“Registos recém-lançados mostram o financeiro desgraçado a viver uma existência mundana na prisão antes do seu suicídio, enquanto também tecia mentiras até ao fim”. Este é o parágrafo que serve de mote para a abertura da reportagem “Epstein’s Final Days: Celebrity Reminiscing and a Running Toilet”, publicada na passada terça-feira no jornal norte-americano New York Times (NYT) e realizada pelos jornalistas Benjamin Weiser, Matthew Goldstein, Danielle Ivory e Steve Eder. O i falou com o último para entender melhor o processo de concretização desta investigação.
O multimilionário Jeffrey Epstein, então com 66 anos, enforcou-se no Metropolitan Correctional Center de Nova Iorque, no dia 10 de agosto de 2019, enquanto estava sob vigilância policial. À época, sabia-se que Epstein estava acusado de tráfico sexual e abuso de menores, sendo que algumas das suas vítimas teriam apenas 14 anos. O magnata negava as acusações, mas caso fosse considerado culpado pelo tribunal enfrentava uma pena até 45 anos de prisão. As suas ligações a figuras poderosas, como Bill Clinton e Donald Trump, conduziram ao desenvolvimento de várias teorias e rumores acerca da sua morte na prisão.
“Imediatamente após a morte de Epstein, o NYT começou a investigar a sua estada na prisão. Usámos solicitações de registos públicos, registos judiciais e fontes cultivadas que poderiam ajudar a preencher os detalhes importantes”, começa por dizer, em declarações ao i, Steve Eder, que se dedicou à cobertura do mandato de Trump, bem como dos seus negócios pessoais. Antes disto, havia feito a cobertura da campanha presidencial de 2016, escrevendo artigos detalhados sobre os candidatos, de Hillary Clinton e Bernie Sanders a Jeb Bush e Donald Trump.
“A publicação do artigo demorou quase dois anos, a partir da solicitação dos registos. Felizmente, o NYT deu-nos o tempo e o espaço de que precisávamos para contar uma história completa, amplamente baseada nos documentos que havíamos obtido”, confessa o profissional que ingressou naquele órgão de informação em 2012, na editoria de Desporto, onde analisou o doping no beisebol, a violência doméstica no N.F.L. (The National Football League) e as ambições do Qatar de se tornar uma potência internacional do futebol.
Testamento 48 horas antes Epstein parecia ter planeado bem os seus últimos dias, pois escreveu um testamento 48 horas antes de se suicidar, pondo 528 milhões de dólares (475 milhões de euros) de ativos num fundo com beneficiários anónimos, segundo reportou o New York Post. Este órgão de informação publicou, inclusivamente, uma cópia do testamento, que mostrava que Epstein tinha mais de 56,5 milhões de dólares (cerca de 51 milhões de euros) em dinheiro, ações no valor de 300 milhões de dólares (270 milhões de euros) e um rendimento fixo de 14 milhões de dólares (12,5 milhões de euros).
No entanto, o trabalho publicado no NYT traz a público, através da consulta de mais de duas mil páginas do Federal Bureau of Prisons (BOP), detalhes peculiares acerca dos quais Epstein terá reclamado antes de se matar: queixava-se do autoclismo estragado de uma sanita, do facto de usar um fato laranja “como um bandido” e negava que estava a sofrer de ideação suicida.
Depois de ter sido encontrado inconsciente, numa manhã de julho de 2019, com um bocado de um lençol amarrado à volta do pescoço, continuou a alegar que tinha uma “vida maravilhosa”, não assumindo que pensava em desistir. “Não tenho interesse em matar-me”, terá dito Epstein a um psicólogo, de acordo com documentos do Bureau of Prisons que não foram divulgados anteriormente e, até agora, haviam sido somente consultados pelo NYT. No artigo, é possível ler que o homem se considerava um “covarde” e insistia que não gostava de sentir dor. “Eu não faria isso a mim mesmo”, terá assumido.
“Após uma vida de manipulação, o Sr. Epstein criou ilusões até ao fim, enganando agentes correcionais, conselheiros e presidiários especialmente treinados e designados para monitorizá-lo 24 horas por dia, de acordo com os documentos que o NYT obteve após entrar com uma ação judicial com base na Lei de Liberdade de Informação”, é possível ler no trabalho por meio do qual se entende que “as notas detalhadas e relatórios compilados por aqueles que interagiram com o Sr. Epstein durante os seus 36 dias de detenção mostram como ele repetidamente lhes garantiu que tinha muito pelo que viver, ao mesmo tempo que insinuava que estava cada vez mais desanimado”. Devido a esta contradição constante, “as pistas levaram a muito pouca ação por parte dos funcionários da prisão e do Federal Bureau, que cometeram engano após engano que levou à morte de Epstein”.
“Sabíamos de muitos dos erros cometidos pela prisão” Tendo em conta os comportamentos intrigantes de Epstein, o mistério relativo às circunstâncias dos seus últimos momentos na Terra foi-se adensando. Somente no final de outubro de 2019, o médico legista que realizou a autópsia ao corpo de Epstein chegou à conclusão de que o milionário norte-americano se tinha suicidado. Mas esta afirmação não foi facilmente aceite por outro especialista forense.
Naquela altura, o patologista forense Michael Baden contou à FOX que estava a investigar o caso a pedido do irmão de Epstein que não acreditava na tese de suicídio. Baden afirmou que o milionário foi encontrado com duas fraturas do lado esquerdo e uma do lado direito da laringe, além de ter o osso hioide – situado na parte anterior do pescoço – partido.
“Estas três fraturas são extremamente incomuns em enforcamentos suicidas e muito mais facilmente encontradas em estrangulamentos homicidas”, sublinhou o especialista, acrescentando: “Em 50 anos, nunca vi estas fraturas surgirem em casos de suicídio”. Por outro lado, Baden frisou igualmente que o milionário tinha hemorragias nos olhos, o que, segundo o especialista, não é comum em casos de suicídio por enforcamento.
Deste modo, na ótica do patologista, as primeiras conclusões foram precipitadas e a tese de homicídio deveria ser investigada, não sendo ignorados outros cenários possíveis. Mas o NYT quis ir mais além das questões jurídicas e administrativas e decidiu aprofundar “a coleção de registos” que “fornece o olhar mais íntimo e detalhado até agora sobre os últimos dias do Sr. Epstein e oferece algo que muitas vezes falta: a sua voz”.
De seguida, os jornalistas esclarecem que o suposto criminoso passou muitos dias fechado numa sala de conferências com os seus advogados de defesa, “evitando os limites da sua cela húmida e suja”. Descobriram também que, em conversas com psicólogos e outros presidiários, Epstein abordou o interesse que nutria por Física e Matemática e não se inibiu de dar alguns conselhos sobre investimentos. “Ele lembrava-se de conviver com celebridades” e fazia questão de revelar esses pormenores até quando reclamava de coisas – que poderíamos não associar ao mesmo – como o tal autoclismo avariado.
“E onde Epstein outrora conviveu com políticos, cientistas e titãs de Wall Street, agora conversava sobre a comida no centro de detenção de 12 andares. ‘Epstein quer saber quem é o melhor cozinheiro da 11 North’, escreveu um recluso”, elucidam os autores do texto que expõe a ideia de que os registos aos quais os jornalistas tiveram acesso não suportam “a explosão de teorias da conspiração de que a morte do Sr. Epstein não foi por suicídio”. É também referido que, nestes documentos, não são clarificadas as questões levantadas pelo seu irmão e um dos seus advogados, ou seja, de que poderia ter recebido ajuda para se suicidar. “Mas eles pintam um quadro de incompetência e desleixo por parte de alguns dentro do Bureau of Prisons, que dirige o centro de detenção federal”, é realçado, sendo que, a título de exemplo, o NYT descobriu que um formulário de triagem de admissão descreveu Epstein como um homem negro e indicou que este não tinha condenações anteriores de crimes sexuais, embora fosse um criminoso sexual registado com duas condenações de 2008, no estado norte-americano da Flórida, por incentivo à prostituição e aquisição de menores para esta atividade ilegal. Além disto, alguns telefonemas que fez não foram gravados, registados ou monitorizados, o que representa “uma aparente violação da política da prisão”.
“Sabíamos de muitos dos erros cometidos pela prisão ao lidar com Epstein como um prisioneiro, mas aprendemos novos detalhes que revelaram a extensão dos erros, que começaram quando ele chegou à prisão”, adianta Steve Eder. “Os detalhes contidos nos registos de observação não eram tão surpreendentes quanto granulares, oferecendo perceções sobre os seus pensamentos e estado de espírito – as suas queixas, preocupações, arrogância e o mundano”, evidencia o homem que integrou a equipa que, há três anos, arrecadou o Prémio Pulitzer de serviço público por reportar sobre questões de assédio sexual no local de trabalho.
O papel de Ghislaine Maxwell “Na noite em que se suicidou, Epstein mentiu aos oficiais da prisão e disse que queria ligar à sua mãe – que já havia morrido há muito tempo. Em vez disso, ligou à namorada. O pessoal da prisão deixou-o sozinho na sua cela naquela noite, apesar de existir uma orientação explícita de que ele recebesse um companheiro de cela”, é relatado, sendo que é importante relacionar a comunicação realizada com informação que viria posteriormente a público.
Namorada de Epstein e filha de Maxwell Em abril deste ano, os advogados de Ghislaine Maxwell, hoje com quase 60 anos – detida em julho de 2020 por ligações ao pedófilo Jeffrey Epstein, com quem manteve um relacionamento amoroso por vários anos – divulgaram uma fotografia da socialite britânica, onde esta surgia com um olho negro, e alegaram que era vítima de maus-tratos na prisão onde estava a aguardar julgamento, em Brooklyn, Nova Iorque.
A filha mais nova do magnata dos media Robert Maxwell estava acusada de aliciar e de conspirar para aliciar menores a viajar para participarem em atividades sexuais ilegais, bem como de os transportar. O advogado, Bobbi Sternheim, declarou não saber como surgiram as marcas na cara da socialite, mas que “talvez” se devesse ao facto de Maxwell ter de proteger todas as noites os seus olhos com uma meia ou uma toalha, uma vez que os guardas do estabelecimento prisional iluminam a sua cela de 15 em 15 minutos para verificarem se estava a respirar e não cometera suicídio, narrou a Sky News.
Esta não foi a primeira vez que a defesa de Maxwell denunciou um tratamento diferente das outras detidas no estabelecimento. Segundo foi indicado, a companheira de Epstein estava a servir de bode expiatório para os crimes do empresário. Face às denúncias, o juiz ordenou às autoridades para apurarem se de facto os guardas verificavam a cela de 15 em 15 minutos durante o período da noite e, caso se confirmasse, pediu a explicação dos motivos.
Entretanto, há exatamente três dias, um dos irmãos de Ghislaine, Ian, fez declarações aos media. “Acho que a minha irmã provavelmente está aliviada por o julgamento estar a começar, porque ela está na prisão há mais de 500 dias em isolamento, então isso tem de acabar”, disse Ian Maxwell no programa World at One da BBC Radio 4. “Acho que há um alívio da parte dela e da parte da família”, sublinhou, admitindo que teme que o interesse dos órgãos de informação no caso da irmã coloque em risco a sua chance de ter um julgamento justo.
“Eu acho que há várias razões para isso: a enorme quantidade de cobertura negativa dos media sobre a Ghislaine durante, pelo menos, os últimos 18 meses – as reportagens negativas que não estão a vir em nenhuma outra direção senão contra ela… Acho que têm o potencial de envenenar o júri a algum nível se eles ouvirem apenas um lado da história e não o outro”, afirmou convictamente. “Não estou aqui para falar sobre inocência e culpa. A razão pela qual considero que este é um processo difícil é porque a forma que as autoridades escolheram para agir contra a minha irmã e prendê-la em isolamento é errado. É um abuso dos direitos humanos e um abuso do devido processo que ocorreu”.
Uma das mulheres que diz ter sido recrutada por Maxwell é Virginia Giuffre, alegando que tal aconteceu enquanto trabalhava na propriedade do ex-Presidente Donald Trump em Mar-a-Lago há cerca de 20 anos “para ser traficada”. Ela terá tido encontros sexuais na ilha particular de Epstein nas Caraíbas e nas casas do mesmo em Palm Beach e Nova Iorque.
“A Ghislaine Maxwell é quem abusou de mim regularmente. Ela é quem me procurou, disse o que fazer, treinou-me como escrava sexual, abusou de mim fisicamente, abusou de mim mentalmente. Ela é aquela em quem eu acredito, no fundo do meu coração, que merece que a justiça aconteça a ela mais do que a qualquer pessoa “, declarou num depoimento divulgado no ano passado. Porém, Maxwell sempre descreveu Giuffre como “uma absoluta mentirosa”.
Quando os jornalistas perguntaram ao irmão de Maxwell se algum amigo da mesma se apresentou para defendê-la, respondeu o seguinte: “Ghislaine continua a ter muitos amigos. Sei disso porque recebemos correspondência, e-mails, cartas e assim por diante dos seus amigos, mas vivemos num mundo onde pessoas são canceladas por amizades desse tipo”. À BBC Radio 4, Ian ainda rematou: “Os amigos dela perderam os seus empregos. Um senhor que nos ajudou nos bastidores a lidar com as notícias perdeu dois cargos porque se ficou a saber que ele está, de alguma forma, a ajudar a nossa família”.
Entre a versão apresentada pelas autoridades, aquela em que Ghislaine Maxwell e o seu irmão acreditam e a guerra entre quem acredita na teoria do suicídio e quem continua a defender a do homicídio, existem as falhas anteriormente mencionadas que se estendem a outras vertentes. Uma revisão dos registos prisionais “revelou uma série de entradas incompletas” no que diz respeito a provisões e serviços básicos, como recreação, registos médicos, duches e consumo de refeições. O relatório aponta que houve vários casos em que não ficou claro se Epstein tomou banho ou se teve um momento de lazer, por exemplo.
O NYT concluiu, por todos os motivos explicitados, que foram detetadas “discrepâncias significativas” entre os procedimentos aprovados para o caso de Epstein e aqueles que efetivamente foram cumpridos. “Muitas perguntas não foram respondidas após a morte de Epstein. Esperamos que a investigação do NYT forneça uma melhor compreensão das suas semanas finais e do que ele estava a dizer às pessoas em seu redor”, diz Steve Eder, que já trabalhou no Wall Street Journal, na Reuters e iniciou a carreira no Toledo Blade. “O jornalismo de investigação é extremamente importante e os nossos leitores certamente valorizam-no”.