Imagine que queria comprar uma consola e não podia porque, na verdade, estão esgotadas. Tem a possibilidade de reservar uma mas quando chega – passados quatro meses – é obrigado também a fazer um seguro e comprar dois jogos. Se não o fizer, perde a possibilidade de ficar com a consola que tanto queria. Foi isso que aconteceu a Alexandre Pimentel.
Mas explicamos melhor: “Encomendei uma PS5 na Fnac. Como não existia tive que fazer uma espécie de inscrição e fiquei numa lista de espera. Quando a Playstation chegou, impingiram-me dois jogos e um seguro. Se não quisesse, não podia ficar com a Playstation, que passava para o próximo nome da lista. Em vez de pagar 500 euros, paguei 630 euros”, contou ao i.
E se lhe disséssemos que esta situação – que poderá ser uma em milhares – está diretamente relacionada com a crise de chips que o mundo enfrenta? É verdade. E os problemas não se ficam por aqui. Tudo o que é construído através de silício – como é o caso de computadores, placas gráficas, consolas, entre muitas outras coisas – enfrenta atualmente graves problemas uma vez que não há matéria prima. E, durante a pandemia, a procura foi de tal ordem que hoje em dia – a título de exemplo – uma placa gráfica que custasse 500 euros pode ser comprada pelo dobro do preço.
O caso não é único, como explica ao i Mário Martins, analista da ActivTrades. “A HP aumentou o preço das suas impressoras em cerca de 20%, assim como em Portugal uma televisão de 55 polegadas UHK da LG ou Samsung que se comprava há um ano por 399 euros em promoção, hoje não se arranja por menos de 550 euros”.
E confirma o atraso nas entregas, bem como o facto de este ser um problema que pode bem prolongar-se no tempo: “Não é uma situação que se vai resolver em breve, desde logo porque a procura não vai diminuir e a resolução do problema na oferta é um processo demorado e que não pode ser apressado apenas com dinheiro”.
E apesar de a indústria automóvel ser a mais afetada com a falta destes chips, está longe de ser a única. “Segundo a Goldman Sachs cerca de 170 indústrias foram afetadas pela escassez de chips, sendo que a do automóvel é a mais visível, mas também a eletrónica de consumo, como televisões, ou a dos eletrodomésticos, como frigoríficos e micro-ondas, ou ainda a da iluminação onde em qualquer lâmpada LED existem chips”, explica Mário Martins.
E além dos tempos de espera, também os preços podem registar uma escalada. “Espera-se que este problema dure até ao final do próximo ano e isso poderá levar a um aumento dos preços dos produtos, visto que a procura continua elevada e a oferta permanece limitada por causa da escassez dos chips que continuam a atrasar a produção”, explica ao i Henrique Tomé, analista da corretora XTB.
Recorde-se que este foi um problema impulsionado pela pandemia de covid-19, como explica ao i Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa. E porquê? Porque “a procura de computadores e outros produtos eletrónicos aumentou acentuadamente impulsionada pelo teletrabalho, ensino à distância e entretenimento em casa devido à pandemia”, lembra.
E quando as fábricas retomaram a produção, “os fabricantes de microchips não conseguiram acompanhar a considerável subida da procura”. Mas este não foi o único problema: “Os nevões no início do ano no Texas e o incêndio numa fábrica de chips no Japão afetaram visivelmente a já sobrecarregada cadeia de suprimentos de semicondutores”, acrescenta Paulo Rosa.
Até quando? Até quando a crise vai durar não se sabe. Mas perspetiva-se que não será tão cedo. Esta é uma opinião unânime dos especialistas ouvidos pelo i. “Segundo os responsáveis da Intel e da IBM pode demorar cerca de dois anos, o que está dentro da média de previsões dos analistas”, diz Mário Martins. Já Henrique Tomé defende que poderá chegar até ao final do próximo ano.
Paulo Rosa recorda que “as exportações japonesas de bens duradouros e maquinaria para a produção de chips aumentou significativamente nos últimos meses e reflete o reforço da produção de chips a nível global”. Por isso, com base em perspetivas da Fitch Ratings, o economista diz que se espera que à atual escassez de chips “suceda um excesso de produção em 2023”.
A dificuldade
Mas porquê que esta é uma crise tão difícil de resolver? Ouvimos falar dela quase desde o início deste ano, com maior destaque nos últimos meses. “É difícil porque a construção de uma fábrica de semicondutores é um processo demorado, complexo e dispendioso, derivado da tecnologia de ponta que envolve, além do facto de que para se estar sempre no topo da inovação o tempo de vida útil dos instrumentos utilizados é reduzido, o que obriga a uma capacidade de investimento que está ao alcance de poucas empresas”, explica Mário Martins.
E o analista da ActivTrades lembra que este não é o único problema. “Acresce que o processo de fabrico de chips não é todo executado pela mesma empresa, existem etapas que são adjudicadas a outras, como a fundição, que neste momento é dominada por Taiwan com cerca de 60% da quota de mercado mundial e 51% é da responsabilidade da TSMC, que fabrica mais de 10,500 produtos utilizando quase 300 tecnologias de 500 clientes diferentes”.
Ora, diz o analista, neste momento só a TSMC e a rival Samsung têm capacidade para manufaturar com a tecnologia mais avançada de 5 nanómetros, estando a TSMC a preparar para o salto em direção aos 3 nanómetros, que deverá começar a produzir em 2022.
Já Henrique Tomé acrescenta que “as componentes, como alguns metais industriais, que fazem parte dos semicondutores têm sido os responsáveis pela falta de semicondutores no mercado. A escassez de silício tem causado grandes constrangimentos”. Além disso, diz, “a grande parte dos metais industriais têm sido utilizados nos vários projetos que visam a transição para a utilização de energias menos poluentes”.
E tudo isto começou com a pandemia: fábricas fechadas e aumento da procura, como lembra Paulo Rosa. Questionados sobre se existe outra alternativa, os especialistas defendem que não é assim tão linear.
“Alternativa não existe, a não ser capacitar o mercado com mais oferta e de forma estável para o médio-longo prazo”, começa por dizer Mário Martins. Só que, para isso, “é preciso estratégia das nações, pois hoje não é apenas uma questão empresarial, mas sim civilizacional, os chips são tão importantes como a eletricidade ou a internet, aliás sem eles nenhuma dessas duas tecnologias existia da forma como estão implementadas”.
Já Paulo Rosa e Henrique Tomé defendem que a melhor opção será mesmo “esperar” até porque se perspetiva que “o problema seja gradualmente colmatado em meados do próximo ano”.
E o Natal? Tendo em conta que é certo que a crise não estará resolvida este ano, as compras de Natal poderão estar comprometidas? A opinião dos especialistas não é unânime. “Sem dúvida que haverá constrangimentos na oferta de bens eletrónicos no Natal, desde logo porque já existem, por exemplo a consola PS5 é um bem que não irá chegar para a procura, assim como televisões e portáteis”, garante o analista da ActivTrades.
Já Paulo Rosa começa por explicar que “como é esperado apenas para o próximo ano um aumento da oferta capaz de reequilibrar o mercado e responder à forte procura de chips, as habituais compras de Natal poderão não ser colmatadas”.
Lembrando que as compras de Natal vão, “com certeza”, impulsionar a procura de bens eletrónicos”, o economista diz que “com o aproximar do Natal, as empresas de bens eletrónicos, tais como eletrodomésticos, computadores, consolas de jogos e telemóveis e as fabricantes de carros verão as encomendas aumentar significativamente”.
No entanto, “a atual produção de chips dificilmente conseguirá responder à forte procura da quadra festiva que se aproxima sem que os preços não subam significativamente. Alguns optarão, por exemplo, por carro novo para o ano e outros terão de desembolsar mais dinheiro para conseguiram o bem eletrónico que desejam para este Natal”.
Por seu turno, Henrique Tomé defende que “ainda não chegámos a esse ponto”. E justifica: “Embora a escassez de chips esteja a criar constrangimentos nas linhas de produção, ainda não se verifica (nem se espera) que possa provocar escassez nos produtos”.
E até Neli Valkanova, secretária-geral da ARAN lembrou ao i o facto de a época natalícia estar associada “à maior procura de consolas e equipamentos de jogos, que utilizam muitos chips e aumentam a procura”.
Marcas afetadas
Uma das marcas mais afetadas pela crise dos chips é a Intel, que é dona dos principais processadores de computadores do mercado. A marca já veio até garantir que esta crise poderá durar “vários anos”. “Apesar de a indústria ter tomado medidas para resolver os problemas no curto prazo, ainda pode levar anos para que o ecossistema resolva a escassez de capacidade de produção”, chegou a dizer o presidente da Intel, Pat Gelsinger, em entrevista ao The Washington Post.
Para conseguir colmatar os prejuízos, o responsável anunciou expandir as fábricas para outros locais dos EUA e da Europa “para assegurar uma cadeia de abastecimento segura para o mundo”, disse a meio deste ano.
Um levantamento no verão deste ano mostra que esta não é a única empresa a enfrentar dificuldades fora do setor automóvel. Outra marca que se vê a braços com a falta desta minúscula mas tão importante peça é a Nintendo, famosa marca de videojogos. A título de exemplo, a empresa chegou mesmo a anunciar que a produção do Switch, o atual modelo de consola da Nintendo, pode ser prejudicada em todo o mundo pela escassez global de chips.
A concorrente Playstation segue o mesmo caminho, principalmente com a PS5 que está esgotada em praticamente todo o lado. De acordo com informações da Bloomberg, a Sony — dona da PlayStation — admitiu que vai ser difícil colocar modelos suficientes no mercado até 2022. E o caso é ainda mais grave: quando o aparelho voltar, o preço deverá ser mais elevado.
E a Apple também não fica alheia a estes problemas, com o CEO Tim Cook, a admitir que as vendas de Macs, iPads e do iPhone 12 Pro, enfrentaram “restrições de oferta”.
Da Apple passamos para a Samsung que vê os seus produtos a chegar às prateleiras de forma mais lenta. A crise dos chips afeta empresas e consumidores. Até quando?
Nike e Adidas podem ter problemas para o Natal
A crise dos chips não é o único problema decorrente da pandemia de covid-19 que afeta as grandes marcas. E não são só as tecnológicas a sofrer na pele as consequências. O caso mais recente está relacionado com o lockdown rígido e prolongado adotado pelo Vietname para combater o coronavírus.
A medida provocou logo uma escassez de produtos entre marcas globais como Nike, Gap ou Adidas que se tornaram cada vez mais dependentes dos fabricantes do país do Sudeste Asiático. Mas este não é o único problema. A falta de navios que transportam estas encomendas está também a afetar várias marcas dos setores do vestuário e do calçado a nível mundial e, por isso, não há dúvidas: é praticamente certo que existam constrangimentos para o Natal.
É que, se há dois anos o transporte marítimo entre a China e os Estados Unidos demorava em média 40 dias, agora, segundo a Bloomberg, leva em média 80 dias. E não é só o problema de não existirem navios. É que atracar nos principais portos pode acarretar vários atrasos devido aos engarrafamentos.
Quanto à situação do Vietname, ainda não se sabe quando estará resolvida. Em julho passado, a fábrica do grupo produtor de calçados desportivos Pou Chen no Vietname suspendeu as suas atividades, dando início a vários encerramentos temporários que ocorreram neste verão na região devido ao ressurgimento de infecções. Algumas das empresas afetadas foram a Nike, Adidas, Asics, Timberland e New Balance.
À imprensa internacional, Huong Le Thu, analista do Instituto Australiano de Estratégia Política disse que o vírus “atingiu o coração económico do Vietname”. E acrescentou “isso afeta diretamente os trabalhadores e os seus meios de subsistência, bem como as indústrias globais de vestuário, calçados e eletrónicos que fornecem”. E alertou para o aumento de preços.