Kanye West. Para que face olhar?

Kanye West. Para que face olhar?


Génio? Louco? Megalómano? Desbocado? Carente de atenção? Talvez um pouco de tudo. Kanye West, uma das vozes mais influentes do século XXI, continua a semear discórdia mas pela primeira vez a música não subjuga as frases polémicas e as teses difíceis de explicar – defendeu, por exemplo, que «400 anos de racismo soam a uma…


Até há duas semanas havia sempre a excitação de ouvir o que Kanye West tinha de novo para dizer ao mundo: palavras que vinham em forma de declarações polémicas, provocadoras, mirabolantes, audazes, ininteligíveis, cheias de fanfarronices ou simplesmente absurdas. Se o génio é palpável, deve andar neste redemoinho de ambição, autoconfiança, insegurança, visão e personalidade. West tem tudo e em doses cavalares. Como um património de álbuns que mudaram o mundo ao longo do século digital. Se o hip-hop se democratizou, se é a música mais ouvida, se há Drakes, The Weeknds, Frank Oceans ou Migos, é em boa parte graças aos muros estilísticos, culturais e sociais derrubados sem apelo em álbuns transformadores como, e sobretudo, Late Registration (2005), Graduation (2007), 808s & Heartbreaks (2008), My Beautiful Twisted Dark Fantasy (2010) e Yeezus (2013). Sobretudo este quinteto e a sociedade com Jay-Z em Watch The Throne transformaram a banda sonora do planeta, humanizaram o hip-hop, importaram a maquinaria e elevaram-no à condição de arte maior. West viu Picassos onde outros viam rimas, Boticellis onde só havia ritmo e Corbousiers onde só estavam produtores. Niggas In Paris é a Mona Lisa desta exposição.

Isto foi até 28 de abril, dia da estreia dos novos singles ‘Ye Vs The People’ e ‘Lift Yourself’. A estratégia foi a habitual. Após um longo período afastado da compulsão das redes sociais, Kanye West voltou à carga. E quando ‘Ye’ está atrás do teclado, os dedos são como gatilhos prontos a disparar em todas as direções. Por vezes, com pertinência, por vezes somente para causar ruído e chamar a atenção. Assim foi. Os tweets choveram como aguaceiros. «Donald Tump é meu irmão (bro)», reiterou, após ter apoiado o então candidato à Casa Branca antes do término abrupto da digressão de ‘The Life of Pablo’, quando se retirou do palco após um monólogo de vinte minutos em que não poupou ninguém, nem o «irmão mais velho» Jay-Z e a mulher Beyoncé. Em entrevista ao TMZ, West haveria de corrigir a visão sobre Trump, esclarecendo que não se revê em metade das decisões políticas mas a pegada ficou. E não mais se livrará da fama de estar do lado do Presidente da supremacia branca. Mas pior foi ter defendido que «400 anos de escravatura soam a uma escolha», para repúdio não só da comunidade negra como do mundo civilizado em geral. Sucederam-se os ‘mêmes’, Snoop Dogg pintou-se de branco no Instagram, e Donald Glover (Childish Gambino) parodiou as publicações de Kanye West no Saturday Night Live. 

Só havia uma forma de assentar a poeira: se a música falasse mais alto. E, pela primeira vez, não aconteceu. ‘Lift Yourself’ é tão parodiante que quando começou a circular na Internet, ninguém percebeu se era piada ou a sério. Até ser oficializada. Perante tanta celeuma, podia ter funcionado como um número de stand up auto-libertador mas o «Scoopity poop!» é uma mão cheia de quase nada para quem habituou a soltar granadas em chão pop. Ou seja, insuficiente para adorar ou para rir. E ‘Ye Vs The People’, uma parelha com T.I., o rapper que batizou o trap e em 2015 afirmou não poder votar numa mulher para líder do mundo de livre – uma alusão a Hillary Clinton, pela qual se penitenciou mais tarde -, justificada com a tese de que «as mulheres tomam decisões emocionalmente precipitadas», é ainda mais frouxa e irrelevante. 

Kanye West nunca foi um campeão de vendas – apesar do anterior The Life of Pablo ter sido o primeiro álbum a atingir a platina só com base no streaming – mas desta vez nem números, nem influência. Das canções não se fala, nem se ouvem, enquanto os recordes do Spotify continuam a ser batidos por rappers. J. Cole e Post Malone, os mais recentes, a ter os álbuns mais ouvidos no dia de estreia na plataforma. E agora, para onde devemos olhar? Para a obra ou para o que a suporta?