O desconfinamento trouxe de volta alguns elementos do “velho normal”, mesmo aqueles que de forma inconsciente tínhamos passado a gostar de ter esquecido. Elemento típico da sociabilidade urbana, o engarrafamento automóvel andou desaparecido durante muitos meses. Esta ausência embotou, à escala planetária, as capacidades comunicacionais dos utilizadores de vias públicas. Os portugueses não foram dos menos atingidos e urge recuperar as capacidades perdidas.
O trânsito automóvel em meio urbano suscita paixões que colocam a duras provas os recursos vocabulares e as capacidades comunicacionais dos intervenientes. A gestualidade pode ser bela mas perde para a palavra. Mesmo que, quando conseguido, um gesto valha mil palavras, não se substitui a uma língua frondosa em apodos dirigidos ao cidadão que nos pisa os calos automóveis. Recordo com gosto um colega expatriado que, emergindo agastado de um sinistro engarrafamento numa capital europeia, declarou com sabedoria: “Nunca dominamos verdadeiramente uma língua enquanto não soubermos insultar alguém de uma forma eficaz e definitiva”.
A arte do insulto anda sobre rodas mas levanta enormes dificuldades. A comunicação implica declarante, declaratário e a sua circunstância. A circulação automóvel empresta à circunstância um elemento de surpresa só conhecido dos apóstolos da mão invisível e da ignorância partilhada pelos agentes económicos num mercado sabiamente auto-regulado.
O insulto em meio rodoviário deve ser proferido à queima roupa, há que ouvir o disparo verbal logo a seguir aos acordes de Morricone, substituídos pelos buzinados estridentes do coro automóvel. Armado o insulto há que tentar comunicar com o insultado. No mundo rodoviário a eficácia tende a ser preferida à forma. A beleza da frase de Cícero (“Até quando Catilina abusarás da nossa paciência?”), mesmo vertida para vulgar, não é adequada à discussão da evolução da regra da prioridade na circulação em rotundas. Da mesma forma, uma alusão rebuscada à natureza do ADN do cidadão automobilista que se pretende insultar (“És o elo perdido!”) não facilita a comunicação e, como ensina o Código Civil, pode não permitir a um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, alcançar o sentido da piedosa declaração.
A poética do insulto ensina a combinar os elementos de eficácia (o vocabulário escatológico dá, desde Gil Vicente, garantias de sucesso) com as concessões feitas à estética. Um insulto deve ser belo e será tão mais belo quanto mais eficaz. Se a natureza do destinatário exige uma maior aposta na eficácia do insulto em detrimento da respectiva estética, poder-se-á recorrer a um público mais vasto que capte o sentido da declaração. O expediente é conhecido desde o século VI a.C. pela dramaturgia grega e permite que as falas dos personagens tenham eco mais amplo junto do coro e do anti-coro.
Um belo insulto não deve deixar de ser utilizado só porque se suspeita da menor capacidade de compreensão do normal declaratário. A fronteira do não uso será traçada na zona de incomunicabilidade absoluta. Se o destinatário não está em condições de compreender a beleza do insulto mas mesmo assim suspeita de que está a ser insultado, conceda-se o insulto.
Em situações limite recorra-se ao público mais alargado que poderá valorizar a declaração. Como outros parados no trânsito do fim de tarde, ouvi esta declaração dirigida a um cidadão que dera origem ao engarrafamento: “-Só não fui teu pai porque a tua mãe não tinha troco!”.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990