Paul Mason. “A batalha pela alma da Europa  já não é sobre economia, mas sobre valores”

Paul Mason. “A batalha pela alma da Europa já não é sobre economia, mas sobre valores”


O jornalista económico defende que a reforma da UE ainda é possível e que a esquerda se deve aliar à elite liberal contra a extrema-direita


Veio a Lisboa para participar numa conferência sobre a democracia europeia. Como a vê?

Bom, é uma boa ideia. Não é tanto que a democracia esteja em risco na Europa, apesar de em alguns países estar, mas mais a cultura democrática que sustenta a democracia, que é muito mais frágil do que as pessoas entendem. Temos na Polónia um governo que diz, dia sim dia não, que não quer a democracia liberal, que diz que a “democracia liberal impede que nós, o povo, expressemos os nossos verdadeiros desejos”. Desejos como banir o aborto ou a lei estapafúrdia de que ninguém pode questionar o papel do país no Holocausto. O que temos agora na outra ponta da Europa é um conjunto de elites que dizem que a democracia não é boa. Esta é uma mensagem partilhada pelos movimentos populistas em Itália, a verdadeira direita, a Liga Norte, e uma ala direita no Movimento 5 Estrelas. Tornaram-se cínicos da democracia. Temos de a reavivar pela prática e de fazer as pessoas perceberem que é bastante importante para elas controlarem o governo do qual dependem. A cultura democrática que temos na Europa é única no mundo e está rodeada de pessoas que dizem que é má. Os governos polaco e húngaro são o eco do que a China e a Rússia estão a dizer e, agora, do que os norte-americanos dizem. Em 2008, Peter Till, um empreendedor da alt-right, escreveu um artigo a dizer que a democracia e a liberdade são agora incompatíveis, que liberdade económica significa menos democracia. Desde 2008 que têm tentado chegar a este momento. Felizmente, a Europa tem uma cultura democrática, e a melhor forma de a manter é usando-a. 

Acha que os riscos para essa cultura democrática se aprofundaram com o confronto entre o Eurogrupo e o governo grego do Syriza em 2015?

Sim. Tive de me forçar a votar para manter o Reino Unido na União Europeia. Tive de me levantar da cama, ler dois ou três artigos de amigos e colegas economistas de esquerda que defendiam a saída da Europa e concluí que não, que devemos ficar na Europa, apesar dos seus problemas. Ao ver, na Grécia, pessoas comuns em lágrimas por não conseguirem tirar o seu dinheiro dos bancos e a indiferença da elite do norte da Europa – e não apenas dos alemães, mas também dos holandeses e dos Estados bálticos – com que impunham a catástrofe económica à Grécia, tornou-se ainda mais difícil defender a Europa. Mas temos de a defender como uma ideia. A economia global vai-se desintegrar – e já o estamos a ver na Europa – e é por isso que devemos ficar, e não sair. Esta é a razão de continuar a defender o Syriza como governo, mesmo depois de ter feito tantos compromissos que mais parecem uma rendição. 

Continua a defender o Syriza, porquê?

Continuo. Porque a escolha feita em janeiro de 2015 [quando o Syriza foi eleito pela primeira vez] era a de ficar ou sair da zona euro. Para ser honesto, foi o que foi. Colocou-se a pergunta: “Consegue a zona euro tolerar um governo de esquerda?” E a resposta foi não. A escolha para a Grécia era Europa ou Ásia Menor. A Grécia não tem uma grande população ou forças armadas para confrontar a China ou a Rússia por si só. O único futuro para a Grécia é uma Europa democrática e, portanto, teve de fazer difíceis compromissos. Apoio o Syriza por ter agido como que um escudo em defesa dos mais pobres. A direita grega queria fazer uma austeridade para punir os pobres e defender os ricos. 

O governo do Syriza está a aplicar austeridade à semelhança do Nova Democracia ou do PASOK. 

Não acho que esteja. Está a aplicar austeridade, mas o objetivo é sair do programa [da troika], e vimos nos últimos dias que o Mecanismo de Estabilidade e o Banco Central Europeu estão a propor um acordo em que a Grécia não paga qualquer dívida se o crescimento económico atingir valores muito altos, cerca de 3% ao ano, algo que não conseguirá. Porque fazem isto? Porque os riscos para a Grécia ainda são muito elevados. Num mundo ideal, o que diria seria “resistam ao Banco Central Europeu”, mas o povo grego disse, por uma grande maioria, que não, que estava demasiado assustado para o fazer, não querem outra guerra civil. Estes são os riscos. Se a primeira linha de combate falha, passamos para a próxima e por aí fora. Nunca é bonito. 

Qual é a linha que separa a boa da má austeridade?

Nenhuma austeridade é boa, mas num sistema global em que enormes forças podem controlar a economia se a dívida ficar fora de controlo, então todos os governos, incluindo os de esquerda, têm de aprender a aplicar pequenas medidas de austeridade. O FMI disse-nos que por cada euro de austeridade só seriam afetados 15 cêntimos de crescimento económico, mas a verdade é que é ao contrário. Antes do mais, é preciso perguntar: quem consegue aguentar mais austeridade? São os ricos. 

Defende então a austeridade para os ricos, e não para os pobres.

Sim, é só o que é preciso. Austeridade para os ricos são impostos mais altos. As pessoas pensam que quando um governo de esquerda ou o Labour do Reino Unido, do qual sou membro, propõem mais impostos são antiausteridade, mas não. Impostos são uma forma de austeridade num período de fraco crescimento económico. A arte está em fazê-lo de uma forma que impulsione o crescimento económico. O grande problema com a Europa – e sabemo-lo por a situação ter melhorado – foi ter-se recusado durante algum tempo a fazer o quantitative easing. Ora, Draghi fez o que tinha de ser feito, apesar de ter sido demasiado lento por estar constrangido pelas regras [europeias ] e pela elite económica alemã. O que estou a dizer é que num período como o nosso, em que o crescimento é lento, o desemprego alto e a dívida já é alta, a política monetária é nossa amiga, a liberdade de imprimir dinheiro é nossa amiga. O Reino Unido e os Estados Unidos recuperaram melhor que a Europa por terem esse conhecimento e não terem tratados que o impeça. É isto que costumo dizer aos políticos britânicos: é preciso rasgar o Tratado de Lisboa na cabeça e depois fazer algo real ao tratado, deixar de pensar que não é transformável. 

Essa perspetiva é similar à de Yanis Varoufakis, de reformar a UE. Acha que a UE é reformável? 

Temos de continuar a tentar, mas acho que a forma do Varoufakis é mais teatral. O partido que lidera não tem uma grande adesão. É um economista inteligente, mas nunca achei que fosse um político esperto. Para se atingir o objetivo que ele quer, é preciso ter partidos reais, e não formá-los do nada. O próximo passo para a esquerda europeia deve ser definir alterações claras e limitadas ao Tratado de Lisboa. Deve haver, por exemplo, um simples candidato de todas as forças de esquerda – e não três – que recuse mais austeridade e o controlo alemão do BCE e defenda a expansão e a inovação. Façamos algo grande, importante, mas temos de ser rápidos. 

Quais as consequências da derrota do Syriza para a esquerda?

Foi o fim de uma ilusão. A experiência de 2015 foi se a Europa conseguia tolerar um governo de esquerda e a resposta foi não. Pode apenas tolerar um pequeno governo de esquerda, como faz cá [em Portugal]. As consequências não foram apenas económicas, mas centenas de milhares de jovens tiveram de repente algo em que acreditar, que foi o Syriza, mas depois o partido destruiu essa ilusão. É esta a tragédia do Syriza, mas se olharmos para o Podemos, o Bloco de Esquerda e o Sinn Féin, continuo entusiasmado.

Continua esperançoso. 

Sim, claro. Estou mais que esperançoso. A situação mudou. Em 2015, o confronto era entre uma economia de esquerda e o statu quo neoliberal, mas agora os neoliberais estão assustadíssimos com a extrema-direita. Estão aterrorizados com a possibilidade de a Europa de leste suspender o Estado de direito, mas também de se caminhar para o nacionalismo e a xenofobia. Sabem que precisam de alterar a situação, mas não sabem como fazê-lo. Quando falam em reforma referem-se ao neoliberalismo, mas quando nós utilizamos a palavra devemos falar concretamente em apoios do Estado, benefícios do Estado social, melhores salários, investimento direto do Estado. A esquerda deve ter um projeto que marque a agenda para os próximos cinco a dez anos. 

Disse que a derrota do Syriza demonstrou que a zona euro não consegue tolerar um governo de esquerda, mas disse que devemos continuar a tentar. 

Sim, devemos continuar a exigir a reforma da zona euro. O problema do Syriza foi que… no futebol, chama-se o jogo das percentagens. Por vezes não se joga para marcar, mas apenas para movimentar a bola. Acho que o Syriza foi incapaz de jogar o jogo das percentagens. Uma esquerda mais madura terá de saber fazê-lo. Conseguimos alcançar algumas coisas dentro da Europa, mas não outras, porque precisamos de estar na Europa – e não me refiro apenas a estar na União Europeia. Precisamos de estar próximos da Europa. Talvez nem todos os países consigam sobreviver dentro da zona euro e, em última instância, a Grécia só conseguirá sobreviver se houver um alívio da dívida. 

A zona euro não é uma construção neoliberal?

Sim, claro, mas a solução não é romper com ela. Estamos a descobrir que é muito difícil abandonar as instituições europeias porque o processo de abandono abre a porta ao caos. É o que a Grécia descobriu e o que o Reino Unido está a descobrir com o Brexit. O Reino Unido é um país muito forte, é a quinta maior economia do mundo, mas está numa posição completamente indefesa por não se conseguir afastar do conjunto das regras europeias. Pode dizer que passará a controlar a pesca, mas não, porque se quiser vender a pesca na Europa terá de dar acesso às outras frotas pesqueiras. Assim, não controlará a sua pesca nem terá qualquer voto na matéria. A experiência da Grécia e do Brexit mostra que é melhor reformar a Europa do que desmembrá-la. Por vezes, se é difícil reformá-la, é preferível dar um passo atrás, ter uma visão estratégica do que se quer alcançar, “dizer que esta discussão não é infindável, mas limitada no tempo” – e o Varoufakis está certíssimo neste ponto. Daqui a dez anos, ou a Europa é um projeto social-democrata de esquerda ou desapareceu. 

Muitas pessoas dizem que o Brexit é o início do desmembramento da União Europeia. Concorda?

Acho que as pessoas que o disseram gostariam que assim fosse porque apenas serão validados se a Europa se desmembrar mais depressa do que a economia britânica colapsar. Mas, em certo sentido, sempre existiu uma outra interpretação: o Reino Unido sempre esteve meio afastado, sempre teve uma outra moeda, um outro modelo económico e, por ser um tão grande exportador de serviços, os seus mercados-chave estão a ser a Ásia e a China. A Europa é uma economia autossustentável, principalmente a Europa ocidental – é aquilo a que gostamos [os economistas] de chamar o eixo da banana, de Milão a Hamburgo –, que é uma economia muito forte, não apenas em bares de capuccino, mas também em investigação, inovação, finança, com uma força de trabalho altamente educada. Acho que a Europa terá de avançar a duas velocidades. A ideia de que se poderá ter apenas uma velocidade para todo o projeto europeu é errada. A Europa passará a ter um centro e uma periferia, e o desafio para países como Itália, Espanha e Portugal é se querem estar no centro. Acho que é possível. Para mim, o centro já não é sobre economia, mas sobre valores democráticos. O centro da Europa será definido por valores democráticos, e não por quem consegue respeitar os critérios de Maastricht.

Mas mesmo os valores democráticos não podem ser separados do desenvolvimento económico. O sul da Europa encontra-se dependente do centro da Europa. A Alemanha continua a controlar o BCE. Como podem Portugal, Espanha e Itália manter-se numa Europa a duas velocidades?

Qual é o objetivo do centro? É preciso ser-se muito duro com Merkel e Macron. É preciso dizer que a Europa tem de sobreviver como democracia liberal. Depende destes dois países [Alemanha e França] definir os critérios pelos quais a Europa pode sobreviver como democracia liberal. Para mim, os primeiros governos que devem ser punidos com medidas de exclusão devem ser o polaco e o húngaro. Acho que é possível. Não podemos tolerar a suspensão do Estado de direito. Em 2019, Portugal terá eleições que acho que serão justas, mas não acho que as eleições na Polónia ou Hungria o serão. É preciso dizer que se as eleições não forem justas, então não devemos sentar-nos no mesmo parlamento. A batalha pela alma da Europa já não é sobre economia, mas sobre valores. Estou muito positivo em relação ao sul da Europa, que lutou pelos valores democráticos, mas a Europa de leste recebeu-os e parece não gostar da democracia que lhe foi dada. 

Aquando da vitória do Brexit foi dito que o voto no Brexit foi racista e xenófobo. Concorda?

Todos os racistas e xenófobos votaram no Brexit, mas nem todos os votos no Brexit foram racistas e xenófobos. Não há 70 milhões de racistas e xenófobos no Reino Unido. Foi um voto de nacionalismo económico, apesar de os conservadores terem dito que eram alterglobalistas, mas na realidade foi nacionalismo económico. O problema foi que a Europa impulsionou um conceito de cidadania bidimensional. Na minha cidade, 70% votaram a favor do Brexit, mas 70% também votaram Labour. Foi um voto de classe. Foi contra o trabalho barato. O conceito de cidadania, ao ser definido pela capacidade de trabalhar, é puramente económico, e ninguém lhes perguntou [aos britânicos] se achavam uma boa ideia. Quando disseram não, a elite disse-lhes que não podiam fazer nada porque, para o fazerem, teriam de sair da UE, e assim foi. Foi também uma tentativa de reafirmar a soberania e, recorde-se, a tradição radical de Inglaterra foi sempre sobre soberania e a capacidade de eleger o governo e depor o rei, como fizemos em 1642. Essa consciência ainda está viva em muitos britânicos. A elite geriu mal o processo ao tentar contê–lo com o medo. Se se usar o medo e aquilo que impõe o medo não acontecer, ninguém acredita em mais nada a partir desse momento. Cria-se um enorme cinismo.

Como vê o avanço das forças de extrema-direita um pouco por toda a Europa?

A Europa virou fascista na década de 30 do século passado e onde não virou fascista foi onde a elite liberal se aliou com a esquerda. Nos países que viraram fascistas, a elite liberal aliou-se à direita e esmagou a esquerda. Esta é a dinâmica da situação. Combater a extrema-direita é sobre convencer a elite liberal de quais são os seus aliados. O meu maior medo é o que aconteceu na Áustria, onde o centro-liberal se dividiu e se juntou à direita. O grande problema na Áustria foi o partido conservador ter feito uma coligação com a extrema-direita quando poderia facilmente ter feito uma coligação com a esquerda social-democrata. Não seria uma grande coligação, mas preferiria esse resultado. Se alguma vez chegarmos ao ponto de o partido de Merkel fazer o mesmo [se aliar à extrema-direita], então é “adeus, Europa”. Os franceses estiveram lá perto. Macron não salvou a esquerda francesa, mas a direita de ir para os braços de Marine Le Pen. 

Acha que Macron está a abrir caminho para Le Pen com as suas políticas?

Não acho que seja inevitável. Tem de parar de atacar os trabalhadores e a esquerda. A esquerda tem de aprender a fazer acordos com o centro liberal. 

Historicamente, quando tomou o poder, a extrema-direita sempre contou com o apoio dos grandes interesses económicos. 

Existe uma elite neoliberal, que são banqueiros e pessoas de fundos de investimento, que se está a tornar crescentemente hereditária. Não podemos dizer à classe trabalhadora que isso não interessa, mas a elite económica dos últimos 30 anos está a enfrentar uma crise existencial e eles sabem-no. Em Davos, foi isso que discutiram. Não estão preocupados com os problemas económicos, mas se os valores democráticos conseguem sobreviver. 

A elite capitalista não estará apenas preocupada com os seus lucros?

A questão é que quando se constrói um negócio de moda, uma marca, uma cadeia de lojas, podemos na China acordar uma manhã e ter alguém à nossa porta a dizer que se violou uma lei fiscal e que a cidade local vai tomar o negócio. Isto pode acontecer. Aconteceu e acontece várias vezes aos empreendedores em locais onde não existe Estado de direito. A burguesia precisa do Estado de direito e não sabe que precisa. A esquerda precisa de a educar sobre o Estado de direito. 

Nas últimas décadas, a ascensão das forças do mercado sobrepôs-se aos ideais da social-democracia. Que projeto alternativo defende?

Apelido-me de social-democrata radical. Dentro do Labour fomos capazes de mobilizar as forças de toda a classe trabalhadora e da juventude radical para tomar o partido. Tomámos o Labour, que é social–democrata, e o que digo às pessoas é que no futuro próximo vamos gerir o capitalismo, e não depô-lo. Controlar o Estado, não destruir o Estado – são duas grandes proposições. O que temos de fazer é um número limitado de políticas económicas de esquerda radical e defender a democracia ao lado da burguesia liberal. Quanto ao resto, que têm sido as grandes obsessões da esquerda, como desmembrar a NATO, o anti-imperialismo ou apoiar Maduro e a Venezuela, é deixar de parte. Não temos tempo para tudo. 

E se houver um conflito entre a NATO e a Rússia?

Não vai haver um conflito entre a NATO e a Rússia por, na realidade, a Aliança estar muito fraca. Não acho que esteja forte o suficiente para ativar o art.o 5.o.