Descobriram que tinha diabetes aos 13 meses. Começou a ficar muito doente, os pais procuraram vários médicos e alguns destes diziam que sofria de anginas. As visitas ao hospital eram frequentes, a urina cada vez mais ácida, a perda de peso acelerada e a decisão tomada passou por uma consulta num consultório particular. “Ele viu logo que eu tinha diabetes, escreveu uma carta ao hospital e fui lá. Eles não me queriam fazer análises porque era muito pequenina, disseram que tinha uma pneumonia e fui para casa. Nessa noite entrei em coma, comecei a revirar os olhos e estava com 600 e tal mg/dL de glicemia”, conta Inês Pereira, hoje com 31 anos.
“Digo muitas vezes que a minha vida dava uma tragédia mas, depois, uma vitória. Quando isso aconteceu, a minha mãe levou-me ao hospital, estive um mês e tal internada e ela teve de aprender quase a ser enfermeira porque comecei logo a levar insulina”, explica, reconhecendo, porém, que tudo mudou quando entrou na adolescência e passou a ter a responsabilidade de controlar a patologia.
“Questionava-me acerca do motivo pelo qual era eu a ter esta doença. Por que raio não vivia sem a porcaria da insulina? Queria fazer tudo aquilo que os meus colegas faziam e só o fazia se levasse a insulina. Mas deixei de dar”, admite a rapariga natural de Leiria e ainda residente na mesma cidade que, então, mentia aos pais e tranquilizava-os garantindo que o seu estado de saúde era positivo.
“A seguir à revolta, comecei a sofrer de anorexia. Se levasse insulina, entraria em hipoglicemia. Sempre fui uma rapariga bem constituída e comecei a perder muito peso. Entre os 13 e os 18 anos, levava insulina quando me apetecia. Sentia-me sempre muito mal, cansada, passava a minha vida deitada e sem força. Como estava magra e fazia aquilo que queria, nem pensava nas consequências… Achamos que nada de mal nos acontece, só aos outros”, lembra aquela que é uma das diabéticas tipo I que não conhece a prevalência da sua doença em Portugal. Por este exato motivo, a 3 de fevereiro de 2020, a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) lançou a petição Quantos somos com diabetes tipo 1?, escrevendo que esta pode desenvolver-se em qualquer idade, no entanto, “é ainda pouco conhecida pela população em geral e decisores de políticas de saúde, e frequentemente confundida com a diabetes tipo 2, muito mais prevalente”, tendo em conta que “apesar do aumento da sua incidência e prevalência, não existe, em Portugal, um programa estruturado e coerente que aborde a diabetes tipo 1 em todas as idades”.
Ainda que os dados nacionais não tenham sido apurados, existem alguns números que nos podem ajudar a compreender a prevalência desta patologia, pois de acordo com a Federação Internacional de Diabetes (IDF), estima-se que, em todo o mundo, 1,1 milhão de crianças e adolescentes (com menos de 20 anos) tenham diabetes tipo 1 (IDF Atlas, 9.ª edição, 2019), constituindo esta uma das doenças crónicas mais comuns na infância.
Por outro lado, no final de novembro de 2019, a diretora do Programa Nacional para a Diabetes divulgou que Portugal registava, à época, entre 60 mil a 70 mil novos casos de diabetes anualmente – a maioria do tipo II – e aproximadamente 8% da população estava registada como tendo a doença.
Numa sessão realizada no auditório do INFARMED/Instituto da Farmácia e do Medicamento, em Lisboa, Sónia Duval esclareceu que Portugal apresenta uma prevalência desta doença acima da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (que congrega 36 países) e, para este fenómeno, contribuem fenómenos como o sedentarismo, determinados hábitos alimentares menos saudáveis, a obesidade e o excesso de peso da população. Deste modo, entendeu-se que a prevalência da diabetes em Portugal é de 9,9 contra 6,4 de média da OCDE. E se, quanto à doença propriamente dita, Duval indicou que 90% dos casos em Portugal são de diabetes tipo II, ou seja, aquela que atinge sobretudo uma faixa etária acima dos 40 anos de idade, podemos concluir que cerca de 10% dizem respeito à diabetes gestacional, a outros tipos menos comuns como a diabetes latente autoimune do adulto e a tipo II, de que Inês padece.
“Entretanto, os meus pais batalharam comigo e cheguei a um dia em que pensei ‘Inês, paras com isto ou vais morrer’. E comecei a comer aos 18 anos. Comia e não me controlava. Picava-me uma vez por dia e, se tanto, levava insulina duas vezes quando tinha de o fazer sempre que comesse. Comia e, com aquele peso na consciência, comia e vomitava”, admite, em declarações ao i, considerando que viveu refém dos distúrbios alimentares quase dez anos.
“Uma vez anoréxica, anoréxica sempre. Posso pensar ‘Tens de comer’, mas ao mesmo tempo algo diz-me que se comer vou ganhar peso’. Comecei a ver as coisas de outra maneira ao avançar da idade e, aos 24 anos, costumo dizer que o Dr. João Figueira ‘agarrou-me’”, declara, referindo-se ao médico oftalmologista que a segue há sete anos, em Coimbra, ano em que também ingressou no Ensino Superior, na licenciatura em Terapia da Fala.
“Ao início, estava sempre nisto das minhas dietas esquisitas e da minha diabetes muito mal controlada. Cheguei até ao doutor porque estava nas aulas e, ao longe, as minhas amigas viam perfeitamente aquilo que estava no quadro e eu não conseguia ver nada ou tudo tremido. Marquei um rastreio numa clínica de ótica, fui e a técnica disse-me que era melhor ir a um oftalmologista. E eu fiquei em pânico”, continua, afirmando que, primeiro, foi vista por outro profissional de saúde.
“Quando o médico olhou para mim e fez os meus exames, disse-me ‘Tenho uma notícia muito má para te dar. O que tens é uma retinopatia diabética’. Só pensava ‘Foi com 13 meses que o mundo caiu aos pés dos meus pais e, aos 24 anos, caiu aos meus’. Ele escreveu uma carta de urgência numa sexta e no sábado estava nas urgências do hospital”, recorda, adiantando que se cruzou com uma médica que confirmou o diagnóstico, contudo, não considerou que a doença fosse proliferativa. De qualquer modo, encaminhou-a para uma consulta com o médico anteriormente referido e, na segunda-feira seguinte, recebeu o diagnóstico final.
“O doutor disse que tinha 25% de visão e, se não tratasse de mim, ficaria cega e até morreria” Depois de ser submetida a “exames atrás de exames”, foi chamada, juntamente com os pais, ao gabinete de João Figueira, Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e Assistente Hospitalar no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “O doutor disse que tinha 25% de visão e, se não tratasse de mim, ficaria cega e até morreria. Chorei muito, muito mesmo, e houve algo em mim que me disse ‘Inês, ou corres a favor da tua saúde ou a tua saúde vai correr contra ti’. Foi aí que desisti de Terapia da Fala, fui para Nutrição e comecei a correr a favor de mim”, constata, acrescentando que a mudança dos hábitos incluiu também a prática regular de desporto, sendo que, habitualmente, corre mais de 10 quilómetros todas as manhãs.
“Fui para um curso que hoje é a minha vida, adoro-o e acho que não sabia fazer outra coisa. Não consigo uma oportunidade para exercer e sou assistente dentária de momento, mas sei que ser nutricionista é a minha paixão”, clarifica a jovem que vê João Figueira “como um pai” e dá “graças a Deus” por o mesmo ter entrado na sua vida, mas também a ela mesma. “Porque se não tratasse de mim, não havia resultados positivos. Sou uma diabética de 31 anos. Se não tiver cuidado a sério com tudo, fico em risco. A diabetes não dói, mas mata”.
Por ter trilhado um caminho duro de autoconhecimento e consciencialização para a própria doença, tem vontade de dizer ao mundo e, sobretudo, aos adolescentes: “Vocês tenham cuidado porque, por mais dia em que queiramos fazer asneiras, temos de as fazer com ainda mais controlo”. Inês pensa que os diabéticos podem “ter uma alimentação, num dia, igual à de outros jovens”, mas para aquilo que comem, existe uma quantidade respetiva de insulina. “Agora, só funcionamos com gramas de hidratos por cada insulina. Eu levo meia unidade por cada 15g, mas há quem leve uma unidade. Temos de fazer regras de três simples. Isto varia consoante o peso, a glicemia, a resistência à insulina, etc.”, elucida, dando o exemplo de que, quando lhe apetece comer algo da McDonald’s, pode fazê-lo com a glicemia controlada se fizer estes cálculos com precisão.
“É claro que há muitas variantes porque, imaginemos, a gordura das batatas fritas atrasa-me a absorção dos hidratos de carbono e, se calhar, não levo oito unidades de insulina de repente, mas sim gradualmente. Quando como refeições ricas em gordura, não posso levar a quantidade toda de insulina no momento. Passo o Libre, o aparelho de medição da glicemia sem picadas, e, à medida que vou vendo, vou administrando as doses de insulina” para que não tenha uma hipoglicemia ou uma hiperglicemia, isto é, a presença de níveis excecionalmente baixos e altos, respetivamente, de açúcar (glicose) no sangue. “Aprendi isto no meu estágio de nutrição no hospital pediátrico”.
“Acho que a pandemia atrasou muito o diagnóstico” João Figueira licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1993 e três anos depois começou a sua formação em Oftalmologia no Serviço de Oftalmologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde se mantém como Assistente Hospitalar, integrado nas Secções de Retina Médica e Cirurgia Vítreo-Retiniana. Aquele que é como um pai para Inês diz ao i que “a diabetes realmente ainda continua a ser, no mundo ocidental, a principal causa de cegueira”, sendo que “atinge a população ativa, que ainda tem produtividade económica, o que é um drama” e, infelizmente, “está continuamente a aumentar, a prevalência é cada vez maior”. Por este motivo, “temos de ter cuidados redobrados não só do ponto vista oftalmológico, mas também”.
“Estes doentes têm de ser diagnosticados e acho que a pandemia atrasou muito o diagnóstico: têm de ser observados pelo menos uma vez por ano, mesmo sem terem sintomas oculares. Há rastreios, consultas convencionadas, etc. Isto para que haja um diagnóstico precoce das lesões passiveis de tratamento”, menciona o profissional de saúde que, há seis anos, se doutorou em Oftalmologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, sendo também investigador na Associação para Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem (AIBILI) e no Instituto de Imagem Biomédica e Ciências da Vida (IBILI).
“Muitas destas situações assintomáticas foram atrasadas e, digamos, postas em segundo plano na nossa atuação médica em tempo de pandemia. É frequente chegarem-nos casos avançados. Há doentes a necessitarem de cuidados imediatos e, sem a covid-19, poderia ter-se evitado situações assim tão graves”, lamenta o médico, alinhando-se com as mais recentes conclusões da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Federação Internacional da Diabetes (IDF) e do Observatório Nacional da Diabetes (OND).
Segundo os dados da IDF, veiculados em 2019 e referentes a todos os países, 463 milhões de pessoas adultas – entre os 20 e 79 anos de idade – têm diabetes e estima-se que este número aumentará até aos 700 milhões em 2045. Assim sendo, há dois anos, uma em cada 5 pessoas com mais de 65 anos era afetada por esta doença que já havia sido responsável por 4.2 milhões de mortes.
No mesmo relatório, era possível ler que 1.1 milhões de crianças e adolescentes, a nível global, vive com diabetes tipo 1, e mais de 20 milhões de nascimentos têm uma história prévia de diabetes na gravidez. “A Inês é um caso muito curioso: é diabética tipo I. Começam mais cedo e, realmente, é difícil essa população de jovens aceitar a doença. Não querem ser diferentes dos outros, negam a diabetes, escondem-na dos amigos. Isto cria problemas graves porque tratam mal a sua patologia”.
“E um aspeto muito importante é o controlo metabólico e ter em consideração outros fatores de risco como a hipertensão arterial, as lipemias e o tabagismo, ter uma alimentação equilibrada e praticar atividade física. Isto é fundamental não só na população adulta, mas também na mais jovem. É difícil porque são rebeldes, precisam de fazer insulina e ainda há um estigma”, constata o sócio fundador do Grupo de Estudos da Retina (GER) e médico eleito como Coordenador do Grupo Português de Retina e Vìtreo da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia no biénio 2015-16.
“A Inês é muito jovem e, na sua adolescência, chegou até mim muito preocupada porque lhe tinham dado um prognóstico muito grave. Nunca tinha sido controlada e ela tem uma coisa curiosa: estava a tirar Terapia da Fala e levou tudo aquilo que lhe dissemos tão a peito que encarou a doença como missão e seguiu Nutrição”, corrobora, explicitando que hoje a rapariga tem “uma visão excelente” por cumprir a terapêutica adequadamente.
“A retinopatia diabética é uma caminhada para a vida: não desaparece, pois precisa de tratamentos continuados. Os oftalmologistas são importantes também para o tratamento para as complicações que podem pôr em risco a visão dos doentes” como o edema macular diabético – caracterizado pelo acúmulo de líquido na mácula, que é a área da retina responsável pela visão central nítida, usada para ler, reconhecer rostos, cores e conduzir.
“No passado, recorríamos ao laser, mas hoje temos até injeções intravítreas. Na verdade, os doentes preferem as injeções porque são praticamente indolores e têm muito poucas complicações. É árduo gerirmos isto porque há o peso do número de doentes que temos, a fluidez do sistema e não conseguimos otimizar os tratamentos. Não é uma panaceia”, mas existem fármacos que em princípio vão ser comercializados e podem trazer mais esperança a todos os doentes e, especialmente, aliviar o sofrimento daqueles que sofrem, simultaneamente, de edema macular e de retinopatia diabética como Inês.
“Obviamente que a Oftalmologia também trata o glaucoma e as cataratas, mas as duas razões anteriores são as principais que acometem os diabéticos. A Inês, quando chegou até mim, fez tratamentos com laser convencional e muitas injeções intravítreas. Eu trato diabéticos há muitos anos e, como sabemos, têm medo das complicações. Costuma dizer-se que é cruel porque não faz doer. Só percebem quando têm enfartes, tromboses, etc. e até perda de visão eventualmente”, diz com base na experiência clínica, garantindo que se perguntarmos a um diabético que problema teme mais, este responde que se trata da cegueira.
De facto, em novembro do ano passado, Manuel Monteiro Grillo, antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO), veiculou que a diabetes aumenta em 25 vezes a probabilidade de alguém ficar cego. Em 2016, havia 160 mil diabéticos em Portugal com retinopatia, estando em risco de cegar. Importa relacionar estes números com aqueles que foram apurados por meio dos Censos 2011: naquela época, entendeu-se que, em Portugal, existiam cerca de 900 mil cidadãos com dificuldades de visão. Destes, cerca de 28 mil não conseguiam ver, mesmo recorrendo a óculos ou lentes de contacto. Porém, a estas cerca de 28 mil pessoas cegas, temos de somar aquelas com baixa visão e, consequentemente, compreendemos que não existem números concretos sobre o número exato de cidadãos com deficiência visual em território nacional.
“O meu sonho é trabalhar com crianças diabéticas” “A sociedade não dá a devida importância a este rastreio que devia ser propagandeado e fomentado. Quase cerca de metade da população diabética, não sabe que o é. Tanto os Resultados Preliminares do Estudo da Prevalência da Diabetes em Portugal como o
Estudo da prevalência da diabetes e das suas complicações numa coorte de diabéticos portugueses: um estudo na Rede Médicos-Sentinela permitem que entendamos que mais de 40% da população rastreada em determinadas zonas do país tinha diabetes e não sabia”, informa, notando que este panorama “põe a nu a questão da população diabética que não sabe que é diabética. É quase um problema de saúde pública. Isto acontece na tipo II, é menos prevalente na tipo I”.
No caso dos jovens, estes “acabam por se deslocar às urgências com quadros agudos de hiperglicemia e o diagnóstico é feito logo na altura. Por isso é que precisam de levar insulina de imediato” e, por todos os fatores referidos, João Figueira faz “um apelo muito grande a que a comunicação social e as redes sociais, possam passar esta mensagem, a da necessidade da prevenção”, na medida em que “a população diabética tem de se aperceber da possibilidade deste controlo oftalmológico. É dramático. Se pensarmos que nem sabem que a têm, como é que se podem tratar e prevenir as complicações? A tendência dos números é de crescimento e a diabetes deve-se não só aos nossos hábitos como ao envelhecimento da população”.
“Vivo com os meus pais, tenho namorado e vamos ver o futuro. Era bom que conseguisse trabalho na área porque quero muito sair de casa. O meu sonho é trabalhar com crianças diabéticas. Ainda não tirei da minha cabeça a ideia de fazer o mestrado em Endocrinologia”, mas recebendo o ordenado mínimo e lidando com o facto de o pai ter sido diagnosticado com um tumor maligno, não sobra grande margem de manobra à jovem para ter mais despesas agora.
“Mas, sinceramente, gosto de todas as áreas da nutrição e é tão mau querermos trabalho, mandarmos mil currículos e não recebermos uma resposta. O dinheiro não estica, não tenho tempo nem dinheiro. Mas nunca desistirei de ajudar quem passou, passa ou passará pelo mesmo que eu”.