Luiz Ribeiro tem olhos claros, os mesmos que os 12 irmãos herdaram, e é um bom contador de histórias. As peripécias da sua infância são o retrato de um país então miserável, mas na família numerosa, gerada por Jaime e Deolinda, não faltou o cuidado possível com os filhos. Luiz tinha 11 anos quando o irmão António, então marçano – e futuro António Variações – disse aos pais que o ia levar da terra para lhe dar uma vida em Lisboa. Aos 19, tomou conta do irmão como pôde. É essa história, e a de um caminho paralelo, por vezes distante mas unido pelos laços de sangue, que conta ao i, a dias da estreia do esperado filme de João Maia, Variações. Uma biografia, garante, que é fiel ao caminho do seu irmão, homem peculiar para o seu tempo, artista da cabeça aos pés. Já Luiz, na sua “humildade”, também começou a escrever e interpretar canções – lançou um CD às suas custas – e são também elas que, durante a conversa, servirão de timoneiro.
Luiz escreve-se com z?
O meu Luiz é com z, como diz na minha cédula de nascença, que ainda guardo em casa. Em 1964 vim para Lisboa com o António, foi ele que me trouxe quando eu tinha 11 anos e ele 19 – está precisamente a fazer agora, no fim de agosto, 55 anos. Foi um percurso idêntico: ele veio para Lisboa com os 11 anos ainda, fez os 12 já em Lisboa. Eu também fiz os 12 anos já em Lisboa, já em dezembro. Depois, em 65, começou o novo ano e o António já me podia arranjar um emprego. Então fui tratar do bilhete de identidade à Gomes Freire. O oficial de serviço não deve ter reparado bem na escrita da cédula, e apresentei-a com certeza, porque as duas coisas que trouxe da terra foram a cédula e o livrinho da comunhão solene. A mala de cartão já não trouxe porque o António já não usava essas coisas nessa altura. (risos)
Então não trouxe roupa.
A minha roupa eram umas calças, umas cuecas, uma coisa simples, depois o António é que começou aqui a comprar-me a roupa ao gosto dele.
Gostava que começássemos ainda antes disso, na infância na terra: vocês são 11 irmãos…
Éramos 12. É assim, dois não vingaram: uma menina que nasceu precisamente a seguir ao António, ele nasceu em 44, e esta menina, que esteve apenas algumas horas entre nós, em 46. Houve um outro menino, que esse já me recordo da sua morte, morreu com cerca de 21 meses. Era o Carolino, deveria ser o último, era o 11.o. Como faleceu, os meus pais lá arranjaram coragem para mandar vir outro, e veio então mais um menino que também se chama Carolino, é o nosso irmão mais novo e está na terra, fez há dias 60 anos.
O Luiz, nesta escadinha de irmãos, está em que lugar?
Sou o nono, sou um dos mais novos: a seguir a mim, só a Fátima, o Carolino que faleceu e o Carolino atual. O António era o quinto.
A vossa terra chama-se aldeia do Pilar ou Lugar do Pilar?
Lugar do Pilar. Na terra havia uma mercearia, digamos que era o ponto central onde as pessoas se encontravam, e tinha uma tasca. Aos domingos, o passatempo era ir para lá jogar à malha, beber uns copos, como era típico do Norte. A nossa casa era num sítio chamado Lugar do Monte, mas as cartas eram todas direcionadas para Lugar do Pilar, Carrazedo, Amares, Braga.
Qual é a sua primeira memória de infância?
Tenho muitas. Uma delas é que todos os dias fazia xixi na cama e todos os dias a minha mãezinha tinha de me chamar à razão. Ainda me levantava às vezes mais cedo, às seis da manhã, para ir ao pinhal buscar lenha, que era o gás, e chegava a casa e ela dizia-me: “Anda lá tomar o café”. E eu: “Não vou que a mãe bate-me”. Ela dizia: “Não bato nada!” Claro que entrava na cozinha e lá estava ela à minha espera. (risos)
Isso aconteceu até tarde?
Quando vim para Lisboa com o António, a minha mãe deu-me logo o recado: “Agora não te esqueças de ir para lá mijar na casa das pessoas!” Quando vim, vivíamos os dois num quarto alugado na mesma casa, na Rua do Vale de Santo António, aos Sapadores, e dormíamos na mesma cama porque não havia dinheiro para mais. E eu mijei a cama duas vezes. O António, no tocante a educação, era austero, rigoroso, mas viu o meu estado e simplesmente perguntou se tinha feito aquilo.
E que outras memórias guarda?
Há tantas memórias bonitas, mas uma que guardo da infância, tinha eu quatro anos, foi quando assisti ao meu pai a dar uma tareia no António, no tal dia em que ele cismou que não ia mais trabalhar para Cautelas e que queria vir para Lisboa. Houve ali um quiproquó entre eles e só me recordo de estar a dormir, acordar com um barulho, vir ao quintal e encontrar o Jaime (pai), que era um homem pequenino mas com uma genica incrível, e estava já com um cinto na mão, atrás do António. Claro que o António era ágil e forte, mas não tinha esperteza para fugir ao pai. Ele lá lhe deu uma ou duas e o António lá foi trabalhar, mas depois, passado poucochinho tempo, claro, o meu pai teve de anuir à sua vontade e ele foi para Lisboa. Mas essa memória ficou-me.
Os vossos pais eram os dois camponeses?
Sim, viviam da jorna. A minha mãe também não tinha muito tempo para trabalhar fora porque tínhamos o chamado eido, a nossa quintinha. Aquilo estava sempre a brilhar com muitas coisas, couvinhas, tomates, pepinos, um milhinho para as galinhas, árvores de fruto com abundância – laranjeiras, tangerineiras. Era onde o meu pai ia buscar os recursos financeiros no final do ano, a vender laranja e tangerina. E outras frutas que íamos comendo também, poucochinhas, mas era assim.
Esse eido era então, ao fim ao cabo, o sustento da família?
O meu pai trabalhava também à jorna para outras pessoas. Mas, naquela altura, era terrível. O meu pai saía de casa às 6h30 da manhã, como era costume, para chegar às quintas às 7h30, 8h00, e, se estivesse a chover, as pessoas estavam lá até às 11h00 sem pegar ao trabalho. Se às 11h00 não parava, mandavam as pessoas para casa e não se ganhava nada. Era uma tristeza, uma miséria. Nesse aspeto, o meu pai foi pioneiro, apoiou a criação da Casa do Povo e vingou como coordenador. E era muito popular na freguesia porque tratava de tudo.
De tudo?
Ia fazer a cobrança. Fazia esse trabalho ao domingo, depois da missa. Ia à missa às sete da manhã e depois ia fazer a cobrança e saber se toda a gente estava a receber os seus dinheirinhos.
E vocês iam todos à missa aos domingos ou eram só os vossos pais?
Todos, fomos todos criados debaixo de um padrão católico. Fomos todos batizados, fizemos todos o crisma, depois quando vim para Lisboa é que…
As coisas mudaram.
Quando o António me trouxe para Lisboa, ele ainda teve coragem de me levar duas vezes à missa ao domingo, na Igreja da Lapa. Mas ele não tinha muita vocação para assistir à missa e eu muito menos. Então ele teve uma conversa comigo e disse: “Ó Luís, não te vou levar mais à missa, sou franco, também não tenho muita pachorra. Quando vou à terra gosto de ir, mas aqui…” Ele, quando ia à terra, cumpria, acompanhava a mãe, e era uma alegria para ela.
Imagino que fosse difícil haver colo para toda a gente, até porque, naquela altura, os pais tinham uma relação diferente com os filhos.
Era muito próxima. E penso que o que nos unia muito era a religião. Não havia noite em que fôssemos dormir sem rezarmos o terço.
Todos juntos?
Todos juntos. A minha mãe punha-nos todos sentados no corredor, mas no inverno, às vezes, como estava frio, deixava-nos ir para a cama – mas tínhamos de responder. Se houvesse uma galhofazinha dizia logo: “Amanhã já não vão para a cama!” Ela começava a ditar a ladainha e nós depois respondíamos da cama. Isto no inverno, porque no verão até era agradável estarmos sentados lá fora. Era muito, muito raro, nós irmos dormir sem rezarmos o terço – e é o que eu digo nesta canção, na última (aponta para o seu CD, para a faixa Ainda não Tenho Palavras para Ti).
O António sempre participou nesses momentos, nunca se rebelou?
Nunca. Mas nós temos oito anos de diferença, e entretanto ele vem para Lisboa, pelo que passei a conhecer o António como visitante. Quando ele vinha, no primeiro dia, para nós, era uma alegria; no segundo, já era uma chatice.
Porquê?
Porque ele obrigava-nos a ir à lenha, à erva para os coelhos, à água do poço. (risos) Não nos deixava parar, então nós estávamos desejando que ele partisse para Lisboa de novo. Punha-nos a trabalhar porque dizia que tínhamos de ajudar a mãe. O simples ir à mercearia, comprar umas coisinhas, custava. Distava menos de um quilómetro, mas as crianças, sabe como é… Às vezes fazia chantagem com a minha mãe, pedia para levar a gancheta, um gancho com uma roda. Ela deixava, só para eu ir entretido. Só não levava quando ia comprar a garrafa do petróleo, porque se podia partir.
O vosso pai tocava cavaquinho…
Ele era exímio no cavaquinho. Lá em casa, nunca vi uma concertina, mas diz que o meu pai também tocava muito bem, especialmente nas romarias. Se ele tinha uma concertina própria ou tocava de outros, não sei, não me recordo. Agora, o cavaquinho…
E costumava tocar lá em casa?
Sim, especialmente no verão. Tínhamos um terraço com uma mesa em pedra. A casa está reconstruída, foi a minha irmã Fátima que comprou aquilo e está lá a viver, e eles fizeram uma reconstrução fantástica. Naquele terraço, só falta precisamente a mesa original, que tinha uma latada por cima com uvas brancas muito bonitas, bem cheirosinhas. E no verão era aí fora que à noite comíamos o caurdo…
O caurdo? O que é?
É a sopa! Lá em cima chamávamos assim.
E era feita de quê?
Era sempre a mesma coisa: couve-galega cortadinha.
Com feijão?
Quando havia uns feijõezinhos, punha-se. Há uma expressão do meu irmão Delfim, que não assisti mas que depois me contaram: um dia estavam cá fora a comer o caurdo e ele vira-se: “Ó mãe, o caurdo não tem fanunos!” – queria dizer feijões. Não tinha porque a miséria era muita. A minha mãe, se não tinha farinha, punha um bocado de farelo para engrossar o corpo da água. Azeite, era um fiozinho.
O farelo era o que se dava de comer aos animais, não era?
Exatamente. E agora está muito em voga, muitas pessoas fazem dietas com esses farelos similares. (risos) Antigamente era sinal de pobreza, agora é chiquérrimo, está na moda.
Está a descrever-me uma infância difícil a sorrir, mesmo falando de uns anos em Portugal em que as pessoas viviam com dificuldades extremas.
Era uma miséria absoluta. Os meus pais não tinham culpa, coitadinhos. O dia de festa em casa era à quarta-feira, porque coincidia com o dia de mercado na Feira Nova [Amares]. E era o dia em que a minha mãe, coitadinha, dizia: “Ó Jaime, vai apanhar uns figos para amanhã vender”. Tínhamos quatro figueiras lindas, grandes, e o meu pai lá subia – não nos deixava a nós subir, porque eram muito altas. Ele lá apanhava uns figos e a minha mãe ia de manhã para a Feira, a pé, fazer o negociozinho dela. E dependendo do que ganhasse, depois comprava umas coisas: tremoços nunca faltavam. A última coisa que ela fazia sempre era estender o lenço na senhora que vendia os tremoços para lhe servir o dinheiro que ela trazia, e depois voltava de camioneta. Esse era o nosso petisco. Depois era as sardinhas, quando havia e conforme o preço. E nós comíamos uma sardinha para três. Às vezes dizíamos: “Ó mãe, da outra vez comi a cabeça”. E ela dava-nos o rabo. E a minha mãe, às vezes, coitada, comia só o pãozinho no molho da fritura. (emociona-se)
Era mesmo um outro país… Chegaram a passar fome?
A nossa mãe cozia pão à sexta-feira. Às vezes, na quarta-feira seguinte já não havia, e às vezes, na quinta, ainda havia qualquer coisa. Mas depois aquelas migalhas sabiam tão bem! Já com os meus oito ou nove anos começou a haver uma venda de pão particular, que andava pelas aldeias, e que vendia os chamados biquinhos. A minha mãe começou por comprar três biquinhos, que dava metade para cada um de nós ao pequeno-almoço. Por último, já havia um biquinho para cada um. Fome, fome, não passámos, mas também não houve lugar para dizer que estávamos a abarrotar. (risos)
Foram todos à escola?
Sim, os nossos pais fizeram questão. O João não teve um bom aproveitamento, acho que só fez a terceira classe, mas, depois, o Zé, o Delfim, todos nós fizemos a quarta classe. Eu tive sorte porque naquela altura não havia mistura, então as meninas tinham aulas de manhã e os rapazes à tarde, por isso dormia mais um bocadinho.
E o António, também lhe calhou esse sistema?
Ele andou na escola em Fiscal. Nasceram uns quantos irmãos em Fiscal, numa casa; depois, mais tarde, é que os meus pais compraram aquela casa no Lugar do Monte e foram viver para lá, para a casa de que temos estado a falar.
Os seus irmãos mais velhos certamente terão memórias, mas recorda o momento dos partos dos seus irmãos?
Não me recordo. Mas os meus pais tinham cuidado. Quando faleceu esse meu irmão Carolino, com 21 meses, nós estávamos em casa e a minha mãe tinha ido ao médico com ele, que estava muito fraquinho. No regresso, ela vinha com ele ao colo, a pé, de Vila Nova – são uns quatro quilómetros e tal. E o menino faleceu nos braços da mãe, no caminho. Quando ela chegou a casa com ele morto, recordo-me de a minha mãe dizer para a Amélia, que tem mais cinco anos do que eu e já ajudava muito: “Leva os meninos para a loja”. A loja era a parte de baixo, onde havia a adega com os pipos de vinho, onde o meu pai tinha uma oficinazita de carpintaria. No inverno, quando chovia, era para lá que íamos brincar. A Amélia levou-nos, para não vermos o menino, e a minha mãe levou-o para o quarto, onde ficou à espera que o meu pai chegasse do trabalho. Mas nós não fomos alertados nem fomos ao funeral, nem nada disso, nem vi o corpo.
Essa imagem é profundamente comovente… Uma mãe a morrer-lhe o filho nos braços, num caminho, e ter de o velar sozinha até que chegasse o pai.
A minha mãe… foi uma heroína. (emociona-se)
Consegue-se ser uma mãe meiga, com tantos filhos, em circunstâncias difíceis?
Ela passava dificuldades, e como mulher teria os seus dias péssimos. Para já, a alimentação era fraca, e o que ela tinha oferecia aos filhos. Era mulher muito rija, mas sempre franzina. Como adulto é que entendo que se notava que ela devia ter o problema do período mensal, e por isso víamos que às vezes tinha menos paciência para nós. Às vezes estávamos a jogar futebol cá fora, à noite, à espera que ela nos dissesse para irmos comer o caurdo, e quando nos chamava ficávamos mais um bocadinho. Nos dias em que ela tinha paciência, tudo bem, mas quando estava sem paciência chegou a vir cá fora numa ocasião e, com uma faca, cortou-nos uma bola que tínhamos, que era coisa rara – devia ter sido dada pelo João ou pelo António ou pelo Zé, já não sei, nós não tínhamos dinheiro para nada. Nesse dia víamos que estava alterada – o que é mais do que normal.
Lembra-se de ver os seus pais a chorar ou eram pessoas animadas?
(faz silêncio) Quando os meus irmãos iam lá passar férias, era… era uma alegria. Depois, na hora da despedida, quando o meu pai sabia que um filho se ia embora, fosse qual fosse, ele ia para o eido.
Nunca dizia adeus?
(chora) Nunca, sempre que íamos embora, ele não era capaz de enfrentar. Era a todos por igual. O meu pai era uma pessoa fantástica. A nossa família sempre teve um contra, que não era culpa da família, mas do sistema: nós todos fomos obrigados a sair cedo de casa. Convivi pouco com os meus pais, saí de lá com 11 anos, quando voltávamos eram dois, três dias. Depois o meu pai faleceu muito cedo, em 76, tinha 64 anos. A minha mãezinha já ia a caminho dos 90. Os meus pais deram-nos o que podiam dar. O que queria dizer é que somos muitos mas, durante muitos anos, nós não nos víamos. A Lurdes foi para Moçambique. O Delfim foi com 14 anos para Angola, lá fez a tropa e casou. Lembro-me de uma situação da partida dele: sempre que havia viagens, a minha mãezinha fazia uns bolinhos de bacalhau fritos para depois comermos no caminho. Naquela euforia da despedida dele, a camioneta veio e os bolinhos ficaram lá esquecidos. E recordo que fui eu que alertei a minha mãe: “Ó mãe, estão aqui os bolinhos!” E ela: “Ai, meu rico filho…” Para nós foi bom, que o almocinho foi melhor. (risos)
Mesmo com pouco, os que iam levavam sempre qualquer coisa.
Ela tinha sempre essa preocupação. Quando vinham, depois, era uma alegria, e aqueles dias que ficavam lá eram sempre bons, tirando depois o António, que era mais ríspido para nós – mas quando ele se ia embora dava-nos sempre o chorozinho.
O António em criança já era um bocadinho excêntrico ou nunca lhe contaram nenhuma história sobre ele?
Como sou mais novo, não tenho imagens disso, mas por palavras da minha mãe, sim, já era diferente. Atenção que numa ocasião eu próprio pedi à minha mãezinha para me trazer uns ganchinhos para o cabelo. (risos) A minha irmã Amélia disse logo que os ganchinhos eram para as meninas. Sabia lá eu o que estava a pedir… Éramos todos mexidos, tínhamos o mesmo espírito dos nossos pais. E acho que todos herdámos a capacidade que eles tinham de estarem bem-dispostos, bem-humorados. A minha mãe, então, as pessoas choravam a rir. As mulheres perguntavam: “Ó Deolinda, amanhã vais a que missa?” Isto para ir atrás dela para ouvir as histórias que ela contava. Ela tinha um poder de imitar as pessoas… nós dizíamos, lá em cima, arremedar. “Ó Deolinda, arremeda lá tal”. Ela apanhava o ponto fraco nas pessoas, fosse a dicção ou a forma de estar, e fazia um teatro. E ia um séquito atrás dela para a missa só para ouvi-la falar.
Seria uma boa atriz…
(risos) Sem dúvida. E o meu pai também, tinha uma capacidade teatral. A minha mãe tirou a quarta classe; o meu pai, não. Quem ensinou o meu pai a escrever foi a minha mãe, depois de casados.
O António trouxe-o para Lisboa por livre e espontânea vontade ou foram os seus pais que pediram?
Não, ele é que pediu aos pais. Eu tinha acabado a quarta classe em junho de 63, e, em setembro, a minha mãezinha arranjou-me emprego na Feira Nova, numa loja de fazendas. Limpava o chão, arrumava os botõezinhos e as peças de fazenda.
E odiou esse trabalho.
Não deu tempo para odiar, mas que estava farto, estava. Há um dia em que fiz uma cena muito similar ao António. Estava a embirrar porque ainda eram uns quatro quilómetros a pé, custava-me mais era vir de noite sozinho. Foi o inverno mais terrível que passei da minha vida. Era uma criança, tinha certos medos, e chegou a uma altura em que me deu o cansaço.
A sua mãe ia à missa todos os dias?
Houve uma altura em que sim, e a missa era às 6h30 da manhã. Era muito devota, e porque havia missas por alma deste e daquele, ela fazia questão. As missas eram cedo para as pessoas depois poderem ir trabalhar para os campos, muitas vezes levavam logo as enxadas, que ficavam à porta da igreja.
E como foi para Lisboa?
Já não sei como foi em específico, sei que a minha sorte foi que o António foi lá passar umas férias em agosto e disse: “Vou levar o Luiz comigo e arranjo-lhe lá emprego, que isto não é vida para ele”. Ele tinha 19 anos, já tinha seis anos de Lisboa, e sempre foi muito determinado e responsável. Foi daquelas crianças que se fizeram adultos rápido.
Lembra-se dessa viagem? Imagino que tenha sido a primeira vez que foi a Lisboa.
Foi. Saímos de casa a uma quarta-feira, havia uma camioneta na Feira Nova às nove da manhã. Esperámos depois pelas 11h30, por uma camioneta que vinha do Gerês para Braga. Depois, em Braga esperámos até às 16h00 para apanharmos o comboio para o Porto. O comboio tinha assentos de madeira e a máquina ainda era a lenha, era fuligem por todo o lado. Depois chegámos ao Porto por volta das 19h00 e esperámos em Campanhã pelas 23h30 para o chamado correio, que vinha para Lisboa e demorava a noite inteira. Chegámos a Lisboa às nove da manhã – um dia, literalmente. Quando cheguei a Santa Apolónia vi um senhor com uma farda e digo ao António: “Olha, aqui também há músicos!” As bandas sinfónicas usavam na altura uma farda parecidíssima com a da PSP. Eu sabia lá o que era um polícia! Vi o cassetete e pensava que era o pífaro. E ele: “Ó rapaz, aquilo é um polícia! Se não sabes, não falas, tu não abras essa boca”. Ele tinha medo que eu dissesse estas alarvidades publicamente, o António já era muito…
Cosmopolita.
Muito! Nessa altura, ele tinha dois amigos fantásticos, o Cláudio e o Luís. Ao domingo, depois de almoço, corriam Lisboa inteira a ver montras. O António ia pôr-me a um cinema que havia ali na Graça, sabia que eu gostava dos filmes de cowboys, e assim eles também ficavam mais à vontade. E depois do filme iam-me lá buscar os três. Em 73, quando eu fui para a tropa, já era casado, e apanhava a camioneta no Campo das Cebolas para o quartel em Viseu. E ele sabia que eu ia àquela hora e fazia questão de estar ali com os amigos a despedir-se de mim. E há um dia em que chega lá só com o Luís – o Cláudio tinha morrido afogado na Caparica, nas praias onde eles gostavam muito de ir. Não conseguiram salvá-lo. Eles andavam todos pelos 28, 29 anos nessa altura. Só voltei a ver depois o Luís no funeral do meu irmão, e estupidamente não fiquei com o contacto dele, nunca mais o vi.
Esses dois amigos também trabalhavam no salão?
Não, ele quando me trouxe para Lisboa ainda era marçano na Cooperativa Alimentar, no Intendente. E nesses três meses de agosto a dezembro, até eu fazer os 12 anos, acompanhava-o todos dias para o emprego, que ele não tinha onde me deixar. Um dia levou-me até lá acima, ao Castelo de São Jorge, para eu ficar a brincar, havia lá guardas da Legião Portuguesa, e não havia perigo de as crianças brincarem na rua. Brinquei então muitas manhãs no Castelo de São Jorge: recordo-me da ponte a ser construída, dos dois postes laterais a serem colocados. À hora de almoço ia ter com ele e íamos comer qualquer coisa ao quarto, havia uma espécie de meia pensão. Ou comíamos uma sandes, uma coisa simples.
O António trouxe mais algum irmão para Lisboa?
Não, fui o único. Depois, em 65, ele arranjou-me emprego como mandarete de uma pensão, daí a razão de eu estar ligado à hotelaria até hoje. Um mandarete, ou um grume, é quem recebe as bagagens, leva os clientes aos quartos, faz os recados. É o moço de recados, que hoje já não existe.
Lembra-se do nome da pensão?
Era a Pensão Londrina, na Rua Castilho, que ainda existe. Comecei a trabalhar lá nos fins de janeiro e em março ou abril foi-se lá hospedar um casal de americanos que simpatizou comigo e, como viu o meu tamanho – eu era realmente muito franzino – perguntaram-me se eu queria estudar. Eles falavam um português razoável, perguntaram-me e eu encolhi os ombros. Depois perguntaram pelos meus pais e eu disse que estava com o meu irmão, e nessa noite cheguei ao António e disse-lhe. E ele: “Isso é interessante, amanhã vou falar com eles”. Foi lá falar com o casal americano, que já tinha ido falar com um colégio, o externato de Alvalade no Campo Pequeno, que já não existe, e fizeram um contrato com o diretor do externato. Eles queriam que eu deixasse de trabalhar para estudar, e aí o António esteve mal, entre aspas, porque na sua boa vontade de pensar fazer de mim um homem achou que eu tinha capacidade para trabalhar e estudar. Comecei a estudar, mas na pensão não me davam horário para estudar de manhã, e ele foi falar com uma senhora, a dona Beatriz, e arranjou-me outro emprego no Hotel Internacional. Ela foi muito simpática, compreendeu o significado das coisas, então eu entrava às 13h00 no Hotel Internacional e saía às 21h00.
E de manhã ia para o colégio estudar.
Sim, depois deixei o António e passei a dormir no colégio que, embora não fosse interno, lá arranjaram um sítio para dormir lá.
E como é que o seu irmão aceitou isso?
Nós dormimos durante um ano e pouco na mesma cama, por isso claro que também foi confortável para ele a minha saída. E entretanto, em 1966, ele foi para a tropa, foi para Braga fazer a recruta. Fiquei ainda a estudar, já estava no segundo ano do liceu. Só que eu depois, sozinho, a gostar tanto de filmes e livros de cowboys – até aprendi um pouco a ler por causa deles, devorava aquilo -, comecei a entrar em descalabro. Enfim, era uma criança sozinha em Lisboa. Em 67, ele já sabia que ia para Angola e quis saber como é que eu estava. Foi então falar com o diretor, que lhe disse: “António, o seu irmão não quer estudar, não conseguimos fazer nada. Ele vem aqui dormir, podia assistir às aulas, mas não quer. Nem vou levar o seu irmão sequer a exame”. O António lá chorou um pouco e pediu para me deixarem pelo menos ir a exame, e, por misericórdia, o diretor lá me levou.
E chumbou. (risos)
A única coisa em que eu dava alguma coisinha de jeito era o francês e até aí foi uma desgraça. (risos)
Então ficou sem sítio para dormir! Para onde foi morar?
De castigo, o António levou-me outra vez para a terra. Tinha 14 anos.
Que leitura é que faz dessa história, sente que perdeu uma oportunidade de ouro?
Não sinto, acho que foi uma parte engraçada da minha vida. E a minha mulher, às vezes, diz-me: “Ainda bem que não estudaste, senão não te conhecia!” (risos) Mas foi assim, ele foi lá pôr-me de castigo e fiquei em casa dos meus pais em junho, julho e agosto. O meu pai queria que eu fosse acabar o segundo ano, mas eu não queria estudar.
E depois foi fazer o quê?
Em setembro fui trabalhar para as vindimas na Quinta do Regato. Pagavam na altura 14 escudos por dia às raparigas e rapazes, 16 às mulheres e 22 aos homens. Mas, na primeira semana, a senhora pagou-me como um homem, disse que viu que eu tinha trabalhado arduamente e não andava lá a namorar como os outros. A vindima demorou quase três meses e, no fim, ela disse-me: “Para o ano cá o espero!” Claro que no ano seguinte já não estava lá coisa nenhuma.
Voltou para Lisboa?
A minha mãe já me tinha arranjado um emprego num café em Braga, uns meses, e foi o João, o mais velho, que trabalhava na Tirol de Sintra, que me foi resgatar. Foi lá passar umas férias e disse aos meus pais que me arranjava emprego no sítio onde ele trabalhava. Vim para a Tirol precisamente com 15 anos, que foi quando comecei a descontar, a 28 de maio. O patrão não era grande coisa, mas nesse aspeto foi honesto. Foi até ele que encontrou no jornal um curso de empregado de mesa em Lisboa onde pagavam. E pagavam 800 escudos por mês para tirar o curso! Então aproveitei.
Isso em que ano?
Em 69, entretanto estava já o António em Angola. Ele esteve lá desde 67 até quase 70.
Percebeu nesses anos que ele era homossexual?
Não, nunca falámos sobre isso. Depois, com o tempo, apercebemo-nos, mas não era um assunto. Ele respeitava os outros, nós também o respeitávamos a ele, sempre foi assim. [pega no CD] Há aqui quatro temas com história ligada ao António: a primeira canção, Fui a Braga, é dedicada ao meu irmão. Recordar Variações foi a outra, e também a dedico a ele. Uma é direcionada para o homem, o artista e o cantor, outra sobre a saudade. E há aqui esta Curva Ilusória porque, quando morei com ele, já na altura ele cantava e usava a casa de banho, que tinha uma acústica fantástica, e treinava um bocadinho a voz com umas canções fantásticas. Só decorei o refrão de uma das canções que ele cantava nessa altura – agora, se eram canções já escritas por ele, não posso dizer. Estamos a falar de 64 e só em 70 e tal é que ele se começou a dedicar mais afincadamente a isso, embora eu não saiba quanto tempo é que ele demorou até chegar lá. Mas ele cantava esse refrão que me ficou na memória, então escrevi um poema, idealizei o som, e essa música é a tal que se chama Curva Ilusória. Uma outra canção é o Lodo.
Porquê Lodo?
É engraçado. Casei-me em 72. O António veio de Angola em 70, depois esteve a trabalhar um período no Algarve, e depois apareceu por aí, e quando veio saber de mim eu já estava aqui a trabalhar no Hotel Palácio, entrei aqui em abril de 71. Depois chegou a vir cá várias vezes para me ver, ele era fantástico para a família. Não dizia onde estava, mas sempre se preocupou muito com os irmãos e com os pais, sempre.
Que bonito.
Tinha um coração de ouro. Quando me veio ver dessa vez teve a hombridade de me dizer: “Sinto que estás chateado comigo porque às vezes fui severo demais contigo”. Ele reconhecia que se calhar tinha sido um bocado severo demais, o que me levou a afastar um pouco dele, porque ele era um bocadinho austero.
Estava a tentar ser um pai.
Exatamente, e eu disse-lhe: “António, fizeste o que tinhas a fazer e eu agradeço-te”. Ele ter-me levado de volta para a terra foi uma bênção, porque eu ficava aqui entregue à bicharada. Ele fez o que era correto.
Não deixar uma criança de 14 anos que não se conseguia orientar.
Exato! Embora eu já reconhecesse os meandros, já me conseguia desenrascar, já ia nos dias de folga para O Piolho, a alcunha do Salão Lisboa, no Martim Moniz. Corria esses cinemas baratinhos todos, eram 25 tostões, três escudos. Nunca entrei no São Jorge. Olhe, penso que vou entrar no São Jorge agora pela primeira vez quando for à antestreia do filme. Mas voltando à história, dessa vez que ele veio ter comigo ao hotel também foi para me dizer: ‘Já me disseram que vais casar. Vê lá, Luís, ainda és tão novo’. Eu tinha 19 anos. Mas ele viu que eu já tinha tomado a decisão e então apoiou-me. Fomos, à Graça, mandou fazer um fato para ele e outro para mim…
Para o casamento?
Sim, dois fatos iguais, o dele tinha uma abazinha assim mais larga. E ele uma semana depois do casamento foi lá levar-me o fato dele, disse que já não o ia vestir mais. Foi ele que pagou os fatos e foi o único irmão que esteve no meu casamento.
Onde foi?
Foi na Arrentela, Seixal, em casa de uma cunhada. Não tínhamos nada, foi ela que nos apoiou. O padre do Seixal ia de férias nesse fim de semana, por isso tivemos de ir à Arrentela. E o António foi o único que nos conseguiu ir apoiar, e esteve lá no casamento e no beberete.
Acha que lhe deu o fato dele porque já vestia coisas diferentes nessa altura? Por exemplo, quando ele veio ter consigo aqui ao Hotel Palácio como vinha vestido?
Já dava muito nas vistas, as pessoas já me perguntavam se aquele era o meu irmão (risos). Já tinha as barbas e as roupas dele que são indescritíveis para o momento, e para nós comuns. Toda a gente ficava admirada com aquela roupa.
Onde é que ele as comprava?
Todas as terças-feiras ele ia à Feira da Ladra. A maior parte das relíquias e bibelots que ele tinha foi tudo lá comprado, e as roupas também. Depois também idealizava as suas roupas e pedia a um alfaiate ou assim. Ele não cosia, mas há muita gente que pensa que sim. Idealizava as coisas e às vezes aparecia com a blusa de uma senhora modificada, eram as coisas que ele gostava.
E nessa altura ele já trabalhava no cabeleireiro?
Trabalhou na Holanda onde tirou uma aprendizagem de cabeleireiro, depois foi para o Algarve e primeiro veio para o Imaviz, onde conheceu o Júlio Isidro e por aí fora. Foi quando meteu na cabeça que queria uma barbeariazinha para ele e foi encontrar o espaço que idealizou na rua de S. José, onde eu cheguei ir arranjar as tomadas. Pouca gente sabe que ele ainda trabalhou aqui no centro da Parede, num cabeleireiro misto, do senhor Jorge e da dona Mimi. Quando me casei fui para a Amoreira, aqui perto, para um quarto alugado em casa de uma senhora viúva onde a minha mulher já vivia. Devido à proximidade com esse cabeleireiro, ele ainda veio muitas vezes ter connosco antes de voltar para Lisboa. A minha mulher fazia uns rissóis de camarão que eram uma delícia, com umas saladinhas e um arrozinho de tomate e ele gostava muito. Um dia chegou lá a casa e viu uns papéis na entrada e perguntou quem tinha escrito. Tinha sido eu. Ele pediu para levar e passados uns 15 dias foi lá outra vez jantar e a primeira coisa que me disse foi: ‘sabes, já fiz a música para o refrão do teu poema’. Isto foi em 72, entrámos em 73 e depois houve um período em que ele esteve mais desaparecido e deixámos de nos ver tão regularmente. Não me lembro do poema, mas do refrão nunca esqueci. Então escrevi um novo poema para esse refrão e dei o nome de Lodo, que estava a contar à bocado, devido à condição em que o ser humano se arrasta na sociedade. Mas sei que ele nunca usou esse refrão.
O António então começa a tornar-se numa sensação. Quando percebeu isso?
Estava em casa, num dia de folga, já tinha dois filhos nascidos. A televisão na altura tinha aquela emissão que abria ao meio-dia e fazia sempre uma parte musical de entrada, em que só se ouvia a voz. E nós: ‘Olha, esta é a voz do António!’ Estava a cantar Povo que Lavas no Rio. Ele nunca tinha dito que ia fazer este projeto, o Jaime também não sabia, porque ele nesse aspeto era reservado.
Quando o ouviu uma música dele?
Nessa altura, tinha um Taunus 17 M, azul, muito bonito e que só tinha um problema: bebia mais do que eu. Ele dizia sempre que um dia me ia comprar o carro – ele não conduzia – e um dia fomos jantar a Alcabideche e eu pedi-lhe para ele cantar o Estou Além, queria ouvi-lo. Ele cantou algumas palavras dentro do carro, e eu fiquei assim… arrepiado. Nunca o tinha ouvido assim. Na terra ele já cantava, cantávamos todos, somos todos cantadores, mas o único artista era ele. O António é que encanta, mais ninguém.
Chegou a ver algum concerto dele?
Vi um, aqui em Janas, em Sintra. Antes de começar demos lá uma volta e havia lá uma igreja circular, muito típica, e nessa altura ainda se fazia lá a bênção dos animais. Estivemos lá a jantar todos e lembro-me de ele gostar muito dessa parte. Achei fantástico vê-lo no palco. Ele transformava-se.
Notava-se muito essa metamorfose, a diferença para a vida real?
Sim porque na vida real ele era muito tímido, pacato. Tinha alguns amigos mas era ele que os escolhia, não eram impostos. Tinha um sentido de humor incrível mas que reservava para si mesmo. Ainda noutro dia estive a discutir isso mais uma vez com o meu irmão Carolino, por causa da canção Anjo da Guarda. Os meus irmãos entendem que é um cântico religioso, eu acho que é uma sátira à sociedade, até pelas palavras dele. Por exemplo, o meu irmão não tinha paciência para crianças, mas adorava as pessoas idosas e tinha pena delas. E na canção Ao Passar Por Braga Abaixo a última estrofe é precisamente sobre um velhinho, em alturas de S. João, ali abandonado. Ele achava que os meus pais mereciam tudo, e fez questão que eles tivessem o melhor. O meu pai infelizmente faleceu sete anos antes dele e já não assistiu à vida artística do António.
E acha que ia ser uma alegria ou uma preocupação para ele?
Penso que iria ser um confronto, mas claro que não posso prever reações. A minha mãe reagiu muito bem.
Nos anos 80 falavam muito do sucesso dele, em família, ou nessa altura, por causa da distância, continuavam afastados?
Foi mesmo isso: tínhamos pouco contacto uns com os outros. Só praticamente depois da morte do António é que nos começámos a juntar um pouco mais, infelizmente é mesmo assim. A tragédia é que nos juntou de certa forma.
Quando é que o Luiz soube que ele estava doente?
Olhe, é uma tristeza dizer isto, mas é a verdade. O António sempre se isolou e só contava as coisas que queria contar – mas, repito, sempre cuidou da família. E quando aparecia, aparecia. Estava aqui a trabalhar e há um dia de manhã em que entra um colega que me diz: ‘Então o teu irmão, está doente? Fui ao Pulido Valente ver um familiar e ele estava lá’. Eu não sabia nada. O Jaime também soube por outra pessoa. Depois ele fez a transição para a Cruz Vermelha, onde esteve praticamente mais um mês. Cheguei a dormir lá com ele, a fazer-lhe companhia, a Lurdes também dormiu lá umas noites. Um dia chego lá e estava a equipa médica de volta dele, que foi quando foi para a máquina. Depois foi mais uma semana e tal.
Qual era o estado de espírito dele por esses dias?
Num dos dias em que estava lá a dormir apareceu a banda que tinha feito com ele o Dar e Receber, agora não me recordo do nome deles. Foram lá para lhe mostrar o desenho da capa, para ser lançado. ‘Oh António, estamos à tua espera, isto está tudo prontinho para sair para a rua’. E ele só disse: ‘Está muito giro. Já passa nas rádios? Quero ver se fico bom’. Era terrível.
Depois do António morrer e até pela causa de morte, e quando se começou a falar mais de homossexualidade, como reagiu a vossa mãe?
À minha frente nunca falou disso, mas eu pouco lá ia, nunca mais passei férias no Pilar. Agora estamos todos a tentar recuperar um pouco o tempo perdido, e o António é o agregador, por causa destes projetos de homenagem aos quais estamos a tentar dar o nosso apoio.
Esta semana a Câmara de Amares anunciou que vai atribuir a ‘medalha de ouro’ a título póstumo ao António. Como veem este reconhecimento, sentem que é uma coisa boa ou tardia?
É sempre uma coisa boa, mais vale tarde do que nunca. Em junho estive em Braga num espetáculo com o projeto Onda Amarela e quando os vi reunirem pessoas de todas as idades a tocar e, acima de tudo, um coro de vinte e tal pessoas da freguesia do António, Fiscal… Quando vi aquelas pessoas de Fiscal, 35 anos depois… A gente sabe que o António passou mal na terra até depois de morto, por causa desses engendramentos à volta da morte dele, etc. Vejo com alegria que as pessoas estão a mudar a mentalidade e a aceitar um artista, um poeta e um cantor e não se estão a meter na vida pessoal dele.
De que engendramentos fala?
Sempre houve constrangimentos por parte de mentalidades locais. Em Fiscal e Amares, nas periferias, ainda há pessoas a quem custa aceitar certas coisas.
O filme é fiel à história do António?
Vai ser um desafio para algumas mentalidades, inclusive para a família. Quem o viu atualmente fui só eu, a minha esposa, o meu irmão Jaime e o meu sobrinho Jaime. O resto da família, como está longe, ainda não viu, mas a Amélia e o Carolino tiveram parte ativa nas gravações. Já tive oportunidade de dizer ao João Maia [realizador] – que esteve aqui há 12 anos comigo, mais a irmã, quando eles começaram a tentar fazer o projeto, como sabemos isto esteve tudo em banho-maria até se resolver a situação – que o filme retrata de uma forma honesta e sincera a história do António. Ponto final. Qualquer filme tem que ser ficcionado, há verdades que ficam feias se não houver um bocadinho de ficção. E há um bocadinho da ficção normal, mas está feito com dignidade e a história do António está contada. Acho que está bem e agradeci ao João, agora o meu irmão Jaime é de outra opinião e cada um dos irmãos terá a sua, que vou respeitar.
No filme há uma cena em que ele, já doente, vai à terra.
Aí entra a ficção: para já, o António nunca deu nenhum concerto em Fiscal, mas o concerto foi dado na freguesia de Carrazedo, tanto que na campa dele está uma placa da comissão de festas, acho que foi de 83 ou 84, a agradecer por ele ter ido lá cantar sem levar dinheiro. E quando ele foi lá tocar estava bem, estava intacto. Depois voltou lá a uma terra ao pé de Barcelos para atuar, e aí é que já estava mal, até pediu desculpa ao público. E os dias finais dele de cantar foram em Coimbra.
Foi o seu irmão que o inspirou também a cantar?
Sem dúvida. O António só fez coisas boas, deixou ficar uma mina bem montada com muito material lá dentro, com canções que, para mim, são um retrato fiel das vivências. E o que tento imitar, com toda a humildade, porque o António não tem imitação, vem tudo dele. E de certa forma é o retrato da vida que vivi, que na infância foi igual ao António.