
Não acredito em populismos, mas que os há, há. O populismo tornou-se uma ameaça, mas há 100 anos que ninguém sabe bem o que ele significa
Os sinos tocaram a rebate depois do Brexit e da eleição de Trump: “Vêm aí os populistas!” A União Europeia até já escolheu o seu cavaleiro de armadura reluzente para defrontar os selvagens que se aproximam, a chancelerina Angela Merkel. No dia 4 de dezembro, a máquina do Juízo Final pode dar mais um passo: a Itália tem referendo e o primeiro- -ministro Matteo Renzi está por um fio; e na Áustria preparam-se para eleger um governo de extrema-direita. Ok, temos eventualmente um problema de populismo, mas o que é o populismo?
Há mais de 50 anos que os cientistas políticos discutem o que é, de facto, o populismo, e não conseguem entender-se.
Numa célebre conferência sobre a questão realizada na London School of Economics em 1967, a intervenção do historiador norte-americano Richard Hof-stadter intitulava-se: “Toda a gente fala de populismo, mas ninguém sabe defini-lo”. Durante a discussão que se seguiu, Margaret Canovan enumerava sete formas de populismo e Peter Wiles citava pelos menos 24 “características definidoras” para, na segunda metade da sua intervenção, enumerar um número assinalável de exceções que recenseavam muitos movimentos populistas que, embora não verificassem as tais 24 características do populismo, ainda assim eram considerados populistas.
Essa listagem imensa e diversa começa, segundo Wiles, citado por Marco D’Eramo na “New Left”, com os levellers (niveladores) e os diggers (cavadores) na Inglaterra do séc. xvii. Continua no séc. xix com os cartistas, o Partido Populista dos Estados Unidos da América, os narodniki (a vontade do povo) na Rússia; no séc. xx, com Gandhi, na Índia; o Sinn Féin (Só Nós), na Irlanda; a Guarda de Ferro, na Roménia; o Partido Revolucionário Institucional, no México. E com outros autores a falar dos peronistas, de Fidel Castro, do PCI, do Partido da Liberdade na Holanda, do Podemos na Espanha, da Frente Nacional em França, do Movimento Cinco Estrelas em Itália, do Tea Party nos Estados Unidos da América, assim como do movimento de sinal contrário Occupy, também na América do Norte. Como se vê, uma ementa com produtos e pratos bastante diferenciados. Tal como defendem autores como Laclau, o populismo não é um conteúdo ideológico, mas uma forma de constituir o político, uma forma de fazer política a partir da delimitação de um campo de inimigo e amigo e da disputa de uma hegemonia que dê sentido a essa dualidade.
Em entrevista ao i, o filósofo Daniel Innerarity defendeu que a democracia se preserva do populismo recusando essa simplificação e defendendo uma complexificação que permite a mediação dos especialistas junto ao sufrágio popular. Para ele, o problema da democracia atual é que “ temos, de um lado, administradores prudentes da normalidade, sem nenhuma paixão democrática; e do outro lado temos apenas a força brutal das paixões, sem ter em conta a racionalidade. Esta rutura entre o princípio da realidade sem força simbólica mobilizadora e um princípio de prazer que desconhece a complexidade da realidade é a grande rutura das nossas democracias. Podíamos chamar--lhe, sem exagerar muito, a rutura entre tecnocratas e populistas. Acho que temos de suturar e coser essa rutura, porque isso deixa o campo livre a Hollande e Le Pen em França – como dizia um jornalista dos EUA, Holândia e Lepénia em França: dois países completamente diferentes que não se encontram em nenhum lugar e têm como consequência uma sociedade que não se consegue transformar”.
Um dos aspetos interessantes deste aumento exponencial da presença política cultural e social do populismo é expresso no artigo “O populismo e a nova oligarquia”, de Marco d’Eramo, em que este, recorrendo à biblioteca da Universidade da Califórnia, recenseia 6200 artigos e livros sobre este tema no período que vai de 1920 a 2013 – mais de metade deles foram publicados de 2000 a 2013, e nos últimos três anos deste período foram escritos 1076!
Segundo D’Eramo, o uso do termo variou ao longo dos anos: de uma conotação positiva até aos anos 50 passamos para uma conotação que associava o comunismo e o fascismo; e a partir dos anos 80 há um aumento da utilização da palavra. O autor defende que neste exagero de alusões ao populismo existe uma espécie de má consciência: “Enquanto esvaziam a democracia de todo o conteúdo, acusam de ‘pulsões autoritárias’ qualquer um que se oponha a este esvaziamento (...) o uso inflacionado do termo ‘populismo’ por parte dos patrícios [da oligarquia] revela uma inquietude mais recôndita”, afirma D’Eramo.
Como declarou Pacheco Pereira ao i, “o populismo vem preencher um vazio de representação. Um número significativo de americanos, como aconteceu também no Brexit e igualmente com franceses e portugueses, não se reconhece na representação política, em grande parte porque a representação política foi colonizada pelos interesses económicos e financeiros. Isso significa que grande parte da população não encontra representação. Isto agravou-se depois da crise económica de 2008 e fez com que se tivesse como efeito colateral o aumento do desemprego e o crescimento da pobreza, a perda de dignidade. Em muitos casos, não é apenas um efeito social e económico que se verifica: as pessoas sentem que viviam antes com maior dignidade do que vivem hoje. Os empregos que tinham eram ocupações nas indústrias e comunidades que tinham sentido; hoje, estes empregos foram substituídos por outros tipos de trabalho. Quer se queira quer não, há uma sensação de perda. E essa sensação de perda não é traduzida no sistema político, porque ele responde apenas às necessidades do sistema económico e financeiro, o que leva as pessoas a sentirem-se órfãs. Tornam-se um pasto muito significativo para movimentos do tipo populista. E estes movimentos encontram no sistema comunicacional popular um enorme amplificador que depois se traduz em resultados eleitorais”.