Jorge Luis Borges. “Toda a gente sabe onde encontrar a poesia”

Jorge Luis Borges. “Toda a gente sabe onde encontrar a poesia”


Em Este Ofício de Poeta (Relógio D’Água), Borges explica-nos que «o que é importante na metáfora é o facto de ser sentida pelo leitor ou ouvinte como metáfora.» O importante diria, será senti-la viva, deixá-la fazer-nos carne e ofício, queimar-nos vivos em sacrifício.


Seis palestras. A vida e a literatura. A vida da literatura. Um escritor que se pensa como leitor. Um leitor que só lê o que gosta e que regressa sempre às primeiras leituras do Pai como um verso à baía de Lapataia.

Este Ofício de Poeta materializa o que para Borges significou a Poesia, e o que não significou. Em cada palestra O Enigma da Poesia; Metáfora; Contar o conto; Música da Palavra e Tradução; Pensamento e Poesia; O Credo de Um Poeta, Borges leva-nos a calcorrear com ele, como um segredo num búzio, as suas dúvidas, as suas perplexidades e os seus pensamentos.

Creio que o que mais sobressai nestas palestras é a sedução desarmada com que reivindica o próprio ofício da poesia. Pensar poesia sem a agrilhoar é pensar a vida, é andar às escuras num hall de entrada e descobrir-lhe no interruptor mais escuridão ainda, mas uma escuridão inevitável, inesperada, inviolável.

Borges recorre frequentemente a muitos escritores, filósofos e grandes oradores que admira e os cita de cor. De Cristo, Santo Agostinho, Pitágoras, Sócrates, Platão, Buda, a Chesterton, Tennyson, Cummings, Lugones, Borges cita-os de cor. Cita-os de cor porque já estava praticamente cego nos anos sessenta, data destas palestras.

É no Enigma da Poesia (p.13) que escreve «a maior parte dos grandes mestres da humanidade não foram escritores, mas oradores» e é aqui que lembra Platão e nos ajuda a entender a essência do platónico.

Qual é o leitor que nunca teve um amor platónico? Qual?

Então, Platão num dos seus diálogos (p.13)« fala de livros num tom algo depreciativo: “O que é um livro? Um livro, tal como um quadro, parece um ser vivo; e contudo, se lhe perguntarmos alguma coisa, não responde. Vemos então que está morto”. Para tornar o livro uma coisa viva, inventou – felizmente para nós o diálogo platónico.»

Vistas de perto as coisas, no amor passa-se exactamente o mesmo.

Imaginamos um amor, um oásis, somos até capazes de morrer de desgosto, de nos enforcarmos nesse oásis. Emprestamos-lhe vozes, silêncios e lábios, mas no fim ele continuará sempre à espera de mais vozes e mais silêncios e mais lábios, até não o voltarmos a encontrar.

É assim, nesta maravilhosa simplicidade que Borges desenlaça nos nossos, os seus pensamentos.

Quando Sócrates morreu, Platão que sentia muito a sua falta, começou a escrever-lhe. Escrever é vaguear, vadiar, platonizar tudo o que nos falta ou sobra nesses lábios que nunca voltaremos a encontrar. Talvez encontremos os silêncios e as vozes um dia, mas nunca o oásis.

«Toda a gente sabe onde encontrar a poesia» (p.21), é assim que Borges decifra este enigma. Talvez na nossa literatura só alguém como Agustina, que dizia que «o poeta é um predador, que quando diz rosa quer dizer sangue e quando diz luar sublinha a pista do caçador», tenha chegado tão próximo do caminho encruzilhado da metáfora.

Metáfora talvez tenha sido, a meu ver, a palestra mais encantadora do livro. É aqui que as suas palavras vibram, pulsam e se harmonizam, porque Borges conhece bem o ser humano e as suas fragilidades. Ele sabe (p.30) «que uma coisa sugerida é muito mais eficaz que uma coisa expressa.» Ele sabe que o que fica por dizer é capaz de atear um pacto com o fogo e com a neve.

Impossível não nos lembrarmos de O Carteiro de Pablo Neruda, de Mário Ruoppolo, dos sorrisos borboleta da amada Beatrice e dos diálogos da velha Avó escandalizada com as metáforas do postino. Quando un huomo cominja a tocar-te com les paroles, arriba lontano com li mani. Quando um homem começa a tocar-te com as palavras, chega mais longe com as mãos. Eu diria que quando um homem começa a tocar uma mulher com as palavras, coisa cada vez mais rara, em concha tem-na exilada nas suas mãos para sempre.

“As palavras são a pior coisa que existe” dizia em fúria a velha mulher. Também talvez sejam os amores platónicos a pior coisa que existe, mas isso são os ossos do ofício, o ofício da liturgia das palavras, de todas as palavras.

Borges começa por definir a metáfora dizendo que todas (p.23) «são feitas da ligação de duas coisas diferentes» e que por isso há um sem número de infinitas possibilidades, para depois, chegar ao fim da palestra alegando ter (p.32) «a certeza de que as vossas memórias estão cheias de metáforas.»

Qual terá sido a metáfora mais estonteante que me fizeram? É o que certamente o leitor estará agora a pensar.

Até há algum tempo só guardava uma metáfora comigo. Sol e sombra. Dupla. Uma metáfora a que regressava em jejum nos dias mais quebrados. Eu era dupla, sol e sombra. Depois, há pouco tempo passei a ser mais que uma metáfora. Passei a ser um corredor escancarado onde me passeava enrolada num toalhão com o cabelo molhado, e agora sou um grande tempo.

Borges explica-nos que (p.24) «o que é importante na metáfora é o facto de ser sentida pelo leitor ou ouvinte como metáfora.» O importante diria, será senti-la viva, deixá-la fazer-nos carne e ofício, queimar-nos vivos em sacrifício.

Impressionante como Steiner em A Poesia do Pensamento (p.38) e Borges neste livro se referem à mesma frase de Heráclito, «Ninguém entra duas vezes no mesmo rio», para demonstrarem a urgência metafórica na literatura e os seus efeitos distintos, com a diferença que Steiner resume tudo a um “jogo de palavras” e Borges analisa mais a fundo as variáveis que a metáfora pode suscitar.

Pode ser bom não mergulharmos duas vezes no mesmo rio, porque há uma certa sugestão de infortúnio, de medo, ou, porque só a conjugação do prenome indefinido com a palavra rio sugere qualquer coisa de efémero, passageiro, vazio. Mas, também pode ser terrível ser duplo, sol e sombra, ou maravilhoso e esplendido. Mais do que sombria, vaga, dengosa, rapioqueira, torrencial ou pouco transparente, Borges diz que temos que entender a metáfora como um sonho. O poeta cita Shakespeare «somos a matéria de que são feitos os sonhos» para sublinhar a ideia de sonho, de cortesia onírica. Afinal não haverá melhor cortesia para com a vida do que os sonhos. Nos sonhos demoramo-nos sem correntes em todas as metáforas imaginárias, abençoadas.

Ser um grande tempo, essa outra recente metáfora que me fisgou, pode assustar. Posso ser grande por ser pesada, por ter um coração de meia tonelada mesmo que insuflável, mas posso ser grande por levar alguém comigo a um tempo possível, ao tempo do vinho doce no lagar, do jardim da tangerineira com os bancos de pedra e a casinha na árvore. Esse tempo é o esplendor da metáfora na sua duplicidade, na sombra, na luz, no seu grande tempo, nesse grande templo.

É bom que nos deixemos cercar de metáforas que nos façam desabitar o mundo pandémico, contaminado de enganos e agonia que vivemos. É bom que deixemos as metáforas converterem este vírus, converterem a doença em sorriso, o desânimo em força, em fábula, em fantasia. Esse é verdadeiro ofício da Poesia, o ofício das histórias.

«Não me parece que alguma vez os homens se cansem de contar e de ouvir histórias. E se, a par do prazer de nos contarem uma história, obtivermos o prazer adicional da dignidade do poema, algo de grande terá acontecido.» (p.44) No fundo, tudo se resume a dignidade. Os contos, a poesia, o seu tempo, graça e melodia, as metáforas para onde livres os poemas nos levam soltos.

Há dias assisti ao concerto mais digno de sempre. Um concerto de um músico lindo, talentoso, brilhante. O argentino Walter Hidalgo interpretou tangos e milongas no meio de uma livraria da lapa sozinho apenas com a companhia do seu bandoneón , de alguns outros instrumentos em seu redor e do Changuito, o livreiro que o gravava a tocar enquanto fumava, e como eu certamente se comovia.

Na verdade, o corona roubou os palcos, a sobrevivência financeira de muitos artistas, o pano dos teatros, as cadeiras dos cinemas, o silêncio emplumado da Gulbenkian ou de Serralves quebrado apenas por guias poliglotas e algumas crianças irrequietas. O Corona roubou as marchas populares, bilheteiras de concertos, quintas de leitura, noites de Pinguim, livrarias, mas não roubou a música, não roubou a arte, não furtou os livros. Agitou-os, elevou-os, dignificou-os.

Walter interpretou vários tangos e no próximo concerto na Poesia Incompleta tocará Mercedes Sosa, a sua Razón de Vivir, Gracias a la Vida e La Tristecita de Hugo Díaz que tanto Borges adorava. Em tom de homenagem e saudade dedicou o Desencuentro a alguém que estava longe, não percebi quem, mas longe estamos todos querido Walter, só naquele concerto on line ou em algum poema estaremos juntos de novo. Juntos, colados, estreitos, enovelados.

Para Borges, a história da sua Buenos Aires tece-se com dois fios, a literatura e o tango porque «Ao escutar um tango velho sabemos que houve homens valentes.» Walter é o argentino mais valente de Lisboa.

Borges que era assumidamente anti peronista, uma vez quando ironicamente lhe perguntaram se Juan Péron o tinha visitado alguma vez em sonhos, ele respondeu (p.111) «que de maneira nenhuma o admitiria nos seus sonhos» ,como nós de maneira nenhuma admitiremos o corona nos nossos sonhos, em nenhuma metáfora.