De entre as várias publicações que, em anos recentes, a propósito do centenário da I Guerra Mundial foram para as livrarias portuguesas, O mundo de ontem, de Stefan Zweig, não pôde deixar de provocar um vivo e impressivo impacto em quem procura pensar a cidade e a sua ecologia, as ideias e ideais de vida, as crenças e os sentimentos, as convicções que nela imperam. Sempre de modo analógico, claro, com as devidas distâncias de escala e tempo, importa revisitar um mundo que ficou para trás.
Os rapazes a faltarem às aulas para aguardarem, pacientemente, na fila por um bilhete de ópera; os cafés, os bons cafés, pejados de jornais: os locais, austríacos; os do Império Alemão, os ingleses e os italianos – a que se juntavam as melhores revistas artísticas e literárias da época; dos concertos às viagens, diárias, às livrarias, sempre em busca da mais recente novidade, do autor por descobrir, da ideia mais avançada; e discussões, horas de discussões, diariamente, a caminho da escola, toda a turma empolgada, rapaziada de liceu, note-se, na discussão sobre uma crítica literária, um escritor, um artigo de jornal, uma obra acabada de sair; há poetas que cativam os jovens, Rilke e Hofmannsthal mais do que tudo, mais do que todos, e se tornam ídolos, cujos textos se plasmam na contracapa do livro de Matemática, há filósofos que o distante Mestre-Escola, austero e frio, que havia deixado o livro no último ano de faculdade, desconhece, mas que guia todas as conversas adolescentes.
No ar, frémito e mudança, a arte antecipa, ou por ela passa, uma nova corrente que varrerá o mundo; a era da segurança ficara para trás. A escola é maçuda e maçada, o currículo é pesado. Mas há uma atmosfera à volta que tudo transforma. A Viena de Stefan Zweig, a Viena antes da I Guerra Mundial, carregada de vida criativa, de génio e impulso, é uma certa ideia, concretizada, de cidade a que convém, sempre, voltar.
Na Viena de Zweig, há, sem embargo, a obediência absoluta, o professor na escola, o pai em casa, como valor supremo; a negação da juventude – no fundo, um espaço inexistente, sendo conformado por "aquela idade até estar maduro", maturidade, de resto, sempre por chegar, desconfiança de toda a força vital, que se impunha refrear; sexualidade reprimida, moral vitoriana estrita e estreita, muita hipocrisia, mulher sem corpo, casta, virgem, desconhecedora do desejo e da vida, “sexo fraco”, puritanismo extremado em jogo de criadas utilizadas para a educação sentimental dos adolescentes, muita prostituição pelas ruas, a horas diversas, doenças venéreas, sífilis, como os grandes monstros (reais). Nestas maneiras muito convenientes, neste completo predomínio do social sobre o demais, neste bas-fond tão diverso e longínquo do que a literatura e arte da época idealizam, é já da sociedade que Haneke coloca em cena em O laço branco, do germinar do ovo da serpente, que nos recordamos.
Luzes e sombras de uma história que quando ignorada ameaça voltar pelos becos mais escuros, quando tinha tudo para iluminar os lugares mais ousados. A Viena antes da I Guerra Mundial pode ser símbolo de uma aposta cultural, envolvente, liderada por jovens agastados com o estado de coisas e que buscam o melhor, em um esforço que hoje diríamos de capacitação que os vários poderes públicos podem ajudar a promover. É que, em nosso tempo, demasiadas vezes, como sublinha Pascal Bruckner, preferimos ser felizes a ser sublimes. E o entretenimento, ou espectáculo, não devia ser tudo, ou quase tudo.