A ambição faz parte da natureza humana. Quando doseada e bem direcionada, é um catalisador fundamental das prestações individuais e comunitárias. A ambição desmedida, centrada num excesso de valorização do umbigo e dos interesses, tem paulatinamente assentado arraiais na política e na prestação dos políticos, sobrepondo-se aos valores, aos princípios e ao sentido comum das instituições. Até parece que este tipo de egocentrismo deu à costa na política, tarde e a más horas, depois de ter impulsionado as derivas económicas ultraliberais, cujos resultados nas desigualdades, na precariedade e na imprevisibilidade estão à vista de todos. É essa ambição pessoal desmedida em que os fins justificam todos os meios ou a ânsia de criação de pistas próprias nos erros e omissões dos sistemas políticos que levaram Trump à presidência dos Estados Unidos na órbita do Partido Republicano ou conduziram à vitória de Macron em cima dos despojos da política tradicional e da ameaça da extrema-direita mais ou menos retocada.
O município do Porto, com Rui Moreira, alberga desde 2013 uma expressão desta realidade, só podendo os últimos acontecimentos causar estranheza a algum anjinho político que, a troco de vender a alma ao diabo, tenha ignorado o perfil e a trajetória da personalidade em causa. O Porto sempre foi um local de resiliência e de liberdade em que estranho foi o Partido Socialista ter-se colocado na posição política de anulação para gáudio e pseudoafirmação de egos individuais. É como se no Porto tivesse havido a expressão de uma ambição individual de um pretenso rei do Norte e um republicano procurasse ser uma espécie sucedânea de vice-rei. Como sempre afirmou Mário Soares, “só é derrotado quem desiste de lutar”. No Porto, o PS preparava-se para se entregar como se entrega quando não concorre em todos os municípios do país nestas eleições autárquicas de 2017. E não nos venham agora dizer que o PS nunca faltou ao Porto, depois de se preparar para o fazer.
O sonho ambicioso de Ícaro foi voar tão alto que o sol acabou por derreter as suas asas de cera. No Porto, o PS, a sua liderança e a direção nacional protagonizaram uma ambição invertida: não voar para estar junto ao sol. Desabituou-se de usar as asas do voo democrático e agora fará “campanha contra si próprio”.
O que não se compreende é que, com toda a gente a querer afirmar a personalidade, os interesses institucionais e a implantação eleitoral a 1 de outubro, o PS se possa dar ao sumido luxo de desistir de lutar, de desgraduar as candidaturas em municípios ainda liderados pelo PCP e de apresentar propostas políticas próprias às populações. Sobretudo num contexto político em que se afirma estar tudo a correr tão bem na governação do país, não há nenhuma razão para que a vitória de 150 municípios conseguida em 2013, sob a liderança de António José Seguro, não seja ampliada. Tanto mais que, enquanto em 2013, por via da lei de limitação de mandatos autárquicos de órgãos executivos, o PS teve de apresentar 56 novos candidatos, agora, as mudanças não superam a dezena de autarcas. Estão criadas as condições para ganhar mais do que 150 municípios, voltar a ter a liderança da Associação Nacional dos Municípios Portugueses e da Associação Nacional de Freguesias, sem necessidade de replicar as soluções de governo.
É certo que a atual ambição teve uma Convenção Nacional Autárquica cénica, com menos participação do que a do Coliseu dos Recreios, e espera-se que o importante trabalho da Carta de Princípios dos Candidatos Autárquicos Socialistas, nos municípios em que o PS concorra, tenha maior observância que o Compromisso Ético dos Candidatos a Deputados nas legislativas de 2015.
Portugal e os portugueses ganham em ter um poder local focado na concretização de políticas para as pessoas, que valorize o território e que saiba afirmar as marcas da identidade diferenciadoras de cada comunidade, sempre centrado nas soluções, em vez do sofrível sublinhar dos problemas e dos riscos. Um poder local que possa contar com um governo além do meramente simbólico, que saiba com o que pode contar sem avanços e recuos, e com um sentido de responsabilidade e de futuro em que não seja possível que uma orquestra desafinada, por falta de escrutínio, pareça ter um bom maestro. Mesmo que a partitura mude em função das circunstâncias e exista um crescente hiato entre a palavra e a realidade. Algum dia não bate certo, apesar das narrativas e desculpas.
Notas finais
Planar. A euforia é um estado de alma perigoso. Depois da Web Summit, a inauguração do Digital Delivery Hub da Mercedes-Benz é positiva, mas ver nisso a inversão de “um ciclo em que os nossos melhores engenheiros tinham de emigrar para ter trabalho”, com o nível de desemprego ainda registado nas diversas áreas das engenharias, é do domínio do delírio.
Voo picado. Mesmo em rota de convergência com as eleições autárquicas, não faz nenhum sentido gerar a confusão nos planos de ampliação do Metropolitano de Lisboa quando, depois da reversão, a qualidade do serviço de transporte tarda a ser melhorada. É a história do grande maestro com a orquestra desafinada.
Voar baixinho. O acordo do governo com os representantes da economia social foi a oportunidade para o primeiro-ministro se assumir precursor da herança de políticas sociais de António Guterres. Mesmo a “lutar pela sua verdade”, convinha não tentar reescrever a história omitindo o Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos (PARES), lançado por José Sócrates e Vieira da Silva. Foram, pelo menos, 612 obras que criaram 1058 respostas sociais (lares de idosos, creches) para 30 331 novos utentes, com a criação de 10 mil novos postos de trabalho diretos. O que teria sido o tempo da troika sem essas valências?