
Quando era criança, Ângelo Fernandes foi vítima de abuso sexual. Depois de muitos anos em silêncio, criou a Quebrar o Silêncio para ajudar outros homens na mesma situação.
Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio, uma associação de apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Garante que homens nesta situação demoram muito tempo a procurar apoio e por isso são necessárias mais associações deste género. Quando tinha dez anos foi abusado sexualmente por um amigo e foi esta experiência traumática que o fez criar a Quebrar o Silêncio, com o objetivo de ajudar mais homens nesta situação, uma vez que, nos dias de hoje, ainda existe muita desinformação e preconceito. Ao i, por email, falou dos casos que chegam à associação.
Criou a Quebrar o Silêncio. Com que objetivo?
Fundámos a Quebrar o Silêncio para que os homens que foram vítimas de violência sexual tenham o apoio de que precisam. Esta foi a principal razão que nos moveu. Até à Quebrar o Silêncio não havia nenhuma resposta como esta, e era uma necessidade que precisava de ser colmatada em Portugal. E por isso decidimos criar uma resposta especializada, gratuita e confidencial para que estes homens possam ultrapassar as consequências e o impacto gerados pelo trauma da violência sexual. E sabemos que estamos a consegui-lo através do feedback dos homens que procuram os nossos serviços de apoio. Os próprios homens dizem-nos que finalmente encontraram um espaço seguro que os recebe sem juízos de valor, que os escuta, e que estão a partilhar as suas experiências de abuso pela primeira vez nas suas vidas. Além do apoio que prestamos, também quisemos começar a desocultar a realidade de que os homens também são afetados por esta forma de violência. Existe muita desinformação e muitos preconceitos. Por isso quisemos também iniciar um diálogo para informar o público sobre a complexidade e a dimensão desta realidade, para que mais homens vítimas saibam que existe um espaço seguro e um apoio especializado dirigido especificamente para eles.
Foram então essas as principais razões para criar a associação?
Sim, e porque não havia nenhuma resposta em Portugal especializada no apoio a homens que foram vítimas de violência sexual. De um modo geral, sabemos que não é fácil para os homens procurarem apoio e, quando falamos de um tema tão tabu e estigmatizado como a violência sexual, sabemos que as probabilidades de procurarem apoio são ainda menores. Não é por acaso que a maioria dos homens procuram o nosso apoio 20 a 30 anos depois do abuso.
Quantos homens vos pedem ajuda?
Com os nossos esforços para aumentar a visibilidade desta causa e para desocultar esta realidade, vamos registando um aumento no número de pedidos que chegam à Quebrar o Silêncio. Posso dizer que desde a nossa fundação, a 19 de janeiro de 2017, mais de 215 homens procuraram os nossos serviços de apoio. À medida que os nossos serviços vão sendo mais conhecidos e que vamos chegando a mais pessoas, vamos conseguindo chegar a mais homens que possam precisar do nosso apoio.
Conseguem chegar a todos?
Quando um homem que foi vítima de violência sexual procura a Quebrar o Silêncio e pede apoio é porque, normalmente, chegou a um ponto de rutura, está em crise, e muitas vezes sente que não aguenta mais, que chegou o momento de procurar ajuda. Por vezes, após um primeiro contacto, há homens que sentem a necessidade de se organizar um pouco antes de prosseguir com o processo de recuperação. É importante reconhecer que cada caso é único e que não existe um guião que dite como se devem comportar. Cada homem tem o seu próprio tempo. Na Quebrar o Silêncio conhecemos bem a realidade dos homens sobreviventes de violência sexual e respeitamos o tempo interno de cada homem que nos procura.
Nos casos dos homens que não podem vir presencialmente à associação, temos opções como videochamada para que consigamos chegar a todos os sobreviventes que nos procuram. Isso é muito importante para nós.
Que tipo de histórias passam pela Quebrar o Silêncio?
As histórias que passam por nós são de homens que viveram, na sua grande maioria, em silêncio, que nunca tiveram oportunidade de partilhar com alguém a sua história de abuso e que sofreram anos, ou mesmo décadas, em silêncio. São homens que muitas vezes se sentiram isolados, acreditando que eram um caso único e que não tinham o direito de procurar apoio porque estavam consumidos por fortes sentimentos de vergonha e de culpa pelo que lhes aconteceu. A maioria dos homens que procuram a Quebrar o Silêncio foram vítimas de abuso na infância e por alguém que lhes era próximo, muitas vezes por um membro da própria família. São experiências que podem ter um impacto e consequências devastadoras na sua vida e desenvolvimento. Por isso usamos também o termo sobreviventes, porque estes homens são uma prova de força e coragem, de resiliência e sobrevivência diárias. Apesar de a maioria dos abusos acontecerem maioritariamente na infância, não significa que os homens adultos também não possam ser vítimas de violência sexual. Também temos casos assim e é preciso começar a desocultar esta realidade.
Que tipo de apoio dão a quem vos procura?
Os serviços de apoio que prestamos são acompanhamento psicológico, grupos de ajuda mútua e apoio entre pares. O acompanhamento psicológico é feito com sessões individuais presenciais. Por vezes, os homens que nos procuram vivem longe ou não podem deslocar-se à associação, pelo que disponibilizamos também um acompanhamento psicológico por videochamada. Deste modo, não há nenhum homem que fique sem o nosso apoio, independentemente da sua zona de residência. Nalguns casos, quando há homens que precisam de algum tempo para construir uma relação de confiança connosco, também prestamos apoio por email. Este é um apoio, digamos, introdutório, para ajudá-los a organizar as suas ideias e pensamentos até se sentirem capazes para iniciar o acompanhamento psicológico. O mesmo acontece com o apoio entre pares. O grupo de ajuda mútua é um espaço que é valorizado pelos homens porque lhes permite ter contacto com outros sobreviventes e que os ajuda a organizar as suas ideias e pensamentos, e também a ultrapassar as consequências que o abuso teve nas suas vidas. Todos estes serviços são gratuitos e confidenciais. É muito importante para nós que os homens se sintam seguros, num espaço livre de juízos de valor que proteja a confidencialidade do que partilham connosco.
O próprio Ângelo passou por uma situação complicada. O que aconteceu?
Quando tinha dez anos fui abusado sexualmente por um amigo da família. Durante toda a minha vida sofri em silêncio e julgava que era um caso único, isolado. Tal como eu, muitos homens sobreviventes acreditam que estão sozinhos, que têm algo errado. Mas não têm e é preciso reconhecer que não há nada de errado com estes homens. Por isso precisamos de informar, cada vez mais, o público sobre esta forma de violência, para educar e sensibilizar. Foi isso que aconteceu comigo. Por acreditar que estava sozinho, nunca senti que podia partilhar com alguém esta experiência de abuso e, por isso, pedir apoio era simplesmente impossível. Só depois dos 30 anos é que consegui finalmente procurar ajuda. Durante toda a minha vida senti uma imensa vergonha e culpa pelo que me aconteceu. Foram anos muito complicados da minha vida que afetaram o meu desenvolvimento e a minha relação com os outros. À medida que fui fazendo o meu processo de recuperação, fui aprendendo que não era de todo um caso único e que havia mais homens que haviam sido abusados sexualmente. Hoje sabemos que um em cada seis homens é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos. Quando não temos informação que nos ajude a enquadrar e a explicar o que sentimos, podemos realmente sentir-nos perdidos. E é por isto que muitos homens passam também. Quando decidi tornar a minha história pública foi exatamente no sentido de iniciar um debate público sobre estes casos e também de mostrar a outros homens que tenham sido vítimas de abuso sexual que não estão sozinhos. Este efeito de identificação é muito importante e muito poderoso. Sempre que publicamos novos testemunhos no site da Quebrar o Silêncio sabemos que é mais uma forma de chegar a mais homens, e é isto mesmo que nos dizem quando mais tarde nos procuram.
De que forma é que esse episódio mudou a sua vida?
Ter passado por uma situação de violência sexual afetou o meu crescimento e desenvolvimento enquanto criança e o meu futuro enquanto jovem e adulto. E isto por mais que socialmente não fosse identificado nada em concreto pelas outras pessoas, isto é, aos olhos dos outros, eu aparentava ser uma criança perfeitamente “normal” e feliz, socializava com facilidade. No entanto, internamente, a realidade era outra. Passei a ter dificuldade em confiar nas outras pessoas, porque este tipo de trauma pode abalar a forma como a criança estrutura as suas relações. Quando alguém próximo de nós quebra a confiança e a amizade que criou e alimentou connosco para abusar sexualmente, há também uma quebra dessa confiança, o que pode transtornar os modelos de relação saudáveis. Durante muito tempo não era capaz de investir ou de me envolver emocionalmente com outras pessoas, amizades ou intimamente, porque isso representava sempre um enorme risco. Também tive vários pensamentos suicidas, sentimentos de raiva e de frustração, vivia em grande sufoco, numa asfixia sofrida totalmente em silêncio. Esta foi a minha realidade interna durante anos e continua a ser a realidade de muitos homens que foram vítimas de abuso sexual.
Acha que ainda há um grande tabu por parte de muitos homens no sentido de denunciarem a violência de que são alvo?
Sim. Ainda há muito a fazer. Enquanto sociedade, não chegámos ainda a um ponto em que seja fácil ou aceitável para um homem dizer que precisa de apoio ou de ajuda. Mostrar vulnerabilidade ainda é visto como uma fraqueza. Precisamos de mudar esta forma de ver os papéis do homem e também das mulheres. E é fundamental conversarmos, cada vez mais, sobre violência sexual em geral e, em específico, contra os homens e rapazes. Ao educarmos e sensibilizarmos o público sobre estas matérias vai-se contribuindo aos poucos para um contexto que seja mais propício a receber positivamente um homem que seja vítima de violência sexual.
Porque acha que isto ainda acontece?
Há ainda muito estigma e preconceito sobre a ideia de os homens serem vítimas de violência sexual. Há muitos mitos que se tornam obstáculos à procura de apoio. Por exemplo, ainda está muito presente a ideia - errada - de que o homem simplesmente não pode ser vítima de abuso sexual, ou que só os homossexuais é que abusam de outros homens - tudo ideias erradas que reforçam mitos e preconceitos. À medida que vamos desocultando esta forma de violência, vamos trabalhando para um contexto mais recetivo a este tipo de situações, a este tipo de crimes. Sempre que publicamos um novo testemunho no site da associação, recebemos mais pedidos de homens que se identificam ou com a situação retratada ou com as palavras usadas.
Li num artigo que escreveu que um homem que tenha sido abusado sexualmente na infância demora cerca de 26 anos a procurar apoio. Que motivos aponta para que casos destes aconteçam?
Há vários motivos que levam a que um homem sobrevivente seja silenciado durante anos. Na maioria dos casos, o abusador é conhecido da vítima e exerce todo um processo de manipulação e sedução da criança (grooming). Esta manipulação faz com que a criança se sinta envolvida e também responsável pelo aconteceu. Todo este processo gera sentimentos de culpa e de vergonha que encerram as crianças nesse silêncio. À medida que os rapazes crescem diminui a probabilidade de partilhar com alguém a história de abuso. Ao crescerem, os estereótipos de género e as normas rígidas que regem as relações e os papéis sociais têm um grande peso e influência no silêncio. Os rapazes continuam a ser educados no sentido de que têm de ser fortes e resolver os seus problemas sozinhos, que não podem chorar e que o papel de vítima não cabe ao homem. São tudo ideias erradas, mas que contribuem para o longo silêncio. Ou seja, há todo um processo complexo de manipulação por parte dos abusadores que tem um peso significativo no silenciamento das vítimas, mas depois também existe toda uma dimensão social que contribui para a manutenção desse mesmo silêncio.
Voltemos à associação que criou. Como foi o início? Receberam muitos pedidos de ajuda?
Foi um início muito trabalhoso. No primeiro mês registámos 19 pedidos de apoio, tendo seis desses pedidos acontecido nas primeiras 24 horas. Este início demonstrou realmente que era necessário haver uma resposta de apoio especializado como a nossa e que a Quebrar o Silêncio tem imenso trabalho por fazer.
Qual idades tinham o homem mais novo e o mais velho que vos pediram ajuda?
Chegam-nos homens de todas as idades, sendo a média de 39 anos. Como sabemos que a maioria dos homens permanecem em silêncio por vários anos, é mais comum que nos procurem já depois dos 30 ou 40. No entanto, temos alguns casos de homens na casa dos 20 anos e outros na casa dos 60 ou mesmo 70.
Como caracteriza a justiça portuguesa no que toca a casos de violação?
Todas estas questões relacionadas com a violência sexual estão num processo contínuo. A justiça portuguesa também faz parte desta caminhada. Por exemplo, ouve-se muito falar de determinados acórdãos que revelam ideias estereotipadas que precisam de ser combatidas, mas também é preciso valorizar os bons exemplos. Recentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa reforçou a condenação de um violador, explicando muito bem a realidade das vítimas que não resistem, cuja estratégia de sobrevivência passa pela paralisação. Isto, para mim, é inovador e devia ser um ponto de não retorno. Este acórdão clarifica, e muito bem, como não se pode interpretar a ausência de resistência física por parte da vítima como consentimento da violação, e reforça outras ideias centrais como, por exemplo, que a prática deste tipo de crimes passa por afirmações de poder e controlo do abusador.
Que apoio podem esses homens ter por parte da família, amigos...?
A família e amigos podem ter um papel importante no processo de recuperação do sobrevivente. O que se passa é que, muitas vezes, as próprias famílias e amigos não estão preparados para uma partilha destas. E, para os homens sobreviventes de violência sexual, partilhar a história de abuso é um risco, é preciso muita força e coragem. E por não ser fácil, muitos homens acabam por não o fazer. Não é por acaso que a maioria dos homens que procuram o apoio da Quebrar o Silêncio estão a falar da sua história pela primeira vez. Muitos destes homens não partilharam com a sua esposa ou alguém próximo, em quem confiam, que foram vítimas de violência sexual. Por isso, uma família ou amigos que saibam receber essa partilha e possam, de algum modo, apoiar o sobrevivente podem ter um papel importante. Para tal, é fundamental saber respeitar o tempo e o espaço dos sobreviventes, mostrar-se disponível para conversar, mas não forçar este tipo de assuntos ou qualquer partilha. É também importante saber e respeitar que o sobrevivente possa não querer falar do que lhe aconteceu nem procurar apoio a determinada altura. Por vezes, e por mais difícil que seja de aceitar, demonstrar que se está disponível para conversar pode ser o suficiente.
São só as vítimas de abuso sexual que entram em contacto com a associação ou chegam a receber queixas por parte de familiares e amigos que dão a cara por quem não tem coragem?
À Quebrar o Silêncio também chegam, e cada vez mais, famílias que procuram o nosso apoio. A violência sexual afeta não só os homens e rapazes que sofreram esse abuso, mas também quem lhes é mais próximo. Por isso, muitas vezes, amigos, familiares e cônjuges passam por emoções, pensamentos e sentimentos confusos, o que afeta a própria dinâmica da sua relação. Temos casos de cônjuges que nos procuram porque precisam de informações para os ajudar a compreender o que o sobrevivente poderá estar a sentir, precisam de conhecimentos para também poderem gerir as suas expetativas. Também temos casos em que nos pedem acompanhamento psicológico porque, naquele momento, a dinâmica da relação que mantêm com o homem sofreu alguma alteração ou poderá estar num momento complicado. Também nos chegam familiares que nos procuram porque gostariam de ter mais ferramentas para saber lidar com este tipo de situações. Cada caso é realmente um caso único, seja para os homens que foram vítimas de violência sexual, seja para as pessoas que se relacionam com eles.
A associação Quebrar o Silêncio é única em Portugal no apoio a homens vítimas de violência sexual. Fazem falta mais associações como esta?
Sim. Quando falamos de respostas de apoio a vítimas de violência sexual, toda a visibilidade que contribua para a desocultação desta realidade é necessária. Ao haver mais respostas contribui-se para que esta realidade perca a característica de tabu e que mais homens sobreviventes reconheçam que podem e merecem procurar apoio.