A modernidade criou promessas (como se não houvesse constrangimentos à sua efectivação) de emancipação (individual) que não conseguiu concretizar. A civilização democrata e liberal, de indivíduos (emergentes, supostamente) cultos e endinheirados não teve a eficácia almejada. Em muitas sociedades, a combinação de uma apertadíssima competição, a rápida obsolescência dos indivíduos (ou das capacidades destes) e o seu consequente carácter supérfluo (quando não ao encontro do que a sociedade comercial dos seus dias reclama), a ansiedade do status (e de poder) por concretizar (despida esta, ainda para mais, das amarras, ou, paradoxalmente também, do conforto de sistemas de castas, fossem estas propriamente ditas/formalizadas, fossem materialmente presentes nas sociedades), o aumento da riqueza mas a sua repartição excessivamente desigual; a perda das filiações (instituições que ancoravam a pessoa) e do sentido de pertença; as ambições, esperanças, expectativas, a ideia de progresso – tudo por cumprir e a desmoronar-se (passando-se para a ideia de retrocesso dos níveis de vida, muito presente nos nossos dias); a globalização e seus perdedores; as religiões ou a família, a comunidade depreciadas/menosprezadas fizeram com que estes abalos sísmicos de um mundo plano na vivência do espaço-tempo encontrasse um protagonismo desmedido para o ressentimento que, em se tendo sentido no Ocidente logo no pós-Revolução Industrial, gerando um conjunto de massas alienadas e prontas à glorificação da violência, encontram, hoje, num mundo completamente interligado, o seu semelhante mesmo no dito outro civilizacional: para os que não conseguem pensar fora das reduções binárias, torna-se difícil, porventura, compreender o porquê das semelhanças entre as práticas apocalípticas dos ditos fundamentalistas de hoje – com certeza, com as suas especificidades e idiossincrasias; a história não é pura repetição -, com contornos paralelos aos de há cem anos (a Ocidente) e mesmo no séc.XIX. O ponto (político), para o intelectual indiano Pankaj Mishra, autor de Em Tempo de raiva. Uma história do presente (Temas e Debates, 2017) do ressentimento e a manipulação e aproveitamento de líderes de pouca espessura intelectual, mas furibundos trauteadores dos bodes expiatórios que a massa produzida espera convocam o caos e o sem lugar para o qual se dirigem. Notas a fixar: as promessas desmedidas com que o político – de todos os quadrantes ideológicos – semeou desmesuradas expectativas (naturalmente, por cumprir); quando a riqueza, o conforto material não surge, em mais nada consistindo a felicidade segundo o novo dogma, e em se transmutando todas as alternativas de sabedoria outras (deitadas para o caixote de lixo da história, com a prudência de um elefante na sala), restará o ressentimento (a cólera, a raiva, a inveja, o ódio) como reacção. As soluções abstractas (sem atender ao que cada espaço se poderia melhor aplicar), os homens miméticos ("a construção da nação e do Estado na era pós-colonial foi um projecto grandioso: centenas de milhões de pessoas foram convencidas a rejeitar – e muitas vezes a desdenhar – um mundo vindo do passado que existia há milhares de anos e a lançarem-se num jogo de risco que criaria cidadãos modernos, que seriam laicos, esclarecidos, cultos e heróicos", p.155) por todo o globo, soluções estas como que representando um (actualizado) património dos filósofos das luzes aplicado à escala global (contra esta abstracção já se levantara Tocqueville), levou ao desenraizamento de tantos; uma tradição mandada borda-fora (e colocada, no entender de outros, também em causa, em um mundo interdependente e com migrações em grande escala), sem suficiente ponderação, em sociedades que descuram qualquer equilíbrio (ou balizas, qualquer noção forte de Bem para além de Justo, mesmo a nível societal que não seria, necessariamente, o do Estado); a glorificação de um individualismo sem individualidade, dos agentes egoístas e racionais (redutora descrição do humano); a redução da pessoa a indivíduo, numa sociedade puramente comercial e competitiva; uma globalização que, tendo diminuído a pobreza, aumentou a desigualdade no interior dos países e levada a uma expansão que coloca em causa a própria democracia; a queda das instituições, da comunidade, da imaginação (quer dizer, de qualquer ideal, de qualquer ideia outra, o fim do sonho). Os tempos vão pessimistas – ou, se se preferir, realistas face a um pretérito optimismo cândido -, com noções como “progresso” a desaparecerem, a ideia de uma história com uma dada finalidade inscrita em si a passar por relíquia de antiquário, o desmoronamento da cultura, a dúvida sobre o futuro da democracia ou da civilização: em suma, em duas ou três décadas tornámo-nos cépticos.