Até 1 de Julho de 2002, com a entrada em vigor na ordem jurídica internacional do Estatuto de Roma que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), a justiça penal internacional foi uma justiça dos vencedores. Passou a estar melhor organizada, como aconteceu no final da 2ª Guerra Mundial, com a assinatura pelos EUA, URSS, Reino Unido e França da Carta de Londres “instituindo mecanismos para o julgamento dos principais criminosos de guerra” mas nenhum dos tribunais militares que dela emergiram (Nuremberga, Tóquio,…) se ocupou a julgar um único dos vencedores.
O Estatuto de Roma retomou os tipos penais internacionais já aplicados por aqueles tribunais (crimes contra a humanidade) ou que já tinham sido objecto de codificação (crimes de guerra, tipificados pelas convenções de Genebra e o genocídio, punido pela convenção homónima). De fora do catálogo do TPI ficou o crime de agressão que continuou a ser visto por muitos Estados como um crime a ser praticado apenas pelos vencidos, não sendo prudente tipificá-lo antes de concluído um qualquer futuro conflito.
As posições de França e do Reino Unido nesta matéria são elucidativas e estão abundantemente documentadas. Mesmo com a exclusão da agressão do catálogo de crimes, a esmagadora maioria dos Estados dotados de capacidades técnicas para praticar o genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade e que, segundo algumas vozes avisadas, já o terão feito (e continuarão a fazê-lo), nunca aceitaram a jurisdição do TIJ.
A lista é aterradora e, ainda que não na forma integral, merece ser recordada: Angola, Arábia Saudita, Argélia, Bielorússia, China, Cuba, Egipto, EUA, Filipinas, Guiné-Bissau, Iémen, Índia, Indonésia, Iraque, Israel, Líbano, Líbia, Malásia, Marrocos, Mauritânia, Moçambique, Nicarágua, Paquistão, Rússia, Síria, Somália, Sudão, Turquia,…
O Estatuto de Roma foi revisto em 2010, na conferência de Kampala, passando a integrar o crime de agressão. As emendas ao Estatuto entraram em vigor na ordem jurídica internacional em 17 de Julho de 2018. A competência do TPI não inclui os actos de agressão praticados por nacionais dos Estados que não são partes no Estatuto de Roma (nem nas emendas aprovadas em Kampala) ou em cujo território ocorreram.
Já os Estados parte poderão declarar que não aceitam a jurisdição do TPI em matéria de crimes de agressão (prerrogativa já exercida pelo Quénia e pela Guatemala). A definição do crime de agressão é feita com base nas categorias empregues pela Resolução 3314 adoptada (sem votação…mas com abstenções) pela Assembleia Geral da ONU em 14 de Dezembro de 1974.
À via estreita para a criminalização da agressão, descrita no parágrafo anterior, há que contrapor a possibilidade de ser o Conselho de Segurança da ONU a remeter ao TPI uma questão em que o tipo penal da agressão esteja em causa. Respeitando a dimensão política do Conselho, o Estatuto de Roma permite ao TPI não ficar vinculado pela qualificação feita pelo Conselho.
O Estatuto de Roma, emendado em Kampala, não deixa de ser o instrumento jurídico de justiça penal internacional mais ambicioso e aperfeiçoado de que a sociedade internacional se conseguiu dotar. Mas o Estatuto não pretendia, nem conseguiria, substituir-se à Carta da ONU. E esta consolidou uma ordem jurídica dos vencedores contra os vencidos (as potências do Eixo, ainda qualificadas como “Estado inimigo”), estabelecendo uma igualdade de privilégio entre os vencedores, feitos membros permanentes do Conselho de Segurança. Esta aristocracia era suposto não violar a Carta e muito menos cometer os crimes pelos quais foram punidos os vencidos na 2ª Guerra Mundial.