebida aqui de uma maneira especial. 

A música Amours d’Éte apareceu no canal de YouTube Colors, uma plataforma que chega a muita gente. O convite foi feito a si? Como se sentiu com este convite?

O convite foi feito a mim – inicialmente foi feito aos dois [a Branko e a Pierre Kwenders, cantor convidado para um dos temas do disco]. A ideia era fazermos os dois parte do vídeo e, como o que propõe o canal é a apresentação de uma pessoa, da pessoa que está a interpretar o tema, eu disse que não queria aparecer. O convite foi feito à canção e todos juntos decidimos que a melhor forma da canção ser featured era só com a interpretação do Pierre. Claro que para mim o convite foi incrível. Conheço bem um dos rapazes que trabalha na curadoria, tenho a relação de trocar bolas com ele, é um canal com o qual tenho alguma proximidade, mas não depende minimamente de mim quem aparece ou não aparece. São só conversas.

Se Buraka Som Sistema aparecesse amanhã teria tanto sucesso como teve? Foi graças aos Buraka terem existido que tantas bandas do mesmo género musical têm tido sucesso?

As circunstâncias são diferentes, os Buraka existiram na altura que existiram derivado ao momento que estávamos a viver em 2006. O que está a acontecer agora é muito interessante. Com a Enchufada temos uns eventos mensais no B.Leza chamados Na Surra e, para mim, é incrível estar quase a viver um segundo ciclo não necessariamente de um género de música, mas de uma forma de estar e de uma forma de abraçar música: esta ideia de música eletrónica global. Sinto que estamos a viver um segundo ciclo que só foi possível por causa do caminho traçado pelos Buraka. Tudo isto só teria funcionado se fosse abraçado pelo mundo inteiro, era tão nicho aqui que precisava de adotar novas linguagens. E, no meio do processo, desenvolveu-se uma linguagem única que agora sinto como impressão digital. Incluindo Branko, incluindo tudo isto que faz parte da mesma narrativa, da mesma história. Está a viver-se um segundo momento super interessante e sinto que o trabalho dos Buraka está feito, que chegou ao fim um ciclo de dez anos de uma missão talvez não consciente ou programada. Nunca houve uma ideia, as coisas foram acontecendo, fomos reagindo ao que estava a acontecer. O primeiro ciclo provou que havia muita vontade de assumir toda essa mistura que existe em Lisboa e em Portugal. Mesmo enquanto Buraka estava acontecer, já havia uma série de coisas. Era uma linguagem fácil de adaptar e o mais interessante ainda é que cada adaptação é muito única. Cada pessoa soa a si mesma quando vai falar do mesmo assunto. 

A propósito desse puzzle cultural de Lisboa, sente-se uma peça do puzzle ou o arquiteto?

O próprio arquiteto faz parte do puzzle. Moro nela e acima de tudo acho interessante como, à medida que vão mudando os artistas, vai mudando o foco. A ideia é sempre a mesma e é interessante perceber que o caminho é sempre o mesmo. Uma ideia de celebração da diferença, de inclusão de tudo o que acontece na cidade, um encurtar do caminho entre a linha de Sintra e o centro da cidade, tudo isso fez sempre parte do discurso. Felizmente, algumas coisas foram absorvidas e tornaram-se normais. O género musical hoje em dia não é minimamente estranho – ouve-se kuduro ou kizomba na Rádio Comercial ou no clube mais cool da cidade. Felizmente isso está ultrapassado e assim podemos aprofundar outras coisas, andar atrás de outras coisas, podemos traçar novos caminhos, noutras direções.

Neste caminho foi vestindo várias peles. Qual é o chapéu que melhor o define?

Sinto que houve várias coisas que contribuíram para ganhar a minha voz enquanto artista em nome próprio, enquanto Branko. Obviamente, todo o trabalho feito com Buraka, todo o trabalho de produção para outras pessoas que fiz, a música que criei, todo o trabalho da Enchufada, enquanto pessoa que muitas vezes está por detrás de edições que não são as suas, e, talvez, um outro ponto que foi chave para essa equação toda, que foi a série documental que desenvolvi para a RTP2, o Clube Atlas. No fundo, o artista Branko é uma colagem de todas as coisas que disse, não havendo uma hierarquia ou uma principal. Estamos em 2019 e um artista não é só uma pessoa que fica a fazer arte no seu quarto sem se relacionar com mais nada à sua volta, completamente autista. Estamos numa fase em que os artistas se relacionam com a forma como a indústria reage, com a audiência, com redes sociais, com uma série de coisas e sinto que sou um bocadinho de tudo isso. O Nosso é o primeiro disco mais de afirmação minha, enquanto artista, em que acho que consigo chegar a uma sonoridade minha sem estar muito preso a nada. 

Quebrar fronteiras ou fazer pontes?

Acho que fazer pontes, talvez porque a ideia das fronteiras é uma criação humana. Se pensarmos, quase que não há fronteiras. Há uma obra muito conhecida que diz “ninguém é ilegal”. Não faz muito sentido existir alguém ilegal, então acho que criar essas pontes que possam ter sido quebradas por alguma decisão que alguém tomou politicamente, economicamente, socialmente, seja há dez, 15 ou 20 anos, é muito mais importante.

Como é que definiria a alma da Enchufada?

Acima de tudo, o que se fez na Enchufada foram sempre coisas a apontar para algo de diferente e inovador. Música a preencher um buraco que era necessário preencher e foi preenchido. Quero saber como é que isto soa, quero saber como soa a Reboleira, a Buraca, a Damaia, este tipo de sítios. Então a característica que acaba por unir tudo, independentemente de nacionalidades ou géneros, é a inovação, que é um bocado a estrela polar de uma série de coisas. Para mim, está sempre certo o que for inovador. Se através disso se chegar ao comercial, não está errado. Se o inovador chegar a uma mistura de alguma coisa que não havia. Se calhar, muitos puristas virem dizer que agora alguma coisa deixou de ter piada permite-me continuar a não estar errado. É um bocado a ideia de o caminho ser sempre para a frente.

Que ritmos da diáspora é que falta explorar?

Acho que ainda estamos numa fase de início de conversa de muitas coisas e acho que há uma série de artistas chave para desenvolver uma série de coisas. Sinto que estamos a viver uma fase muito bonita em que uma série de coisas estão a tornar-se perfeitamente normais e a própria mistura começa a ser uma coisa normal. O eletrónico criou, através do do it yourself, a possibilidade de experimentar todos os ritmos sem ter de ir a sítios ou de gravar num estúdio caríssimo e essa possibilidade abriu uma série infinita de portas. Continua a faltar explorar uma série de ritmos tradicionais folclore, de manifestações que ainda estão presentes em Portugal. E, quando pensamos na diáspora da Língua Portuguesa, sinto que Cabo Verde tem imenso para dar, para explorar e para ser trabalhado em termos de música. Felizmente temos o Dino D’santiago que está a saber colocar as coisas nos sítios e a contextualizá-las. Mesmo a Mayra Andrade, com todo o trabalho que faz, vivendo em Lisboa. Obviamente que o trabalho que foi feito com Angola nesse aspeto foi maior, há uma relação maior com esses ritmos, mas aí continua a haver muitas coisas por explorar. 

O que está a fazer falta?

Acima de tudo, os países conhecerem-se melhor uns aos outros profundamente e uma relação mais direta entre as pessoas – e a isto junto o Brasil. Há uma grande falha de comunicação entre uma cidade como São Paulo e Lisboa. Há uma série de laços e pontes por criar que têm de ser desenvolvidos. Quando todo esse puzzle estiver montando, toda esta cultura de expressão portuguesa tem potencialidade de criar impacto no mundo de uma forma incrível, ritmos a influenciar a música atual, moderna. Acho que estamos a caminhar para lá. A ideia do Nosso, com as quatro línguas [que percorre], era agarrar nessas matrizes rítmicas, aplicá-las a pessoas a cantar em línguas completamente diferentes e perceber qual é resultado que isso pode trazer.

Os Buraka terminaram e cada vez mais trabalhas com mais pessoas. É propositado?
É um bocadinho, sou um ser social, o próprio nome do disco é inclusivo: Nosso, nosso som. Penso sempre nas coisas num sentido muito coletivo e sinto sempre que preciso de pessoas à minha volta. Nunca fui muito o produtor clássico de música eletrónica que fica fechado no seu quarto e depois sai de lá uma coisa espetacular que nunca ninguém ouviu.

Como é o seu processo criativo?

É super aberto. Tenho sempre diferentes processos, nem sempre uma coisa funciona, tem que se ir reinventando. Acima de tudo há um espaço, e o escritório da Enchufada é um espaço importante no meio da criação de várias coisas, porque sempre funcionou como um ponto de encontro de pessoas. Um sítio em que as pessoas aparecem só porque sim e que muitas vezes acaba por contribuir para coisas que não era suposto contribuir. É um espaço que se auto divide em multi-mini-start-ups chamadas discos. Esse processo social e essa abertura social é muito importante. Nem sequer me dou ao luxo de trabalhar numa música e ficar com ela muito tempo sem a mostrar a alguém. Depois, há vários processos. Neste caso específico do disco acabei por sentir necessidade de alugar uma casa, redimensionar um bocadinho a cidade de Lisboa e alugar uma casa onde montei um estudiozinho. Fiquei lá a viver um ano. A vista é a capa do álbum. Precisava de ver uma coisa que via muito quando era mais novo e que agora, por morar em Lisboa, deixei de ver: o caminho de volta à Amadora, um bocadinho essa ideia de dentro para fora. A minha visão tinha sido mais ao contrário: estar de fora para dentro.

E para quando um som Amadora?

Há um artista na Enchufada, o Pedro, que tem em quase todas as músicas nomes de coisas relacionadas com a Damaia. Há uma série de exercícios e de artistas à minha volta que são verdadeiros tributos a toda esta área periférica à cidade de Lisboa. 

Enchufada na Zona foi promovida a festival.

By public demand.

Neste Enchufada vai ser apresentado o Nosso. O que é que as pessoas podem esperar desse espetáculo? Como foi preparada a parte visual?

Existe um trabalho com pessoas especializadas na parte de luz e do stage design, que decidem o que está em palco e o que não está, alguns pormenores pensados para que as pessoas consigam sentir o máximo possível a música e para estabelecer uma ligação entre elas e o que está a acontecer em palco. É um concerto audiovisual, para o qual acabei por filmar uma série de pessoas com as quais colaborei em estúdio ou na rua. Essas filmagens e esses momentos aparecem no concerto. Para além disso, há todo um imaginário das viagens e dos sítios por onde andei, seja desde a gravação do Atlas, em 2015, ou do Clube Atlas, para a RTP2, em 2017. Tudo isso são recolhas de imagens que depois acabo por adaptar e transformar um bocadinho na viagem visual que acontece paralelamente à viagem musical que estou a fazer durante o espetáculo. Faz parte da minha narrativa. Se a música estiver ligada a Cabo Verde, vão estar a ver imagens relacionadas com Cabo Verde; se for com Lisboa, será igual. São tudo conteúdos meus e tudo aquilo faz parte da forma como acho interessante apresentar o Nosso em palco. Para além disso, sinto também a necessidade de chamar algumas destas vozes, já que o disco é tão colaborativo, a virem partilhar alguns momentos comigo em palco.

É uma celebração?

Sim, um bocadinho. Relativamente resto do festival, a necessidade de crescer veio da forma como foi recebido nos dois anos em que fizemos o evento. No fundo, tudo começou como uma festa de celebração de uma compilação que lançámos em 2017, com a rádio NTS. No ano passado, foram dois espaços e este ano são dois dias. A ideia é sempre crescer. Tentamos que seja um crescimento orgânico, para que, acima de tudo, não seja um passo maior que a perna, e que seja possível continuar a apresentar e celebrar o catálogo da editora Enchufada e aquilo que são os artistas que estão à volta desta editora. A minha relação com o público é um autêntico brainstorm, uso as pessoas em todos os espetáculos. 

Convidou a Catalina Garcia para cantar consigo uma música no Nosso porque a viu a dançar a sua música no Instagram. Usa muito as redes sociais para descobrir novos amigos?

Sou curioso, não sinto que sou o utilitário mais natural, uma daquelas pessoas que estão sempre atrás do conteúdo certo. Se calhar porque cresci um bocadinho sem isso consigo ter noção de que existem dois universos na vida: o da vida real e o da vida das redes sociais. Não sei se isso é um defeito ou uma coisa boa, mas usar as redes sociais para tentar passar a palavra da música e tentar estar atento ao que as outras pessoas estão a fazer com a minha música, tudo isso é uma coisa que faço muitas vezes. E, havendo essas conexões e essas pontes, não tenho problema nenhum em mandar mensagens ou em [a partir daí] desenvolver qualquer espécie de relação. Muitas vezes até em ser eu a criá-las e não ser só um espetador de outras coisas. Uma coisa de que também gosto muito é partilhar música nas redes sociais. Claro que uma selfie tem muito mais interação que a capa de um álbum, mas continuo a fazê-lo porque acho que, mesmo que as pessoas não reajam, se torna sempre parte de uma bagagem e de uma partilha que acho importante.

Dá-lhe mais prazer ter muita gente a ouvi-lo nas redes sociais ou a dançar a sua música nos concertos?

Não consigo bem diferenciar as situações. A mim o que me dá muito prazer é aperceber-me de que as pessoas se estão a divertir e que a música foi útil de alguma forma na vida de alguém numa determinada altura. Seja numa story ou através de algum momento em palco ou de uma mensagem que receba. Perceber que a música foi criada e que fez realmente sentido em vários contextos diferentes e em vários formatos diferentes, para mim é o mais importante, principalmente numa altura em que há tanto acesso a música. Escolherem-me a mim para servir de banda sonora de algum momento da vida é super lisongeador.

Quatro anos separam Atlas de Nosso. É de esperar um hiato semelhante até ao próximo?

Aí no meio houve uma compilação chamada Enchufada na Zona, que foi meio que assumido como um disco. Era a minha visão de uma série de coisas que estavam a acontecer na pista de dança. A maior parte dos temas não eram meus, eram remixes meus. Mas, se calhar, para uma obra grande, com todo um imaginário por detrás, não vejo porque não. Mas cada vez mais sinto necessidade de lançar música, não necessariamente álbuns, mas aquilo de que sinto necessidade na altura. Sinto as necessidades, não tenho um plano de futuro. Quando lancei o Enchufada na Zona foi porque tinha mesmo música que queria partilhar, música que não era minha mas que eu tocava e à qual a reação das pessoas era incrível. Fez sentido ser partilhada pelo contexto. Estou a sentir essa necessidade outra vez portanto poderá haver uma compilação Enchufada na Zona antes de lançar outro álbum. Comecei como DJ e produtor e essa é uma forma na qual eu adoro dar música às pessoas: selecionar ambientes para a vida delas.

*com Miguel Carrapatoso