Onde está hoje a fronteira entre animais e humanos?

Onde está hoje a fronteira entre animais e humanos?


Nunca como nos nossos dias o debate sobre a condição dos animais e o seu tratamento nas nossas sociedades foi tão apaixonado e intenso, e não é infrequente esta apreensão gerar situações ridículas.


Para quem se interessa pela área do pensamento e do ensaio, a revista Electra, publicada pela Fundação EDP, e com responsabilidade editorial de José Manuel dos Santos e António Guerreiro, foi das melhores, e mais ousadas, notícias dos últimos anos, no panorama da imprensa portuguesa. E cada um dos números conta com um dossiê, em que se enfoca um tema que, embora possa assumir preeminência no espaço mediático, raramente é tratado com o alcance necessário para se ir além das manifestações de superfície. Recentemente foi abordada a forma como tem evoluído a nossa relação com os outros animais.

Na medida em que “nunca antes tinha havido, como no nosso tempo, tanto debate sobre os animais, tanto cuidado e preocupação com o destino e o tratamento a que estão sujeitos; nunca antes os animais, e não apenas os animais de companhia, tinham sido integrados com uma tal dimensão no mundo humano e social. Há hoje uma «questão animal» muito viva e de grande alcance que mobiliza simultaneamente os campos da filosofia, da ética, da política (ou da biopolítica), do direito, da ecologia. De tal modo que se difundiu a ideia de que teve lugar, nesta época em que vivemos, um animal turn” (António Guerreiro), no seu sétimo número a publicação dedicou o dossiê ao papel que os animais não humanos desempenham hoje nas nossas sociedades. Desde logo, numa breve síntese, Alessandro del Lago, sociólogo italiano com uma vasta obra, sobretudo no campo da sociologia da arte e dos processos culturais, foi professor na Universidade de Génova e também em universidades americanas, tais como a Universidade de Pensilvânia (Filadélfia) e a Universidade da Califórnia (Los Angeles), coloca-nos a par do modo como a filosofia, e os seus mais destacados cultores, entenderam os animais ao longo da história:

a) para Aristóteles, o mundo animal é inferior ao humano e está sujeito a ele, ainda que possa haver algumas afinidades entre ambos (Kant não se afasta muito desta posição, oscilando entre os traços de afinidade homem-animal, com a subordinação dos deveres para com o mundo animal – a renúncia à crueldade – aos deveres para com o homem;

b) no entender de Descartes, os animais são máquinas vivas. Logo, a autonomia do mundo animal, ou a sua salvaguarda, não se colocam;

c) já para Hegel, os animais possuem uma autonomia do desejo, mas não uma auto-consciência;

d) há uma felicidade atemporal dos animais que compara e se contrapõe à crueldade e utilitarismo de grande parte das relações humanas, anota Schopenhauer;

e) o ponto de vista dominante é o de Heidegger: a vida animal é “pobre de mundo” e está a meio caminho entre a ausência de mundo da natureza e a capacidade humana de formar o mundo;

f) na Antiguidade, Teofrasto, Porfírio e Plutarco são vegetarianos convictos e convencidos da natureza espiritual comum aos homens e aos animais; e entre os pensadores animalistas estariam Piero Marinetti, Jacques Derrida, Tom Regan e Peter Singer. Para Bentham, a questão sobre os animais não humanos não é “eles podem raciocinar?”, nem é “eles podem falar?”, mas antes “eles podem sofrer?”

Do ponto de vista do olhar das religiões sobre os animais, António Bracinha Vieira, médico psiquiatra, fundador da Sociedade Portuguesa de Etiologia e seu primeiro presidente, investigador e professor na Universidade Nova de Lisboa, lecionando etologia animal e humana e paleoantropologia, assinala que os monoteísmos instauraram a centralidade da “criatura humana” feita à imagem da divindade e recebendo dela o dom da supremacia. Em contraste, os politeísmos foram e são menos severos quanto às fronteiras entre humanos e não humanos: os heróis gregos podiam ser metamorfoseados em animais; e as filosofias religiosas da Índia ainda postulam a palingenésia, pela qual um humano desaparecido pode reincarnar-se sob formas não humanas, e vice-versa, mediante uma outra categoria de metamorfoses. Os monges jainistas são conhecidos pela sua devoção aos animais, e caminham varrendo o chão em frente dos seus passos, para evitarem esmagar algum insecto anónimo.

Escolhamos duas anotações, uma – sob a forma de reportagem – da imprensa, e outra aposta em uma rede social, à laia de breves retratos, sobre as relações entre humanos e animais não humanos. No verão de 2019, o Expresso publicava uma peça extensa na qual dava nota de como, em nossos dias, cães há que se auto-mutilam pelo stress que lhes é causado pelo facto de serem tratados como humanos e, ademais, as dietas vegan, a que certos donos os sujeitam, lhes causam óbvios problemas dado serem carnívoros. Pela mesma altura, na rede social Twitter, o escritor Francisco José Viegas observava como as filhas de um casal amigo, holandês, nas férias de Verão, queriam ir-se embora de Trás-os-Montes porque achavam os costumes, entre os quais o de matar moscas, demasiado rudimentares. Notícias destas, creio que estaremos de acordo, avolumam-se agora com inusitada frequência.

Estamos, pois, como António Guerreiro assinala, perante um verdadeiro animal turn, uma viragem epocal, cuja centralidade dos animais não humanos mobiliza simultaneamente os campos da filosofia, da ética, da política (ou da biopolítica), do direito, da ecologia. Esta viragem deve muito a um pensador australiano, o conhecido filósofo Peter Singer que cunhou o conceito de especismo para dizer que preferir um homo sapiens a um outro animal é um favoritismo de espécie que não encontra nenhuma justificação (racional). Singer estabelece uma diferenciação entre ser humano e pessoa – isto, enquanto, por exemplo, para outras doutrinas abrangentes não há seres humanos não pessoais. Esta perspetiva de Singer, mesmo por quem não sabe que a está a replicar, tornou-se, se bem interpreto, uma espécie de óbvio ululante do nosso tempo, em especial entre os mais jovens.

É corajoso o ensaio de Vasco M.Barreto, em defesa do (chamado) Especismo, publicado no nº7 da Electra. “Não corresponderá o especismo à intuição moral da maior parte das pessoas? Será mesmo preciso usar pela enésima vez o teste do eléctrico desgovernado que se aproxima de uma bifurcação para avaliar se o chimpanzé conta mais do que a pessoa com uma limitação cognitiva profunda? Mesmo seres humanos que ainda não têm (fetos ou recém-nascidos), entretanto perderam (idosos dementes), nunca tiveram ou terão (deficientes mentais) a noção de si, do passado e do futuro, nem são agentes morais, são tratados por nós como pessoas”, enuncia o Professor de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Para depois prosseguir, com Bernard Williams: “Um racista ou sexista recorre a justificações falsas, como a inteligência menor ou a fraqueza moral dos negros e das mulheres, enquanto um especista não precisa de tais racionalizações porque existe uma diferença abissal entre o homem e os primatas mais próximos, ainda que apenas de grau, no que diz respeito à cognição, à linguagem, à capacidade de aprendizagem, à imaginação e transmissão cultural. (…) A emancipação dos grupos [humanos] oprimidos só se concretizou quando eles foram agentes da sua própria libertação (e.g., as sufragistas, os líderes negros norte-americanos do movimento pelos direitos civis ou os movimentos LGBT de que resultaram conquistas de direitos cívicos para os homossexuais); para testemunhar exemplos de idêntica emancipação entre os animais, só nos resta a saga Planeta dos Macacos. Em larga medida, o homem será sempre tutor dos animais, pelo poder de destruição que tem. Por isso, como nos diz Williams, a nossa única questão moral diz respeito à forma como devemos tratá-los. (…)Williams inventa um cenário de ficção científica onde somos visitados por criaturas benevolentes que nos superam na capacidade de organizar sociedades pacíficas e prósperas nos planetas que colonizam, mas implicando a submissão das populações autóctones à cultura e regras dos visitantes. (…). Os especistas formariam células de resistência e, contra o domínio e a assimilação, lutariam pela civilização dos seres humanos. Porquê? Por um sentimento de lealdade, pertença e identidade. (…) O antiespecismo implica trocar a preferência pela espécie por outro conjunto de características, que teriam de ser aplicadas caso a caso e nem sempre seriam devidamente avaliadas. O antiespecismo abre-se também a toda a espécie de manipulação genética do nosso genoma, o que começa a ser uma possibilidade técnica real. (…) O convívio com seres humanos é essencial para a aquisição da linguagem e o desenvolvimento cognitivo, mesmo que depois usemos esses talentos para conceber fantasias em que os homens são os maus da fita, ou teorias em que o desejo de superação dos nossos impulsos e intuições naturais parece estar associado ao ódio-próprio e pode vir a revelar-se contraproducente”. 

Jurgen Habermas suplicava por, pelo menos, “traduções salvíficas” (em termos laicos/seculares) da terminologia judaico-cristã da imagem e semelhança do Homem com Deus. Só assim, acreditava, se pode assegurar a aceitação geral do conceito de dignidade humana, que é o conceito central da nossa organização social. Talvez intuísse que à humanização dos animais não humanos parecessem corresponder, atualmente, e ainda que tal não fosse um corolário necessário, práticas, no pior sentido da expressão, de “animalização” dos humanos. O narrador, provocador, de A possibilidade de uma ilha, de Michel Houellebecq dizia-nos que trocámos os bebés pelos animais nos nossos apartamentos e, tal qual Vasco Barreto, que o Homem sugere, atualmente, estar em fúria com o próprio Homem.