Lei do cibercrime. Uma solução “acertada e muitíssimo importante”

Lei do cibercrime. Uma solução “acertada e muitíssimo importante”


Lei volta para trás. O advogado David Silva Ramalho realça que o TC concluiu que, no caso das comunicações eletrónicas, se caminha para um regime jurídico que não distingue mensagens abertas e por ler.


O Tribunal Constitucional (TC) chumbou por unanimidade a lei do cibercrime devido à inconstitucionalidade de normas da mesma, após um pedido de fiscalização do diploma pelo Presidente da República. Para o advogado David Silva Ramalho, especializado em cibercrime, em declarações ao i, “o impacto desta decisão poderá, inclusivamente, alargar-se a outros âmbitos do direito, como ao direito contra-ordenacional”.

Recorde-se que, no início de agosto, o Presidente da República enviou para o Tribunal Constitucional a lei que permitia ao Ministério Público aceder a comunicações eletrónicas privadas em investigações de cibercrime, sem uma autorização prévia de juízes. À época, numa nota publicada no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que era “oportuno clarificar, antecipadamente, a conformidade constitucional do novo regime de acesso a informação eletrónica sensível, e a compreensível preocupação que pode suscitar em termos de investigação criminal”. No mesmo texto, o Chefe de Estado salientou que a Comissão Nacional da Proteção de Dados levantou dúvidas sobre o novo regime, sendo que esta já tinha avisado que a medida representaria “uma manifesta degradação do nível de proteção dos cidadãos”.

Agora, segundo o comunicado lido pelo presidente do TC, João Caupers, os juízes consideraram que as normas resultariam na “restrição dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações e à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática, enquanto manifestações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada, em termos lesivos do princípio da personalidade”.

Na decisão, tomada pelos sete juízes que integram o primeiro turno em período de férias judiciais e elaborada pela conselheira Mariana Canotilho, é possível ler que poderia estar em causa uma “violação do princípio da reserva de juiz e das garantias constitucionais de defesa” na esfera do processo penal.

É de lembrar que, na nota de Belém há um mês, Marcelo Rebelo de Sousa deixou claro que “decidiu suscitar junto do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de disposição contida no diploma da Assembleia da República relativo ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário”.

No pedido enviado ao TC, acrescentou que “não constitui um mero ‘ajustamento’, mas a uma mudança substancial no paradigma de acesso ao conteúdo das comunicações eletrónicas, admitindo-se que esse acesso caiba, em primeira linha, ao Ministério Público, que só posteriormente o apresenta ao juiz” e, deste modo, “perante as dúvidas suscitadas, parece oportuno clarificar, antecipadamente, a potencial não conformidade constitucional deste novo regime e a compreensível preocupação que pode suscitar em termos de investigação criminal”.

Apreensão de correio eletrónico? Sim, mas nem sempre O advogado David Silva Ramalho, associado principal na equipa de Contencioso Criminal, Risco e Compliance da Morais Leitão, começa por realçar que “atualmente, e desde 2009, a autoridade judiciária que pode ordenar ou autorizar a apreensão de correio eletrónico é o Juiz de Instrução”, sendo que “durante vários anos a jurisprudência dividiu-se sobre se esta competência incidia apenas sobre mensagens fechadas ou por ler, ou se abrangia também mensagens abertas e presumivelmente já lidas”.

“Esta dúvida resulta da circunstância de, durante muito tempo, a apreensão de correio eletrónico ter sido equiparada à apreensão de correio físico, em que as cartas fechadas são consideradas correspondência – e apenas podem ser apreendidas por ordem do Juiz de Instrução – ao passo que as abertas são tratadas como mero documento e podem ser apreendidas também pelo Ministério Público”, esclarece o profissional especializado em cibercrime e prova digital e assistente convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, adiantando, que, “com o passar dos anos, a doutrina e a jurisprudência mais avisadas caminharam no sentido de defender que não faz sentido distinguir entre mensagens de correio eletrónico abertas e fechadas para se saber a entidade competente para ordenar ou autorizar a sua apreensão”.

“O correio eletrónico é diferente do correio físico e deve, por isso, merecer tratamento jurídico distinto. Daqui resulta que todas as mensagens de correio eletrónico, abertas ou fechadas, apenas devem poder ser apreendidas por ordem do Juiz de Instrução”, avança o também pós-graduado em Direito e Cibersegurança e mestre em Ciências Jurídico-Criminais, clarificando que “com a alteração legislativa proposta, pretendia-se atribuir a competência para determinar a apreensão de correio eletrónico, todo o correio eletrónico, apenas ao Ministério Público – e, em alguns casos, aos órgãos de polícia criminal”.

“A questão que se discutia neste acórdão era essencialmente a da constitucionalidade da atribuição de competência ao Ministério Público para determinar a apreensão de mensagens de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante (como sejam mensagens de WhatsApp, Signal, Telegram ou em Messengers de redes sociais) ao Ministério Público, no âmbito de processos-crime”, adiciona, indo ao encontro do motivo pelo qual Marcelo Rebelo de Sousa enviou o requerimento ao TC no passado dia 4 de agosto. “Era saber se esta norma promovia uma intromissão abusiva nos direitos fundamentais ao sigilo da correspondência, à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática, enquanto núcleos de reserva de intimidade da vida privada”, diz sobre a proposta do Governo sobre a Lei do Cibercrime que foi aprovada com os votos de PS, PSD, BE e PAN.

“O Tribunal Constitucional entendeu, numa súmula muito resumida, que a apreensão de correio eletrónico, por configurar uma restrição relevante a direitos fundamentais dos visados, apenas será admissível no processo-crime e somente com intervenção do Juiz de Instrução, enquanto juiz das garantias”, explica o investigador no Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais (CIPDCC) e associado do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais (IDPCC).

“A solução parece-me acertada e muitíssimo importante no quadro de crescente permissividade na ingerência em direitos fundamentais em processos sancionatórios. O impacto desta decisão poderá, inclusivamente, alargar-se a outros âmbitos do Direito, como ao direito contra-ordenacional”, prevê o autor da obra Coletânea de Legislação Sobre Cibercrime e Prova Digital, salientando que acredita nesse panorama “porque há vários anos que algumas autoridades administrativas, muito em particular a Autoridade da Concorrência, têm promovido a apreensão de correio eletrónico ‘aberto’, sob o entendimento de que estaria excluído do âmbito da tutela do direito à inviolabilidade das comunicações”.

No entanto, depois do chumbo desta lei, “o Tribunal parece afastar esse entendimento ao concluir que atualmente se caminha para um regime jurídico-constitucional tendencialmente único, que não distingue mensagens abertas e mensagens fechadas”.