Figura crucial da arquitectura portuguesa na segunda metade do século XX, Nuno Portas uniu acção crítica, pensamento teórico e prática arquitectónica com uma energia e uma paixão singulares. Falecido aos 90 anos, deixa uma obra multifacetada que atravessa os campos do urbanismo, da política de habitação, da investigação e do ensino, numa intervenção lúdica e provocadora, pensando a cidade não apenas como espaço, mas como forma de consciência.
Já não atravessaremos juntos as cidades redentoras, iluminadas e humildes, não tivemos a audácia necessária para construir essa outra face que, por nos servir de chão, permitiria instalar o sonho pela base, reclamar uma nova pátria, num compromisso de fervor e inquietação. Mas em Portugal houve alguns que se lançaram nessa aventura, que teria de começar por uma profunda indagação, e agora que Nuno Portas nos deixa, é evidente como não restam muitas mais figuras que, como ele, tenham procurado sublevar os limites entre arquitectura, política, crítica e cidadania. Numa altura em que nos damos conta da verdadeira dimensão da crise pela falta de um planeamento responsável do espaço urbano, e de uma definição clara do que deve resistir como espaço público e comum, agora que faltam as casas, e se percebe que o tema da habitação exigia respostas do Estado, fica claro como poucos reconheceram a falta de uma visão política para as cidades. E o reconhecimento desse desastre deixa claro quem o procurou evitar, sendo certo que poucos terão provocado tanto, com tão pouco ruído, como o fez Nuno Portas.
Arquitetura e sociedade
A sua morte, aos noventa anos, fecha um dos percursos mais vastos e inconformados da cultura arquitectónica portuguesa do século XX, cuja acção atravessou, com uma persistência invulgar, as esferas da crítica, da prática projetual, da teoria urbana, da docência e da política pública, sem se alcantilar em nenhuma delas. Com uma memória e uma erudição esmagadoras, irrompeu com uma intervenção fundamental no pensamento do espaço e da cidade a partir de finais da década de 1950, e a obra que nos lega, passado todo este tempo, se assume uma feição descontínua e irregular, não é por isso menos decisiva, mas obriga-nos a uma leitura de um largo período temporal, não se deixando inventariar em edifícios, do mesmo modo que não pode simplesmente ser compilada atendendo a um conjunto de títulos académicos ou cargos governativos, porque se inscreve sobretudo nas tensões históricas que ele soube assimilar — e em muitos casos provocar — entre arquitectura e sociedade, entre território e forma, entre instituições e desejo colectivo.
Formado numa época em que a arquitectura portuguesa oscilava entre um funcionalismo inócuo e os últimos estertores de uma cultura académica de ateliê, Portas distinguiu-se desde o início por um gesto crítico intransigente, atento às transformações internacionais e profundamente sensível às especificidades dos contextos locais, das práticas construtivas marginais, dos modos de vida populares, recusando tanto as ortodoxias da modernidade como as tentações estilísticas do pós-modernismo nascente.
Tendo começado por intervir com alguns ensaios críticos sobre cinema, rapidamente desviou o olhar para o edificado. Percebeu — talvez antes de todos — que a arquitectura portuguesa exigia em meados do século passado uma voz crítica, feroz, que soubesse articular o lugar e a forma, a técnica e a vida, o real e o possível. A sua direção da revista Arquitectura nos anos 1960 foi um desses raros momentos em que a crítica se tornou um acto fundador. À sombra do arquitecto, urbanista e historiador italiano Bruno Zevi, cujos textos traduziu e com quem viria a colaborar, produziu uma escrita que não era apenas comentário mas já operação, ensaiando uma crítica que buscava no texto a eficácia de um projeto, e que abria espaço, em Portugal, a uma inteligibilidade nova da prática arquitectónica, que não se fundava já na forma, mas na posição do arquitecto no tecido social, nos mecanismos de produção e nos regimes de habitação.
Como refere Jorge Figueira no Público, na década de 1960, publica uma série de artigos que procuram dar conta das múltiplas direções que então se delineavam para a arquitectura — do neo-realismo ao ficcionismo arquitectónico. Participa em encontros e cultiva ligações internacionais que desafiam a condição sub-moderna portuguesa. Publica ainda dois livros decisivos — Arquitectura para Hoje (1964) e A Cidade como Arquitectura (1969) — nos quais a experiência do tempo se revela com uma intensidade quase catártica.
O ‘democrata reformista’
Contra a assepsia geométrica, o “racionalismo”, propôs o contexto, contra o modelo, propôs uma maior proximidade aos lugares e às pessoas, contra o edifício, propôs o bairro. E essa visão crítica alicerçou-se constantemente numa prática, não tendo sido menos relevante a sua atuação como arquitecto — quase sempre em parceria, como convinha a quem via a arquitectura como prática colectiva e não como autoria — com Nuno Teotónio Pereira, em projectos que, não sendo numerosos, marcaram a cultura arquitectónica portuguesa pela exigência ética que neles se inscrevia: na Casa de Vila Viçosa (1958–62), na Casa em Sesimbra (1960) e na Igreja do Sagrado Coração de Jesus (1962–75), um projecto bastante conturbado e que é hoje um monumento nacional. Estes edifícios atravessaram décadas como monumentos discretos ao rigor ético da forma, onde a contenção formal não escondia uma radicalidade tipológica e uma reflexão densa sobre o papel da arquitectura em tempos de clausura política. Mais do que um autor, Portas afirmava-se como um agente de deslocação, alguém que introduzia ruído, crítica, hesitação, nos circuitos demasiado pacificados da disciplina. A sua inteligência era de síntese, e não suavizava arestas, antes expunha tensões. Outra obra marcante foi o Bairro de Olivais Sul, que fez com Bartolomeu Costa Cabral, e o qual, «com as suas praças, largos e telhados pronunciados», opera como «uma espécie de contestação à cidade moderna proposta pelo de Olivais Norte», como assinalou Nuno Grande.
A Revolução de Abril apanhou-o com as ferramentas certas. No governo provisório foi secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo, e ali fundou o que seria o seu gesto mais radical e duradouro: o SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local. Esse nome — que hoje soa técnico, quase administrativo — escondia uma utopia militante. O SAAL não foi um programa, mas uma insurreição ordenada. Levou arquitectos às ruas, moradores às mesas de projecto, bairros clandestinos à legalidade da dignidade habitacional. Organizou assembleias, fomentou cooperativas, encorajou a autoconstrução — e não como abdicação de qualidade, mas como reivindicação de soberania popular. O SAAL não instituiu um estilo: instituiu um método. E nesse método, Portas fez coincidir política e arquitectura como poucos ousaram. Ao inscrevê-lo na Constituição, no artigo 65.º sobre o direito à habitação, deixou-lhe um eco jurídico que ressoa ainda hoje, mesmo se esquecido ou traído.
Mas Portas não era um revolucionário ingénuo. Sabia os limites da transformação, conhecia o jogo das forças. E por isso recusou sempre a caricatura do arquitecto-redentor. Preferia o papel mais ambíguo e mais provocador do reformista obstinado. Como assinala Nuno Grande no testemunho que prestou ao Público, «mais do que um revolucionário era um reformista, Portas era um democrata reformista». «E por isso acreditou que podia trabalhar nas instituições durante o Estado Novo para que as coisas mudassem a partir de dentro; por isso foi chamado quando se renovaram no pós-25 de Abril. Mesmo a esquerda mais radical acreditava na sua visão para a cidade que, muito sinceramente, quando comparada com a que temos hoje, nos devia fazer corar de vergonha — era muito mais inteligente, aberta, abrangente e debatida».
Nos anos seguintes, marginalizado pelas lógicas dominantes do urbanismo tecnocrático e pela ascensão de uma arquitectura pós-moderna decorativa ou cínica, Portas desloca a sua atenção para a cidade como campo de estudo, intervenção e ensino. Foi vereador em Gaia. Foi professor. Foi comissário e consultor. Nunca foi homem de uma só frente, mas de várias causas que se entrecruzavam. Na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde ingressa nos anos 1980, embate com a retórica heroica da escola. Tinha contra si o pós-modernismo histriónico, a arquitectura-ícone, o delírio da forma solta. E depois, nos anos noventa, teve contra si o neo-modernismo depurado, que voltava a impôr os fantasmas que ele julgava superados. Mas Portas não se retirou: redesenhou o chão. Virou-se para o urbanismo, para a ciência dos fluxos, para a investigação invisível dos territórios. Era ali que via o futuro: não nos grandes edifícios, mas nos sistemas de uso, nas micro-negociações espaciais, no conflito produtivo entre funções, vontades e formas.
A sua recusa do gesto monumental, a sua insistência nos processos, na participação, na análise dos sistemas, contrastam com o revivalismo formal então dominante. O seu pensamento torna-se menos visível, mas mais profundo: investiga o território como palimpsesto, como conflito entre usos e funções, como lugar de composição sem síntese. O projecto, para Portas, já não é forma, mas dispositivo.
Do Campus de Aveiro à Expo’98
Embora raramente convocado para grandes obras, Portas participa, com discrição, em momentos significativos da transformação urbana portuguesa — no Campus de Aveiro, na fase inicial da Expo’98, e, como vereador, em Gaia, onde experimenta na prática os limites entre a decisão técnica e a pressão política. Nunca se adapta ao espaço mediático nem à circulação festiva das ideias, e talvez por isso permaneça uma figura subterrânea, mas incontornável, um daqueles intelectuais cujo legado se entranha sem se exibir.
Nos últimos anos, reconhecido tardiamente por instituições que antes o ignoravam, Portas foi objecto de exposições, homenagens e teses — a mais significativa das quais, O Ser Urbano – Nos Caminhos de Nuno Portas, realizada em Guimarães em 2012 e comissariada por Nuno Grande, traçava com rigor as múltiplas frentes do seu pensamento. Com Álvaro Domingues partilhou uma visão crítica e lateral do território, com Siza manteve um diálogo intermitente mas fecundo, com os mais novos cultivou uma atenção generosa mas nunca condescendente. Recebeu o Prémio Sir Patrick Abercrombie da UIA, foi doutorado honoris causa pelo ISCTE-IUL, homenageado pela Ordem dos Arquitectos — distinções justas, embora sempre aquém da escala do seu contributo.
Agora, com o seu desaparecimento, sobra um país mais desabitado no que toca ao pensamento e ao juízo crítico. A arquitectura portuguesa, que tantas vezes se deixou seduzir por estéticas ou por importações, perde uma das suas vozes mais fundas e mais comprometidas. Não se trata de elogiar o homem — embora o mereça —, mas de reconhecer que com ele desaparece uma atitude, uma ética, uma urgência.
Portas morre sem testamento intelectual, sem fundação com o seu nome, sem obra reunida, sem monumento. Mas permanece entre nós naquilo que mais importa: uma forma de estar na arquitectura e na cidade que recusa o ruído decorativo, que se opõe à espectacularização do espaço e à complacência do discurso, e que insiste, com teimosia e rigor, que projectar é pensar, intervir, abrir possibilidades. O que deixa não é um modelo, mas uma ética. E sobretudo uma pergunta que atravessa tudo: que cidade é possível quando a arquitectura não serve o poder, mas a vida?







