“Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico, está presentemente no Brasil”, escreveu Fernando Pessoa sobre esse seu heterónimo numa carta datada de 13 de janeiro de 1935. Viria a morrer no final desse ano e assim, pelo Brasil, se ficaram Ricardo Reis e a sua biografia. Em 1984 veio José Saramago fazer aquilo a que João Botelho chama de um ajuste de contas. Desses que acredita os grandes génios acabarem sempre por fazer entre eles. Escreveu, atreveu-se a escrever nessa obra a que deu o nome de O Ano da Morte de Ricardo Reis: “Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa”. Pouco depois. Tão pouco que veio ainda a tempo de ler no jornal a notícia da sua morte. Sua, de Pessoa, ou sua, de si próprio. É que vinha lá no jornal, ao lado do de Pessoa, o seu nome.
O criador e a criatura, assim os dispõe João Botelho que depois de A Peregrinação, e dando seguimento ao que se transformou já na missão de ir a cada filme adaptando mais uma obra de um grande escritor da língua portuguesa, acaba de estrear nas salas O Ano da Morte de Ricardo Reis. Pessoa morreu em 1935, mas o ano da morte de Ricardo Reis é já o seguinte: 1936. Os meses que as separam não são só o tempo suficiente para que os mortos se despeçam em definitivo da terra, a fazer fé em Saramago e nas palavras deste seu Pessoa-fantasma; são também os suficientes para que possamos olhar para um tempo. Um período histórico, determinante, a que João Botelho julgou ser este o tempo justo para regressar. 2020, ano de pandemia como 1936 foi ano de cheias e de temporais. Ano de consolidação dos fascismos pela Europa como este (e os que o antecedem) tem sido o que já não dá para não se ver.
“De 1936 para 2020, parece-me sobretudo que não aprendemos nada”, diz ao i. “Havia naquele tempo um mal, que foi o que me interessou mais no romance, que é muito parecido com o mal de hoje: os populismos e os fascismos. A consolidação do fascismo italiano, a invasão da Etiópia, Adis Abeba a arder, as primeiras invasões do Hitler, a guerra civil de Espanha e o fascismo português, com a consolidação do Salazar, da Polícia de Estado, da Legião, da Mocidade, o primeiro comício anticomunista numa tensão enorme. É um mal muito parecido com o de hoje, do Bolsonaro e do Trump e do Orban e do Erdogan e o Putin… é tudo muito parecido”.
Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Botelho filmou então Saramago, filmou Pessoa e Ricardo Reis, e filmou um ano: 1936. “Estamos a voltar a 1936, é um bom romance para os tempos que correm. Gosto muito dos personagens que Saramago inventou, mas para mim o personagem principal aqui é o ano de 1936”. Filmou 1936 e filmou-o como se nesse tempo ainda estivéssemos — até porque talvez estejamos mesmo, talvez nas já quase quatro décadas que nos separam da publicação do romance de Saramago o caminho que se fez pareça agora ter sido feito de volta aí, não para a frente.
Para cada filme vem inventando João Botelho que não se cansa de repetir que para ele o cinema não é a vida, é artifício, a sua própria forma, aquela que a cada vez lhe parece justa. Se em Os Maias assumiu como artifício os cenários pintados à mão por João Queiroz e d’ A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto fez um musical a partir de Por Este Rio Acima, de Fausto, aqui voltou ao preto e branco dos anos 30. “Não podia filmar 1936 em Lisboa com uma ideia de verosimilhança a cores, com sinais de trânsito, táxis pretos e verdes a passar, pessoas vestidas a hoje na rua”, explica. Mas foi mais longe João Botelho em O Ano da Morte de Ricardo Reis, que regressa também ao film noir, género que teria o seu auge entre o final dessa década e o ano divisor do século.
A O Ano da Morte de Ricardo Reis de João Botelho, em que Ricardo Reis pode ser interpretado por um ator brasileiro (Chico Díaz) e Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) pode aparentar mais ser velho do que na realidade era à sua morte, não faltará sequer a cena de polícia, a verdadeira cena de polícia que ajuda ao género — e que dá ao realizador o pretexto para um pouco de história do cinema português. A cena de polícia é afinal uma cena de um filme de Lopes Ribeiro a ser rodado. Mas que não seria pura ficção na época, o tempo em que assistia ao endurecimento da ação da polícia política do Estado Novo.
Não faltará também um cameo de Pilar del Rio, “a presença de Saramago no filme”. Afinal é dele este romance que adaptou ao cinema, e foi sobretudo dele e do seu universo, mais do que de Pessoa, que procurou aproximar-se aqui. “Aqui o Pessoa, o criador, é muito cínico em relação à criatura. Esse humor é do Saramago”, nota. “Inventou também aquela coisa maravilhosa de uma pessoa depois de morta ainda andar nove meses cá fora, o tempo equivalente àqueles nove meses que se perde dentro da barriga da mãe. E uma criada chamada Lídia (Catarina Wallenstein). Lídia, uma deusa do Olimpo, que de repente é uma criada”.
Mas a Pessoa parece João Botelho predestinado. Muito antes do Filme do Desassossego, a partir do romance do heterónimo Bernardo Soares, já em 1981 tinha feito Conversa Acabada, a partir da correspondência do escritor com o poeta Mário de Sá Carneiro. Na companhia de Pessoa terão andado os dois nesses anos mais auspiciosos do que estes. Botelho e Saramago.
Leia a entrevista integral a João Botelho na edição do b,i, suplemento do semanário SOL, deste sábado.