Antes de Black Panther, Creed, Moonlight ou Run, filmes realizados por realizadores afro-americanos, conquistaram os corações e mentes de fãs de cinema de todo o mundo, existe uma longa história de irreverentes cineastas e atores que lutaram para contar as suas histórias no grande ecrã.
Os primórdios do cinema negro, um estilo que ficou conhecido como Blaxploitation nos anos 1970, que influenciou alguns dos maiores realizadores de sempre, em especial Quentin Tarantino, que usa inúmeras referências nos seus filmes, as mais óbvias em Jackie Brown e Django Libertado, é agora explorado em grande detalhe e profundidade no documentário Is That Black Enough for You?!?, onde o historiador e crítico cultural, Elvis Mitchell, traça a evolução e a revolução do cinema negro, de suas origens ao impacto dos filmes da década de 70.
“Cada geração tem o seu próprio Elvis, ou Eminem”, diz Mitchell no documentário produzido por Steven Soderbergh e David Fincher e lançado na Netflix, no passado dia 11 de novembro, referindo não inocentemente dois músicos que se apropriaram da música criada pela comunidade negra, aproveitando também para comparar cenas de John Travolta na Febre de Sábado à Noite com Richard Roundtree, que interpreta o papel titular no filme Shaft. “Uma versão esbranquiçada do negro porreiro”, argumenta o historiador.
Mitchell, que escreveu, realizou e narrou o documentário, explora e analisa o período de 1968 e 1978, e como, impulsionado pelo movimento dos direitos civis e por estúdios de cinema que tentavam lucrar com o público das zonas urbanas, eclodiu o movimento blaxploitation, “um rótulo afetuoso, mas que, no entanto, descredibilizou filmes com uma componente social e política”, escreve a BBC.
Com a ajuda de um vasto leque de entrevistados, com intervenientes que estiveram envolvidos neste movimento, como Harry Belafonte e Billy Dee Williams, atores que se tornaram ícones, como Samuel L. Jackson ou Whoopi Goldberg, e futuras promessas do cinema negro, nomeadamente Zendaya, neste documentário é traçado um intensivo roteiro desde os primeiros filmes feitos por cineastas negros até aqueles que revolucionaram os anos 1970.
Este período foi marcado por filmes como Sweet Sweetback’s Baadasssss Song, realizado, escrito e protagonizado pela lenda do cinema negro, Melvin Van Peebles, que faleceu no ano passado, os acima citados filmes de Shaft, a rivalidade entre Harry Belafonte e Sidney Poitier, com o primeiro a recusar aceitar papéis de personagens baseados em estereótipos e o segundo a tornar-se na figura afro-americana “aceitável” numa Hollywood dominada por brancos, mas também de figuras como Pam Grier (ícone de filmes como Foxy Brown, Coffy e, anos mais tarde, de Jackie Brown) ou Cleavon Little.
“Mitchell é muito cuidadoso ao enquadrar o cinema negro como parte de todo o cinema, observando como ele foi influenciado por estilos que muitas vezes começaram na cultura branca, como os westerns e os filmes de terror, e, curiosamente, notando com que frequência as visões dos criativos negros moldaram os seus contemporâneos brancos”, escreveu o crítico Brian Talleric no site de Roger Ebert.
“Sempre que se pensa que se irá saltar um capítulo da história do cinema negro, ele encontra uma maneira de incorporá-lo. É um documentário incrivelmente abrangente, mesmo com 135 minutos”, elogia o crítico, acrescentando ainda que “criadores menores se teriam distraído com os ‘destaques’ para tentar algo tão repleto de projetos diferentes”.
A revolução passou na televisão Apesar da maior parte destes filmes serem caracterizados pela sua produção independente e a mistura eclética de estilos, desde a comédia, a ação ou o terror, um dos pontos mais interessantes que este documentário faz questão de recordar é como estes filmes ajudaram os grandes estúdios, como a MGM, a financiar alguns projetos, como Taxi Driver de Martin Scorsese, que hoje são considerados uns dos mais importantes filmes da história do cinema.
“O segredo ‘sujo’ de Hollywood é como os antigos líderes de estúdios, nomeadamente John Calley da Warner Bros, usaram o efeito do blaxploitation de forma a oferecer a capacidade para apostar em projetos de realizadores como George Lucas, Francis Ford Coppola e outros autores que definiram a década”, escreve o Guardian, que cita as palavras de Mitchell no documentário, afirmando que o “Shaft manteve a MGM longe da falência quando eles estavam a leiloar tudo o que tinham apenas para manter o estúdio funcionando”, notando que, “agora, a MGM faz parte da Amazon”.
No documentário, o historiador explica que foram figuras como Richard Roundtree, protagonista dos filmes Shaft, com o seu estilo e confiança, que conquistaram as audiências que não se identificavam com os filmes pesados e melancólicos que definiram a década, repletos de anti-heróis como Travis Bickle do Taxi Driver, Harry Caul do The Conversation ou Michael Corleone dos filmes do Padrinho.
“Os filmes de Blaxploitation, argumenta Mitchell, redimiram a ideia de heroísmo no grande ecrã e abriram o caminho de Hollywood a recuperar o controlo da indústria – com filmes como Tubarão (1975), Rocky (1976), Super-Homem (1978) e os blockbusters de ação dos anos 80”, pode ler-se no Guardian.
Contudo, ao abrir a porta para estes novos filmes escapistas, o seu futuro estaria condenado, uma vez que agora os estúdios investiriam cada vez mais nestes “heróis” mais fáceis de digerir por parte das grandes audiências.
“O regresso do herói de ação branco de Hollywood, juntamente com a queda nas bilheteiras dos filmes de cineastas negros, anunciou o fim da era de ouro dos filmes negros”, sugere Mitchell.
Apesar de ter sido recuperado nos últimos anos, com o trabalho de Tarantino, que apresentou estes autores a uma nova audiência, ou em filmes que homenageiam o estilo, como o filme de 2009 de Scott Sanders, Black Dynamite, ou Chamem-me Dolemite, um original da Netflix, lançado em 2019, e protagonizado por Eddie Murphy, Is That Black Enough for You?!? é um dos documentos que mais se preocupa em analisar e incidir luz num estilo que durante muito tempo caiu no esquecimento.
Numa altura em que realizadores como Jordan Peele ou Ryan Coogler, que este ano lançaram, respetivamente, Nope e Black Panther: Wakanda para Sempre, estão a deixar o seu lugar bem firme como alguns dos realizadores mais lucrativos de Hollywood, torna-se cada vez mais fundamental recordar o percurso histórico que foi traçado até a estas conquistas atuais.
“Não importa se é um western negro ou uma comédia musical negra, como Do Cabaré para o Convento, ou um franchise de ação negro, como Creed, ou um filme de banda desenhada, como Black Panther”, reflete o historiador, citado pelo jornal inglês. “Eles ainda são, antes de mais nada, filmes negros. Esse é o estilo”.