O escrutínio da actuação do Ministério Público


Em Portugal raramente são dadas explicações públicas da actuação do Ministério Público, o que muito contribui para o afastamento dos cidadãos em relação à justiça.


Foi recentemente notícia a absolvição de nove acusados, entre os quais um antigo deputado e um antigo presidente da Câmara, tendo o Tribunal não apenas se limitado a considerar não existir “o mais leve indício de ilegalidades”, mas chegando ao ponto de qualificar a acusação do Ministério Público como “leviana e sem sentido”. Trata-se de situação semelhante ao que já tinha ocorrido com a decisão instrutória da Operação Marquês, onde a acusação do Ministério Público foi considerada pelo Juiz de Instrução como “especulação”, “fantasia” e “total incoerência”, tendo sido apenas pronunciados cinco arguidos dos 28 acusados, e reduzindo-se os crimes da acusação a 17 dos 189 indiciados. Ora, é muito preocupante que, em várias decisões judiciais, os juízes acusem o Ministério Público de fazer acusações infundadas e não seja imediatamente dada uma explicação pública das razões que levaram a que tal tenha ocorrido. Na verdade, uma acusação criminal é algo que lesa profundamente os acusados, sendo inaceitável que a mesma seja apresentada sem existirem indícios suficientes de crime.

Ao mesmo tempo, não é dado conhecimento público do estado de certas investigações, em processos que têm tido grande relevância para a opinião pública. Ainda hoje não se sabe o estado da investigação sobre o envio de informações falsas para Bruxelas relativas à nomeação do procurador europeu e muito menos se sabe do estado da investigação relativa ao acidente de tráfego com uma vítima mortal, que envolveu o carro de um ministro. Também não se sabe do estado dos processos relativos à vacinação indevida, que corresponderam a uma situação que muito perturbou a opinião pública. E, finalmente, conhece-se apenas uma acusação relativamente aos surtos nos lares, quando houve muitos mais casos com vítimas mortais, estando ainda por conhecer o desfecho do processo relativo ao surto do Lar de Reguengos, objecto de enorme polémica, e que foi causa de profundo alarme social na região, chegando ao ponto de ser encerrada a fronteira com a Espanha.

Assiste-se, por outro lado, a situações em que parece não existir uma estratégia consistente na investigação. Relativamente ao caso das investigações às redes de tráfico de migrantes em Odemira, soube-se que há poucos meses as investigações tinham sido retiradas pelo Ministério Público ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para serem entregues à Polícia Judiciária. No entanto, essas investigações foram há poucos dias de novo entregues ao SEF, não se percebendo então para quê estiveram estes meses na Polícia Judiciária e qual o impacto que isso teve nas investigações. Numa altura em que o Parlamento discute a extinção do SEF, este episódio faz recear o futuro colapso nas investigações sobre redes de tráfico de seres humanos, com esta alteração de competências. No entanto, seria muito importante que o Ministério Público tivesse explicado as razões desta migração de processos e qual o impacto que a mesma teve numa investigação que também se reveste da máxima importância.

Todos estes casos demonstram estar a haver muito pouco escrutínio público da actuação do Ministério Público, havendo grande opacidade nessa mesma actuação. Ora, é preciso compreender que a investigação e a acusação criminal, para além da possível lesão dos direitos das pessoas, envolve um enorme dispêndio dos dinheiros públicos, sobre o qual deveriam ser prestadas contas. Por isso, em muitos outros países, quando uma acusação é perdida em tribunal ou uma investigação criminal não tem avanço, são prestadas informações públicas sobre o que se passou, em ordem a que o sistema possa ser melhorado e essa situação não se repita. Em Portugal, no entanto, raramente são dadas explicações públicas da actuação do Ministério Público, o que muito contribui para o afastamento dos cidadãos em relação à justiça. É por isso urgente que esta situação venha a ser alterada, tornando-se a gestão processual pelo Ministério Público mais transparente para os cidadãos comuns.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990