Diferentes ângulos oferecem-nos diferentes perspectivas e até verdades sobre um mesmo problema. Hoje, quando consideramos a pandemia do novo coronavírus, tanto vale a pena espreitar pelo buraco da fechadura como ir aos livros de História. Tanto ouvir as confissões de um rato como deixar-se levar pelos canais subterrâneos do conhecimento que um rato de biblioteca domina. O saber é desde logo um calmante. O médico pode deixar-se contaminar mas estar de tal modo extasiado nas coisas que vai descobrindo através da auto-análise que se deixa matar por curiosidade, anotando até à última aquilo que vai ouvindo da doença como se fosse esta o seu paciente. Assim, para uma perspectiva um pouco mais aberta. Consideremos alguns tópicos na análise das epidemias que fomos conhecendo ao longo dos séculos.
Transportes
O que logo avulta numa perspectiva que considere a evolução das epidemias é que o contágio tem vindo a acelerar de forma vertiginosa. No século XIX levou anos para que a cólera e a peste deixassem os seus centros endémicos na Índia e na China e se espalhassem, chegando à Europa e à América do Norte. Era uma travessia complicada mesmo para as doenças infecciosas, que estavam dependentes das rotas comerciais que se faziam através de caravanas, com carroças puxadas por cavalos e veleiros. Tudo isso mudou com a entrada em cena dos navios a vapor e a expansão da rede ferroviária europeia. Foram os comboios a vapor que, no final do século XVIII, espalharam a chamada gripe “russa” por toda a Europa. O resultado foi que, quatro meses após o primeiro relatório de um surto em São Petersburgo, em dezembro de 1889, a gripe russa foi introduzida em Berlim e Hamburgo, e daí foi levada por transatlânticos para Liverpool, Boston e Buenos Aires. Mas a grande revolução em termos de contágio destas doenças foi a vulgarização das ligações aéreas internacionais. Localizada no centro da rede de companhias aéreas da China, com mais de 100 voos sem escala para 22 países em todo o mundo, a província de Wuhan foi o ponto ideal para que o novo coronavírus se espalhasse por todo o mundo em apenas quatro semanas.
Aquecimento Global
O reino animal é a origem de 70% das doenças infecciosas que hoje ameaçam a nossa sáude. do HIV na década de 80 à SARS, no início deste milénio, ou aos recentes surtos de Ébola ou da gripe das aves, a maioria destas epidemias surge de incidentes em que houve transmissão entre animais e humanos. E se esses episódios podem ser atribuídos a problemas de higiene e prevenidos com inspecções regulares a mercados onde se vendem animais selvagens, um outro factor cada vez mais relevante são as perturbações aos ecossistemas, muitas delas resultantes de alterações provocadas pela poluição e o aquecimento global. Por exemplo, a epidemia de Ébola na África Ocidental terá, alegadamente, ocorrido depois de um grupo de crianças guineenses terem caçado e comido um morcego local, conhecido como lolibelo, e que se acolheu no tronco oco de uma árvore no meio da aldeia. Estes morcegos, que normalmente residem na savana, à beira das florestas, terão sido expulsos do seu habitat devido às mudanças climáticas e aio desmatamento levado a cabo pela indústria madeireira.
Febre Amarela
O fim da escravatura no Novo Mundo é um desses casos não tão raros como isso em que uma epidemia soprou as suas forças a favor do progresso. Assim, no final do século XVIII, o sucesso da Revolução Haitiana liderada por Toussaint Louverture ficou a dever-se em grande medida à acção da febre amarela. Quando Napoleão enviou a grande armada para restaurar a escravidão nas colónias, a rebelião dos escravos saiu vencedora porque aqueles homens e mulheres trouxeram de África a imunidade ao passo que os homens do exército de Napoleão estavam vulneráveis. Foi isto que levou à independência haitiana, e teve repercussões mais profundas no continente americano, pois foi também o que levou Napoleão a abandonar as suas ambições expansionistas no Novo Mundo, acabando por aceitar, em 1803, a proposta de Thomas Jefferson para comprar o Estado do Louisiana, que duplicou a dimensão dos EUA.
Tuberculose
Apesar das suas dramáticas repercussões, a tuberculose chegou a gozar de um insano prestígio antes de se tornar uma doença associada à pobreza. Quando a doença começou a espalhar-se, esta era uma doença da elite, ligada à imagem do artista, dos espíritos requintados, das grandes beldades, e acreditava-se até que tornava as pessoas mais belas, razão por que, a certa altura, mesmo a moda convencia as mulheres a exibirem traços associados à tuberculose. Esse ideal de beleza está patente nas pinturas de Toulouse-Lautrec, tem o célebre quadro da mulher de aparência anoréctica a pôr pó de arroz no rosto para adquirir a palidez da doença Os Pré-Rafaelitas foram ao ponto de casar com as modelos que para eles posavam, e que eram pacientes com tuberculose. Em parte esta projecção fantasista e perigosa deveu-se às doutrinas médicas que se impuseram no início do século XIX, que ajudaram a produzir este mito. Victor Hugo ouviu de vários amigos que o seu génio só não alcançava a grandeza desses autores oceânicos porque lhe faltava a inspiração da tuberculose. E Arthur C. Jacobson, um pensador e ensaísta norte-americano revelou grande consternação, no final desse século, numa altura em que a doença estava a retroceder, supondo o impacto negativo que isso poderia ter nas artes e até na ciência, num abalo da inventidade e inspiração que marcou o tempo da tuberculose. No século XX, reconhecendo-se que a doença era provocada por germes, passando a ser associado à imundície e à pobreza.