Seca. Governo foi alertado para baixo nível de Castelo de Bode em janeiro

Seca. Governo foi alertado para baixo nível de Castelo de Bode em janeiro


Não está definido um limiar para suspensão da produção hídrica. Governo garante que produção parou quando foi necessário. Situação foi criticada pelo ex-diretor-geral da Energia e houve mais vozes a alertar para o stresse hídrico nos bastidores do Ambiente e Agricultura.


O Governo recebeu alertas do setor desde o início de janeiro para o impacto da falta de chuva nos níveis das albufeiras, com previsão de agravamento da seca, nomeadamente para a situação de Castelo de Bode, e de se manter a produção hídrica, mais intensa do que noutras alturas secas, sendo a primeira vez que tal acontece desde que o carvão não é uma alternativa no país. O desacordo de alguns peritos do setor com a forma com o Executivo tem gerido este dossiê veio ontem de novo a público com um artigo de opinião publicado pelo antigo diretor-geral de Energia e Geologia no Observador, Mário Guedes, com o título “Uns milhões a voar pela janela”, em que o engenheiro contraria a ideia de que o nível de água nas albufeiras se deva apenas à falta de chuva.

“Uma análise dos dados fornecidos pela REN e relativos ao balanço energético do Sistema Eléctrico Nacional, permite encontrar a principal explicação para este fenómeno e que se relaciona com a relativamente elevada produção de energia hídrica, nos últimos quatro meses de 2021. Esta apresenta sempre uma contribuição mensal que oscila 10,8%, para o mês de setembro, e 16,9%, no mês de dezembro”, escreve o ex-dirigente da DGEG, que exerceu funções entre abril de 2017 e novembro de 2018, e que considera que fica “absolutamente percetível o motivo pelo qual o nível de água nas barragens é bastante abaixo do normal. Há necessidade de produzir eletricidade”, lembrando ainda que já tinha havido alertas para o agravamento do défice de produção no país face ao consumo enquanto está em curso o reforço da capacidade hídrica e renovável. E que o resultado é agora o aumento das importações, que estão em níveis crescentes nas últimas semanas (ver ao lado), inclusive de eletricidade proveniente de carvão, já que Espanha reativou em novembro as suas centrais.

Recorde-se que a decisão foi tomada em Espanha diante da escalada de preços da eletricidade, para diminuir o risco de haver falhas de fornecimento no inverno, tendo entre acionistas Endesa e EDP, que em Portugal pararam a produção de carvão. “Talvez o aspeto mais irónico, nesta completa ausência de perceção estratégica, relaciona-se com o facto de Espanha, apesar de ter centrais a carvão de eficiência muito inferior às portuguesas, ainda não as ter encerrado, servindo agora o sistema elétrico português, que assim se encontra altamente dependente do carvão espanhol”, escreve Mário Guedes, que calcula que só nos últimos quatro meses de 2021 o saldo importador de eletricidade implicou que o país comprasse 500 milhões de euros de eletricidade a Espanha, “situação que claramente poderia ter sido evitada”, acusa.

Segundo o i apurou, nos bastidores houve outros especialistas a chamar a atenção não apenas junto do Ministério do Ambiente mas também do Ministério da Agricultura para esta realidade, nomeadamente para a situação de Castelo de Bode, que abastece de água cerca de três milhões de pessoas em Lisboa (através da EPAL), tendo sido um dos últimos alertas feito no dia 23 de janeiro com imagens do local. Por um lado, mostravam a já baixa quota da albufeira que abastece o consumo de água em Lisboa e a rega do Ribatejo. Por outro, como diante de um cenário de seca continuada, continuava a turbinar para produção hídrica sem que se referisse publicamente a seca e que a produção, podendo ter como contrapartida ajudar a controlar o custo da eletricidade, estava a acontecer em níveis de stresse hídrico. A Associação de Empresários do Castelo de Bode também revelou publicamente ter pedido esclarecimentos ao Ministério do Ambiente em janeiro, tendo considerado a interrupção uma medida tardia, noticiou a SIC.

“Medidas foram tomadas quando foi indicada essa necessidade” Esta segunda-feira, após o artigo publicado por Mário Guedes, o Ministério do Ambiente defendeu que “não tem correspondência à realidade a ideia de que Portugal importa eletricidade de Espanha porque encerrou as centrais a carvão, afastando uma “uma relação de causa e efeito entre os dois factos” ao recordar que quando Pego e Sines funcionava o país já importava eletricidade. “Para a determinação do sentido do saldo importador ou exportador tem maior relevância o ano hidrológico seco ou húmido”, disse o gabinete de Matos Fernandes em comunicado, considerando que o país continuar a produzir carvão não implicaria necessariamente poupanças. “Importar carvão para produzir em Portugal é importar energia. O único modo sustentável de diminuir quer as importações, quer os custos de eletricidade, é pela via da aceleração na entrada em funcionamento de toda a potência renovável possível e não através da manutenção de centrais termoelétricas a carvão”, defende ainda o Ministério do Ambiente, salientando que no último ano o acréscimo de produção a partir de fonte solar foi superior à central do Pego. “No primeiro semestre deste ano, haverá produção de mais 600 MW de energia solar, o que corresponde, grosso modo, à produção da referida central.”

Questionado pelo i sobre se a reativação da produção a carvão está ou não excluída, sendo que atualmente, de acordo com os dados diários publicados pela REN, o saldo importador representou na sexta-feira passada 30% do consumo, o Ministério do Ambiente disse nada mais ter a acrescentar ao comunicado.

Já questionado sobre os alertas em janeiro e por que motivo só foi decidida a suspensão da produção de eletricidade em cinco albufeiras a 1 de fevereiro, o Governo indicou que “as medidas de contenção de uso em cinco albufeiras foram tomadas quando a informação técnica e validada pela Agência Portuguesa do Ambiente indicou essa necessidade.” Já o Ministério da Agricultura não respondeu até à hora de fecho desta edição sobre que avaliação foi feita em janeiro após os alertas, nomeadamente sobre Castelo de Bode, zona que a ministra Maria do Céu Antunes, ex-autarca em Abrantes, conhece bem, nem qual foi a posição do ministério na altura.

Um dos problemas para esta gestão, explicam ao i fontes do setor, é que não existem limiares definidos para a suspensão de produção hídrica, a que acresce no caso concreto do rio Zêzere a jusante de Castelo de Bode não ter caudais mínimos estabelecidos como acontece com os rios internacionais como o Tejo, em que o funcionamento das descargas da barragem de Cedillo está depende de acordos internacionais com Espanha. Já a comparação do contributo do carvão com a potência solar levanta outros problemas: o solar, tendo um peso crescente na produção nacional, não pode ser despachado durante a noite: a única renovável sem essa limitação é a hídrica, o que acontece com as potências firmes como o gás natural e carvão, a que acresce haver menos horas de exposição solar no inverno. Na semana passada, o Governo anunciou que foram fixadas quotas mínimas de utilização das barragens onde decidiu intervir, garantindo que há reservas para dois anos. Entretanto, em quatro das cinco barragens onde foi determinada a suspensão de produção de eletricidade, verifica-se uma ligeira recuperação no nível da água, o que não acontece ainda em Castelo de Bode, a 59% da capacidade.