Videojogos. Um terço das crianças portuguesas em risco de dependência

Videojogos. Um terço das crianças portuguesas em risco de dependência


Estudo estimou a prevalência da dependência nas crianças portuguesas de 11 anos. Autores recomendam aos pais a definição de regras. 


O cenário é comum em muitas casas: os miúdos agarrados às consolas e telemóveis e discussões na hora de largar os jogos para ir estudar, para a mesa ou para a cama. Perante o desabafo cada vez mais frequente em consulta, um grupo de pediatras do Centro da Criança e do Adolescente do Hospital CUF Descobertas decidiu fazer um estudo para tentar estimar o grau de dependência de videojogos nas crianças portuguesas e eventuais impactos. As conclusões foram publicadas na edição de março da revista Acta Médica Portuguesa: 3,9% das crianças inquiridas revelaram comportamentos típicos de dependência e um terço (33,3%) foram consideradas em risco. 

Hugo Faria, pediatra e um dos autores do artigo “Dependência de Videojogos: Um problema pediátrico emergente?”, divulgado nos últimos dias, descreve um fenómeno cada vez mais discutido nas consultas. “Mesmo que os pais não o refiram, perguntamos quais são os hábitos de utilização de videojogos, os número de horas. Há uma coisa de que nos apercebemos cada vez mais: é um fator de conflito na família. É muito frequente termos queixas de pais que não conseguem que os filhos joguem menos, que dizem que há discussões quando dão instruções para interromperem a PlayStation. É sem dúvida um problema atual das consultas de pediatria”.

O estudo que agora publicam resultou da aplicação de um inquérito numa amostra de 152 alunos do sexto ano de duas escolas do concelho de Cascais, um trabalho em que contaram com o apoio de uma médica de família do centro de saúde local. Permitiu quantificar o tipo de utilização de videojogos e a relação das crianças com este hobbie. Para isso, formularam questões a partir dos critérios definidos no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5) – referência nos diagnósticos de doença mental a nível mundial –, para diagnosticar dependência da internet e de videojogos (ver ao lado). 

Hugo Faria sublinha que se trata de um estudo exploratório, que dá uma primeira medida do problema em Portugal mas também dos desafios que existem nas famílias. Segundo o estudo, a maioria das crianças recebe o primeiro aparelho eletrónico entre os seis e os dez anos. Ainda assim, cinco crianças inquiridas revelaram ter começado a jogar videojogos antes dos quatro anos.

A maioria das crianças indicou passar menos de duas horas por dia a jogar, mas 19,2% reportaram uma utilização diária entre duas a três horas e 9,9% jogavam mais de quatro horas por dia durante a semana. No fim de semana, 17,1% das crianças jogavam duas a três horas diárias e 24,3% mais de quatro horas por dia. A maioria das crianças (70,9%) tem o hábito de jogar sozinha ou com amigos (58,8%). No topo das preferências estão os jogos com vários jogadores online, de aventura e de ação. 

Aplicado o questionário – que aprofunda os sentimentos ao serem privados de jogar mas também até que ponto a ligação aos videojogos os leva a deixar de fazer os trabalhos de casa, mentir ou faltarem à escola – a equipa concluiu que 3,9% preenchiam os critérios de dependência. Mas o mais alarmante, indicou ao i Hugo Faria, foi perceber que um terço das crianças podia ser enquadrado numa situação de risco. O pediatra explica que são crianças que se continuarem a ter o mesmo padrão de jogo poderão desenvolver dependência. E além disso, demonstrou também o estudo, acabam por ter outros indicadores de risco associados: dormiam em média menos do que aquelas que não tinham uma relação tão compulsiva com os jogos, o que também pode perturbar o seu desenvolvimento e desempenho académico. 

Hugo Faria descreve que pensar nos jogos quando não se está a jogar, jogar mais quando se está triste ou zangado, ficar chateado ou inquieto quando não se pode jogar e a tendência para jogar quando ninguém está a ver eram as respostas mais recorrentes, comportamentos a que os pais devem estar atentos. 

Salvaguardando que este estudo não pode ser extrapolado para toda a população, o médico defende que vem consolidar a ideia de que deve haver “contenção” na utilização dos jogos e evitar que comecem a ser jogados demasiado cedo. As recomendações da Academia Americana de Pediatria dão algumas balizas: antes dos 18 meses os ecrãs devem ser evitados e a partir daí deve haver supervisão parental. Entre os dois e os cinco anos recomenda-se até uma hora de ecrã. 

Em crianças mais velhas, mais do que impor limites de horas, Hugo Faria defende que os pais devem negociar com os filhos uma utilização que não interfira com as restantes atividades. “O que costumo dizer é que é importante não estar muito tempo seguido a jogar, fazer pausas e procurar ter outras atividades. Se calhar num dia livre jogar duas horas não será excessivo mas num dia de escola, em que se chega a casa às 18h, se se joga duas horas, não há tempo para mais nada, para a relação social com a família, contar o dia aos pais”, diz Hugo Faria. 

Além disso, é importante os pais estarem atentos a sinais como excesso de ansiedade ao largar o videojogo ou situações em que a ida de férias para um sítio sem computador é um drama para a criança. Conversar e estabelecer limites será o primeiro passo mas em casos mais preocupantes os pais devem procurar ajuda, recomenda o médico.

Muitos jogos são criticados pela violência. Hugo Faria diz que não foi possível avaliar essa componente no estudo, mas é uma questão que poderão abordar no futuro. A relação das crianças com os ecrãs e videojogos vai ser um dos destaques de umas jornadas que estão a organizar para maio, adianta. “Sabemos que existe o risco de a utilização intensiva de jogos violentos poder dessensibilizar a criança para o sofrimento. No videojogo há gritos da outra personagem, mas não há feedback do sofrimento. Existe algum medo de que isto possa interferir no crescimento e desenvolvimento da personalidade da criança mas não há estudos que mostrem essa relação de forma clara”, diz Faria. Os pais perceberem que tipo de jogos interessam aos filhos e como reagem perante as cenas é crucial. “Uma criança que está horas a jogar fechada no quarto tem sempre muito mais risco de que uma criança que joga de forma moderada na sala ao pé dos pais”.

Por que não prescrever dias sem jogar? Lá fora, o tema também tem vindo a suscitar preocupação crescente e no ano passado a Organização Mundial de Saúde incluiu a dependência de videojogos na lista de doenças mentais. Hugo Faria sublinha que, apesar do receio generalizado, não existe ainda consenso sobre qual é a fronteira e os impactos que tem, pelo que os protocolos a seguir estão também numa fase inicial. 

No Reino Unido, Amir Khan, médico conhecido pela participação num programa televisivo do Channel 5, escreveu na semana passada no Twitter que a melhor prescrição do dia tinha sido dirigida a um rapaz de 11 anos. “Nada de jogar Minecraft ou Fornite durante duas semanas, ordem de médico. Até o escrevi na receita e assinei. Boa sorte para o farmacêutico que o apanhar”, partilhou. Faz sentido ir por aí? Hugo Faria diz que ainda não teve essa experiência: a abordagem tem sido mediar a relação entre pais e filhos. “Mais do que proibir durante x tempo, é importante induzir a família a criar regras”, explica. Mas duas semanas sem jogar talvez pudesse funcionar em alguns casos, admite. “Mostra às crianças que é possível viverem sem jogos. E aperceberem-se da dificuldade que têm para não jogarem ajuda-os a perceberem que têm um problema”.