Como vê as notícias e polémicas em torno da Associação Mutualista Montepio?
O que se passa com a Associação Mutualista Montepio é semelhante ao que se passa com a religião e com a democracia: foi preciso adaptarem-se às novas realidades. Há uns dez ou 20 anos surgiu o movimento de que o modelo do Montepio deveria ser adaptado à evolução da sociedade e também da própria economia. Num passado recente, a caixa económica e a associação mutualista tinham os mesmos órgãos, a mesma administração, a mesma assembleia-geral, o mesmo conselho fiscal, do qual fiz parte como presidente. Por isso, quando era presidente da associação mutualista, era automaticamente presidente da caixa económica porque se tratava apenas de uma única unidade.
A separação só ocorreu em 2015…
Exatamente, mas toda essa separação iniciou-se já no meu tempo. Recordo-me muito bem das várias reuniões que tive com Silva Lopes e com Jacinto Nunes, altura em que começámos a antever a necessidade de a caixa económica ter uma gestão mais autonomizada, mais especializada e mais virada para o mundo da gestão financeira, e de a associação ter uma gestão mais social. O processo foi andando e, finalmente, conseguiu-se chegar ao modelo que temos hoje, mais universalista, com vários polos. Já no meu tempo criou-se no setor privado – não no setor social ou da economia social, onde estavam e estão a caixa económica e a associação mutualista – uma sociedade. As instituições da economia social são associações de pessoas; já o setor privado são associações de capitais. Criei na altura, com outros apoios, como é evidente, sociedades de seguros, criando duas seguradoras: uma do ramo vida, outra de ramos reais, mantendo a caixa económica no setor social. Depois disso foi-se alargando a sua atividade, ao ponto de, hoje, o Montepio já ter variadíssimas coisas: residências, residências para estudantes, gestão de fundos. Mas os dois pilares mais visíveis, além da instituição que é a mãe agregadora de tudo, são a caixa económica, que agora se chama Banco Montepio, e as seguradoras, que neste momento são três.
Mas foi uma separação que esteve longe de ser pacífica…
Todo este processo, como qualquer outro processo de transformação, é sempre doloroso. Passa-se sempre por alguns riscos, aquilo a que os gregos chamam crise. A crise não é uma situação de desgraça – a própria palavra grega significa hesitação, o momento de fazer opções. Ora bem, quando se muda de modelo… assim foi com a Igreja, assim foi com o Estado, quando passou de monarquia para a república, assim foi com o Montepio passar de um modelo para o outro. Essas alterações foram feitas através dos tempos, demoraram várias décadas e ainda não estão plenamente consolidadas – embora, neste momento, os passos principais já tenham sido dados. A caixa económica é um banco, embora mantenha uma forte ligação de economia social, as companhias de seguros mantêm a sua natureza de sociedades e todas estão integradas no grupo Montepio Geral. É claro que, à medida que isso se foi constituindo, se passou por uma fase turbulenta. Por um lado, alguns com receio de que isto pudesse ser uma desgraça e que fosse a ruína; outros, por incompreensão, pensavam que o que aconteceu ao BES iria acontecer ao Montepio. Isso não seria possível porque o BES e a família do grupo BES são duas realidades da economia privada, da economia lucrativa, que podem fazer, efetivamente, determinado tipo de negócios. Num banco de economia social, como é o caso da caixa económica, não há esse perigo, não há essa possibilidade. O que é da instituição é do banco e o que é do banco é da instituição, e são responsáveis um pelo outro. Não é como nas sociedades privadas, em que cada um é responsável por si.
Esses rumores foram subindo de tom…
A comparação artificial que se montou não tem justificação doutrinal. Há sempre elementos de crise e, ainda por cima, isso ocorreu num momento de hesitação, de transformação e de luta, porque foi preciso lutar muito para mudar os estatutos da associação mutualista, para mudar os estatutos da caixa económica, para mudar o funcionamento das assembleias e para mudar inclusivamente as administrações. Tudo isto criou uma certa instabilidade, mas visando um objetivo de futuro que é um objetivo de crescimento e de maior adequação às realidades dos tempos, dos lugares e do funcionamento da economia. Ora, todo esse caminho foi difícil de fazer em algumas situações mas, hoje, está praticamente concluído. As duas instituições estão bem clarificadas, o grupo Montepio foi muito alargado, tem muito mais capacidade e vai encontrando hoje as coisas já definidas. O banco criou entretanto um banco de empresas, tem um funcionamento normal, mas para chegarmos aqui foi preciso nomear pessoas, eleger pessoas, e, depois, aquela serve, a outra não serve. A meu ver, há um excesso de controlo da finança sobre a atividade da sociedade em geral. Também a associação mutualista conta com os novos estatutos, que já foram aprovados em assembleia-geral, houve o código das mutualidades. Hoje, o Montepio, tendo os seus órgãos compostos, tendo as pessoas eleitas e a funcionar, está em condições para funcionar em pleno. Só falta ter uma assembleia de representantes, que irá substituir o conselho geral, para facilitar a gestão deste universo de 650 mil associados. Num ato eleitoral, até pode funcionar bem porque as pessoas podem votar por correspondência, mas, para outro tipo de decisões, onde é que se vai juntar 650 mil pessoas, numa sala? Num campo de futebol? Foi preciso encontrar outra forma de funcionamento e, através do código mutualista, conseguiu-se essa solução, que é muito boa. A assembleia-geral mantém-se para determinadas finalidades, mais restritas, evidentemente, e ela mesma escolhe uma assembleia dos seus representantes que atua no dia-a-dia com a assembleia-geral para outros efeitos. Isto permite hoje funcionar de um modo diferente. No meio de toda esta transformação, o Montepio sempre foi uma coisa perfeitamente apetecível, como é evidente. É muito poderoso, tem um nome muito sólido, uma imagem extraordinária. Sempre disse: uma instituição, qualquer que ela seja, até a Igreja, para poder ter estabilidade, preservar e permanecer no tempo, precisa de ter coisas essenciais: manter a sua identidade e a sua imagem de marca. Se a sua identidade for alterada, a estabilidade não está garantida; se a imagem for deteriorada, a sua imagem também será afetada. Foi o que aconteceu nos últimos tempos em relação ao Montepio. Por interesses diversos, normalmente vindos do exterior – embora no interior tenha havido algumas pessoas que não tenham compreendido bem a natureza e a identidade do Montepio e a sua missão –, houve uma certa cooperação entre alguns elementos do interior do Montepio e outros elementos do exterior interessados em entrar para lá ou que os negócios fossem feitos de outra maneira, e tudo isto gerou algumas situações polémicas. Com a solução já estabilizada, com o funcionamento normal a recomeçar plenamente, tudo isso acabará.
Os estatutos têm agora de ser aprovados pela tutela…
Têm de ser registados.
As eleições na associação também não criam instabilidade?
Os regimes democráticos sujeitos a eleições geram sempre instabilidade, mas é natural que isso aconteça em qualquer sociedade. Acontece no Sporting, no Montepio e até para a Presidência da Republica. Não digo que seja instabilidade, mas há sempre forças que se movem, e é bom que haja. O problema desta instabilidade é que foi criada uma falta de compreensão disso mesmo.
E depois surgiu a confusão em torno dos produtos mutualistas…
Quando era presidente do Montepio criámos as duas companhias de seguros, que era para haver, na área seguradora, uma entidade autónoma para tratar produtos de seguro, mantendo na associação mutualista a comercialização de produtos mutualistas que são de natureza social, e não financeira, como são os seguros. Não distinguindo o que são produtos mutualistas e confundindo estes com produtos seguradores estabelecem-se algumas confusões muito graves, como foi o caso, por exemplo, da tutela. Os produtos financeiros são tutelados, e bem, pelos agentes reguladores. Ou seja, a caixa económica é tutelada pelo Ministério das Finanças, pelo Banco de Portugal e pela CMVM. As outras atividades do Montepio são tuteladas pela Segurança Social. Não distinguindo o que é uma mutualidade, o que é uma mútua e o que é uma companhia de seguros, confunde-se tudo e diz-se que a Segurança Social não só não tem capacidade técnica para fazer o controlo de uma entidade tão grande como acham que os produtos têm de ser avaliados pela regra dos seguros. Nem nos opusemos muito a isso, mas desde que a ASF faça o seu controlo e a sua inspeção como produtos mutualistas, e não como produtos seguradores. Por isso mesmo, no seguimento do novo código das mutualidades e no seguimento dos novos estatutos do Montepio, a tutela não deixa de estar no Ministério das Finanças para aquilo que são finanças e no Ministério da Segurança Social para aquilo que é a Segurança Social. A nós, não nos estorva muito, desde que não venham aplicar as mesmas regras dos seguros.
E tem havido essa sensibilidade por parte da ASF?
É tudo muito recente e a própria lei prevê 12 anos de transição. E durante esses anos vão ser constituídas equipas mistas e deverão ser encontradas as formas mais corretas de avaliar. Essa questão não me preocupa absolutamente nada, até pelo contrário. Garante aquele momento de estabilidade e de esperança que o Montepio já reiniciou e está quase a terminar. Uma vez eleita a assembleia de representantes, uma vez definidas mais duas ou três coisas, deixa de haver razões para preocupações. Sobretudo não há razão nenhuma para aquele alarmismo que se criou, que é altamente injusto, até diria quase calunioso e prejudicial para a sociedade portuguesa de, ao serem criados alarmismos e a meterem medo que o Montepio vai falir, ou que iria acontecer o mesmo que aconteceu ao Banif ou ao BES. Isso foi um tremendo erro que levou as pessoas, sobretudo as menos seguras, a retirarem o seu dinheiro, e em quantidades até notáveis. Alguns até deixaram de ser associados mas, mesmo aí, os números não perturbam muito, porque se em 650 mil saírem 10 mil ou 20 mil e entrarem outros tantos, o movimento associativo fica praticamente estabilizado. E aqueles que falta recuperar serão largamente aumentados, como está previsto nos nossos orçamentos e nos planos de ação. Esta perturbação é extremamente irresponsável – veja o que aconteceu no Banif, a comunicação social veio dizer que no dia seguinte iria falir e faliu mesmo. Chegou a haver um professor universitário a dizer numa instituição, que não digo qual é, que sexta-feira o Montepio vai falir. Felizmente, foi há três anos que ele disse isso. Essas pessoas deviam ser responsabilizadas, mas, para nós, isso não foi uma preocupação; a nossa preocupação foi mais a de defender e proteger os nossos associados, de modernizar e atualizar as nossas instituições que integram o grupo Montepio e dar-nos força para resistir a esse tipo de ataque. Alguns foram autênticos ataques, alguns até às próprias pessoas.
Mas sentiu-se uma grande fuga nos produtos mutualistas?
Sofreu, mas não é uma coisa radical ou que seja altamente preocupante. É preocupante, mas há a certeza de que vai ser recuperado.
Por falar em ataques, Tomás Correia foi um dos principais alvos…
Foi um dos principais alvos e os ataques foram tão fortes que se fartou e foi-se embora. E é um homem que faz falta na área da economia social. Mas face a todo o clima que se criou, no lugar dele faria o mesmo. Vai fazer outras coisas.
Como viu a saída antecipada de Tomás Correia?
Antecipada, não: nas últimas eleições, já não era para se recandidatar, acabou por se recandidatar mas sempre me disse que se ia embora a meio do mandato ou assim que tivessem sido aprovados os estatutos e o código mutualista. Ou seja, quando foi eleito para o último mandato já não tinha intenção de ir até ao fim, a não ser que fosse mesmo necessário. Como deixou de ser necessário e, ainda por cima, havia esse ruído todo, foi-se embora e fez muitíssimo bem. Faz falta, mas fez muito bem. Fui eu que o convidei para vir para a associação mutualista.
Faria o mesmo se estivesse na mesma situação?
Absolutamente. Era capaz era de não fazer da mesma maneira.
Faria como?
Explicando porquê.
Mas no caso dele havia o receio de não ser aprovada a sua idoneidade por parte da APS…
Não sei se havia ligação ou não. Até porque tinha ainda os problemas de ser arguido ou de ser suspeito disto ou daquilo – coisas que não sei e, se houver alguma coisa, deve ser julgado, primeiro, pela sua consciência, segundo, pela história, e, se for caso disso, pelos tribunais. Mas sobre isso não tenho qualquer conhecimento.
Mas nunca ouviu falar da sua ligação ao construtor José Guilherme?
Li nos jornais, não conheço o senhor, nunca falei com ele. Nem nunca falei sobre isto com Tomás Correia. Não sei nem quero saber. Isso não é da minha competência e, se for, é da competência dos tribunais.
Mas estas buscas, mesmo sendo ele ex-presidente da associação mutualista, mais uma vez, vão afetar a imagem da associação?
Já menos, mas afeta sempre, como é evidente. Um padre, quando faz asneira, afeta a Igreja toda, até o próprio Papa. Mas julgo que já não afeta com a mesma força. Ele já não está lá, não comanda, não tem nada a ver com aquilo. É claro que há quem continue a dizer que ele saiu mas que vai continuar a controlar a associação mutualista através do padre Melícias. É um disparate.
Arrepende-se de o ter convidado?
Absolutamente nada.
Acha que fez um bom trabalho?
Fez, fez um bom trabalho. Na fase final, já com esta instabilidade toda, foi mais complicado e, ainda por cima, teve de lidar com uma situação de crise financeira mundial. Tudo isto criou muita instabilidade e, por isso, acho que se tivesse saído mais cedo, era capaz de não ter sido mau para a sua imagem. Mas para o funcionamento fazia mais falta.
Juntamente com Tomás Correia, foi um dos grandes críticos do código mutualista…
Fui e ainda tenho algumas reservas em relação ao código mutualista. Uma vez, José Silva Peneda, em Guimarães, num grande encontro, dirigiu-se à assembleia e disse “está aqui o padre Milícias, que é o pai do código mutualista”, quando ele é que era. De facto tive uma contribuição muito grande, não só na ideia como, depois, em toda a preparação. Mas agora, nesta alteração – que é bom fazer-se –, não tive participação tão direta como tive na última vez, mas há ali coisas que julgo que é bom melhorar numa próxima revisão.
Que matérias seriam essas?
De manter as associações mutualistas, independentemente da sua dimensão, no setor de proteção social e como instituições mutualistas. É o caso do Montepio e também da Monaf.
Aliás, são as únicas associações que são abrangidas por causa do número de associados.
Sim, por causa do capital que movimentam. Depois há outra coisa que as pessoas julgam e vêm dizer “ai, coitadinhos dos associados do Montepio, perdem o seu capital”. Não perdem o seu capital nada porque os associados não têm capital. Não há propriedade privada. Uma pessoa paga quotas numa associação mutualista, mas não é dono daquele capital. Se morrer, não fica para os herdeiros porque aquilo não é dele. Trata-se de uma associação de pessoas, não de uma associação de capitais. O que é certo é que o Montepio é muito mais forte do que as pessoas pensam. Por exemplo, quando a companhia de seguros Lusitânia teve momentos de maiores dificuldades, fruto da evolução da economia e da sua natureza, o Montepio aplicou montantes à espera de que eles possam ser cobrados. Mas quando fez as mesmas aplicações internas dentro da caixa económica, a natureza foi completamente diferente. Cheguei a ouvir pseudomutualistas ou autoproclamados mutualistas dizerem “isto é a associação mutualista. Em vez de porem aqui o dinheiro a 5% no banco, devia pôr a 6% no outro banco”. Isso é completamente o contrário do que é uma realidade mutualista, do que é uma associação mutualista. Isso é a fossanguice da ganância do lucro. E uma associação mutualista não é uma associação lucrativa. É uma associação de solidariedade em que todos se responsabilizam por todos. One man, one vote [um homem, um voto]. Não é tanto de capital, ou tanto de quotas.
Se calhar, a campanha “seja o dono do seu banco” criou essa ideia?
Pode ter sido mas, se isso aconteceu, foi um mal-entendido. Não sou pai dessa campanha e, na altura, até disse que não gostava muito porque podia provocar esse tipo de ideias. Não há donos do banco. Se há dono é a própria instituição no seu todo. Ninguém é dono da sua instituição, ninguém é dono. Um sócio do Montepio é um associado. Não é sócio. Sócios são os das sociedades. Associados são os das associações. Um associado do Montepio não é dono de nada.
Também confusa foi a ideia da entrada da Santa Casa no banco, não?
O Montepio, sendo ele o maior banco da área da economia social, pretendia criar condições para que em Portugal houvesse um banco de economia social participado por várias entidades da economia social: cooperativas, mutualidades, misericórdias. A Santa Casa da Misericórdia, pelos seus estatutos – aliás, elaborados por mim com outros apoios e, na altura, promulgados por Mário Soares –, não é um instituto público. É um instituto de economia social, é uma fundação da sociedade civil, mas os nossos políticos acham que aquilo é Estado só porque a Santa Casa faz a gestão dos interesses do Estado, designadamente os jogos sociais. Acabou por haver no Parlamento um alarmismo ao dizerem que a Santa Casa da Misericórdia iria pôr o dinheiro num banco na falência [Montepio], coitadinhos dos pobrezinhos. O próprio provedor anterior, Santana Lopes, na altura, em reuniões com o Banco de Portugal, estava disponível para ajudar a fazer esse banco de economia social. Não quiseram. Se me perguntarem se a Santa Casa deve entrar? Respondo que, enquanto não ficar claro que não é uma instituição do Estado, mas sim uma instituição da economia social, não deve entrar. Porque neste banco de economia social devem estar instituições de economia social, geridas pelo direito social, e não pelo direito bancário ou pelo direito público ou pelo direito privado. Ao fazer-se esta confusão de setores e ao fazerem-se exigências ao setor privado de condições que são do setor social ou ao contrário, é um erro. Tenho confiança de que esta turbulência já não faz sentido nenhum, acredito que tudo vai acalmar, e o Montepio vai recuperando a sua imagem. Porque a identidade, nunca a perdeu. Mas mesmo a imagem que foi afetada, felizmente, está em condições de recuperar e de voltar a ser aquilo que sempre foi, que é a principal instituição de segurança das populações, designadamente das populações menos capitalistas, que viam naquela casa a sua casa de segurança. E é e continuará a ser, sem quaisquer dúvidas e sem equívocos.
Tomás Correia chegou a dizer que se a associação não fosse tão forte tinha caído há muito tempo…
Sim, perante os ataques que fizeram, é verdade. Felizmente, o Montepio tem essa natureza, essa tradição, essa cultura institucional, que o ajudaram a continuar a sua missão.
Sente que houve alguma dificuldade em compreender este conceito de economia social?
Houve e ainda continua a haver. Há altos responsáveis políticos que ainda não compreenderam isto. A reação que tiveram, mesmo dentro do Parlamento, em relação a esta hipótese de a Misericórdia participar foi completamente incompreensível.
Mas o acordo chegou a ser assinado…
Se não foi assinado foi, pelo menos, convencionado. Havia um acordo que julgo que teria sentido se a Misericórdia fosse aquilo que efetivamente é. Se não for aquilo que é ou que devia ser, então é melhor estar quieta e calada. Mas, mesmo assim, entrou com uma pequena parcela, mas é absolutamente insignificante. Já a Misericórdia do Porto entrou bem. É um movimento que agora, serenada a onda e sem pressas, julgo que será uma boa solução futura para Portugal.
E as relações com os CEO do banco Montepio? Dá a sensação de que não têm sido muito tranquilas. Primeiro com Félix Morgado, agora com Carlos Tavares…
Acho compreensível que haja, na necessidade de definição de competências, alguma hesitação. Mas não penso que isso tenha futuro. É um assunto do passado. E o passado passou. O futuro é diferente. E o presente já é diferente.
Está na assembleia-geral do Montepio desde 2008. Mas entrou no Montepio muito antes…
Já nem me lembro. Foi há quase 40 anos. Há 38 anos. E já fui tudo lá. Fui presidente da administração, administrador, presidente do conselho fiscal, presidente da assembleia-geral, presidente do conselho geral e sou outra vez presidente da assembleia-geral. Tenho estado sempre ao serviço. Mas tenho estado sempre como voluntário. Só no momento em que fui presidente da administração é que recebi um salário. Agora há uma compensação de presença. E quando há.
Como se deu a sua entrada no Montepio? Sendo padre, não houve algum choque em entrar no mundo financeiro?
Não. Na altura, estava na Faculdade de Direito e alguns colegas começaram a dizer-me que tinha capacidade para resolver determinado tipo de problemas.
E desde aí tem estado sempre no Montepio?
Não foi a principal atividade da minha vida. Enquanto estive no Montepio dei aulas, sempre fiz várias coisas ao mesmo tempo. Nem vale a pena estar a mencionar tudo.
Como teve tempo para isso tudo?
Com dificuldade, mas tenho tido. Tenho porque gosto do que faço. Só aceito fazer coisas de que gosto. Como trabalho por gosto, e quem corre por gosto não cansa, consigo arranjar sempre o tempo de que preciso. Se tivesse mais tempo, fazia mais coisas em alguns dos sítios onde estou. Ainda ontem estava a pensar: “Sou capelão na Arrábida, vou lá duas vezes por ano, devia ir lá mais vezes”. Mas não tenho hipótese. E quem diz isso diz outras coisas. Sou académico na Academia Portuguesa de História e da Cultura Portuguesa. Não sou obrigado a ir às reuniões, mas gostava de ir a mais. Não vou porque não consigo. Ultimamente estou a dedicar-me a preparar publicações, livros. Falta-me o ar, falta-me o tempo.
Também ajudou a criar a Deco antes do 25 de Abril. Como surgiu essa ideia?
Surgiu dentro de um grupo que tínhamos, chamado Grupo da Luz, e que funcionava aqui nesta casa. Éramos todos jovens. Estava o Guterres, o Marcelo Rebelo de Sousa, gente do melhor que há, um grupo de cérebros. Então começou-se a dizer que a sociedade portuguesa não tinha ensino pré-primário, tínhamos de fazer qualquer coisa. E começámos a trabalhar nisso. A sociedade portuguesa estava um desastre, com a imigração, e começou a fazer-se qualquer coisa sobre isso. E a defesa do consumidor? Uma senhora que estava em Bruxelas disse que na Bélgica havia a defesa do consumidor. Aqui não havia nada e decidimos meter-nos nisso. Foram dois de nós à Bélgica falar com os de lá, depois vieram cá eles e criámos a associação, que ainda hoje tem António Guterres como sócio número 1.
Mas foi antes do 25 de Abril?
O começo foi, mas a formalização não me recordo se foi antes ou depois. Mas já mexíamos muito antes do 25 de Abril.
Como viveu o 25 de Abril?
Ui, uma festa. Era presidente dos bombeiros em Lisboa e assim que soube que estava a acontecer, às sete da manhã, enfiei-me logo lá para baixo e acompanhei a vinda dos militares para o Carmo. Até há uma situação que nunca mais me esqueço. Vários militares vinham aos bombeiros para irem à casa de banho. Como presidente, deixava-os entrar, mas dizia-lhes que tinham de deixar a arma na rua. Todos entregaram a arma antes de entrar. Portanto, mesmo no momento da revolução, os militares respeitaram a neutralidade do corpo de bombeiros, o que foi muito bonito.
Por ter participado em tantos movimentos, sentiu-se perseguido por ter ideias contrárias?
Sim, sim. Tive de explicar à PIDE que não era bem assim. Uma vez, no meu convento, foram lá quatro tipos – hoje, até sou amigo de um deles – fazer uma revista ao quarto às seis e tal da manhã. Começaram por me apalpar para ver se tinha armas. Depois revistaram tudo e levaram-me uns papéis. Deixaram-me uma nota de que tinham feito essa visita. Tenho-a lá assinada.
Nem isso o desincentivou de continuar esses movimentos?
Não, continuámos sempre. Não era um revolucionário. Claro que fui quando foi a manifestação dos estudantes contra a Guerra no Vietname, na Avenida Duque de Loulé. Estava lá também e tive de fugir como os outros. No dia seguinte veio a este convento (Seminário da Luz) um homem da PIDE, nem o vi, para falar com o superior do convento, o padre Albano. O superior não me disse que não podia andar nisto, mas pediu-me para ter cuidado.
Arrepende-se de alguma coisa?
Não estou nada arrependido, até pelo contrário.
Tem dois cursos de Direito….
O primeiro, tirei antes do 25 de Abril. Comecei-o em 1962, em Roma, em Direito Canónico. Depois, o outro, comecei cá, para aí em 1966, 1967. Estava praticamente terminado quando se deu o 25 de Abril. Depois ainda tive de fazer mais umas cadeiras.
Porquê dois cursos de Direito? Nunca pensou tirar outra licenciatura noutra área?
Inicialmente, até gostava de ir para História. Mas, depois, o superior disse que precisavam de um canonista, fui e gostei. Depois quis alargar os conhecimentos, o que tem sido muito útil para a minha vida, embora não esteja a exercer como advogado. Fui juiz do Tribunal Eclesiástico durante 30 anos e às vezes dou pareceres ou instruo processos. Dei aulas na Católica e aulas de Direito Canónico em várias instituições, mas não tenho feito do direito a minha vida..
Como se deu a sua entrada nos franciscanos?
Tinha 11 anos quando entrei. Era de uma aldeia ao pé de Torres Vedras e tinha um tio que era superior dos franciscanos, o padre Fernando Félix Lopes. Eu, garoto na escola, vindo de uma família cristã, superpraticante lá na aldeia, também quis ir. Depois fiz todo o caminho. Também tive momentos de crise e de tensão, incluindo nesta casa. Já quase com 24 anos, quando me ordenei tive uma situação que quase me fez ir embora. Fui falar com o prior de Carnide – que entretanto foi bispo de Santarém – e disse que queria sair. Mas ele explicou-me que também era útil aqui e fiquei.
Essa decisão chocou a sua família?
Os meus pais não ficaram nada chocados. Até ficaram aliviados. Era menos um lá em casa.
Tem noção de que é uma das pessoas que são vistas como tendo um grande poder junto do movimento político, do movimento económico.
É mais um mito. Acho que não tenho mas, se tiver, não exerço. Agora, tenho é muitos e grandes amigos em todas essas áreas e em todos os setores. É uma alegria, dou-me com todos. Não tenho partido nem interesses. Só tenho interesse em que as pessoas sejam felizes e ajudem a construir uma paz e uma fraternidade neste mundo todo.
Outra das críticas que são feitas diz respeito às suas pensões…
Isso é outro mito. Nem gosto de falar desse tema porque acho-o parvo. Eu sou frade. Até fui, durante nove anos, que é o tempo máximo que se pode ser, o superior maior dos franciscanos em Portugal. Fui, durante dois mandatos, presidente de todos os franciscanos da Europa. Sou frade franciscano e uma das regras dos franciscanos diz que tudo o que algum irmão receba fruto do seu trabalho, de generosidade, ou outro, não é dele, é da fraternidade. É da comunidade, é dos irmãos. Eu não tenho nada. Naquela declaração de rendimentos que fiz – mal feita, aliás, por isso é que levantou toda esta dúvida –, claramente diz que não tenho nada. Não tenho automóvel, não tenho bicicleta, não tenho nada nem quero ter. Se quisesse ter, não estava aqui, estava a fazer render as minhas capacidades noutras áreas. Mas fruto do trabalho, obviamente descontei a mesma coisa que as outras pessoas. Estava no Montepio, por exemplo, e descontava. Então, só por ser padre ou ser franciscano – os outros têm direito e muito bem a levar o seu dinheiro para casa e para a família –, não tenho direito a trazer para tratar dos pobres, para tratar dos frades velhos e para tratar dos estudantes? Ninguém anda a roubar pensões. A minha pensão, normalmente, vem para uma conta que é a única conta que tenho e que está em meu nome e no nome de outro padre. Aquele dinheiro não é meu, é dos frades. Mas temos autorização os dois para o mobilizar. E porquê? Eu preciso de me mexer, tenho de pôr gasóleo no carro, que não é meu, mas tenho de abastecer, tenho de ir ao médico. Mas lá dentro nunca estão mais do que 1700 euros. Agora, 7 mil euros? Recebo três tipos de pensões: uma pensão da Segurança Social, que é de 1640 euros, depois tenho uma pensão do Montepio, que eu descontei como associado para ter uma pensão, que deve ser 300 ou 400 euros, e depois tenho a chamada pensão estatutária do Montepio, que são aquelas pessoas que estiveram mais de cinco anos em exercício e têm direito, quando se reformarem, a ter o correspondente a uma reforma – mais ou menos 25% do rendimento da pessoa. Tudo junto deve dar, no máximo dos máximos, 3900, 4000 euros. E dessa conta, automaticamente, sem passar pela minha mão, vão 3 mil euros para os frades. Ficam para aí 900 para ir gerindo a minha vida, para ajudar pobres.
Controla os gastos que são feitos com esse dinheiro?
Isso não. Não tenho nada a ver com isso. O dinheiro não é meu à entrada e não é meu à saída.
Como vê o afastamento das pessoas em relação à Igreja?
A Igreja tem dificuldade em adaptar-se aos tempos e aos lugares. Aqui está, mais uma vez, a situação de crise. Julgo que não diminui no mundo o sentimento religioso. É mais indefinido, menos incluído em práticas comunitárias. As pessoas talvez sejam mais religiosas mas, na religião, cada um caminha à sua maneira.
Os escândalos na Igreja Católica prejudicam?
Sem dúvida. A pedofilia, o Banco do Vaticano, etc. O mal da Igreja não é o cristianismo, são os cristãos, já dizia alguém. A Igreja é uma comunidade de homens e mulheres pecadores que têm um ideal fantástico, têm uma Igreja que é santa, mas lá vão fazendo os seus pecadinhos. Este Papa tem feito muitas coisas e é por isso que tem tantos inimigos.