O meu 25 de Novembro


Viveu o 25 de Abril com entusiasmo, foi à manifestação do 1.º de Maio com o pai e agradece ao 25 de Novembro, que começou a institucionalização da democracia.


Como a maioria dos jovens da minha geração, recebi entusiasticamente o 25 de Abril. Nessa altura já era casado (casei em março de 1973), já tinha acabado o curso e trabalhava como arquiteto num ateliê privado. Acompanhei com alvoroço os acontecimentos desse dia e dos seguintes. Nunca gostei muito de manifestações, mas participei em algumas – a começar pelo 1.o de Maio de 74, que juntou na tribuna do então estádio da FNAT Mário Soares e Álvaro Cunhal. Desfilei de braço dado com o meu pai, que estava no exílio na Holanda e só depois da revolução regressou a Portugal. Embora ele já tivesse deixado o PCP, percebi que se emocionou ao ver Álvaro Cunhal ali, na tribuna de um estádio no centro de Lisboa. Com a voz trémula, disse-me, apontando na sua direção: “Aquele é o Cunhal”. Pertencer ao PCP deixou-lhe marcas profundas, embora ele se tenha libertado totalmente das amarras ideológicas.

Mais tarde, numa manifestação junto ao Palácio de Belém, sucedeu um episódio curioso. Uma velhota com ar muito humilde, vestida de preto, que devia ter batido palmas a Salazar e era certamente tudo menos uma militante política, disse-me, apontando para a minha carteira, que estava meio à vista: “Cuidado que andam por aí fascistas!” Os fascistas para ela eram os maus, os ladrões que roubavam carteiras.

Mas nos meses seguintes assistimos a uma tomada das alavancas do poder por parte do PCP. Os comunistas poderiam estar em minoria em toda a parte – mas como eram muito organizados, acabavam por dominar. Enquanto os outros atuavam isoladamente, diziam anarquicamente o que pensavam, os comunistas tinham uma estratégia e um discurso, pelo que impunham a sua vontade. Começaram a dominar as comissões de moradores, as comissões de trabalhadores, as ocupações de casas e herdades, as administrações de empresas, os jornais do Estado e a RTP, o MFA, vários ministérios, como o do Trabalho, o da Educação e outros.

E aí, as pessoas como eu, que embora apoiantes da revolução não eram comunistas, começaram a preocupar-se. Todos os dias, os trabalhadores ocupavam mais uma empresa, mais uma herdade, havia prisões de empresários, as ruas eram invadidas por militares barbudos e mal fardados, com armas nas mãos, que davam vivas ao socialismo. Uma onda de loucura varria o país e parecia imparável.

Spínola não conseguiu pôr ordem nas coisas e demitiu-se no 28 de Setembro. No 11 de Março de 1975, como resposta a um golpe spinolista que nunca ficou claro, a revolução radicalizou-se: fizeram-se nacionalizações em massa. Vasco Gonçalves começou a fazer discursos de punho cerrado e os operários gritavam: “Força, força, companheiro Vasco! Nós seremos a muralha de aço!”

Aí, já era claro que uma vanguarda comunista, apoiada por muitos compagnons de route sem preparação ideológica mas inebriados pela revolução, conduzia os acontecimentos. A situação tornava-se assustadora. Mário Soares tentava remar contra a maré, mas a corrente era muito forte. Álvaro Cunhal mexia os cordelinhos na sombra, levando a revolução para a frente com mão firme mas cautelosa. Tentava aproveitar a confusão provocada pela extrema-esquerda mas não queria confundir-se com ela – ciente de que “o esquerdismo é a doença infantil do comunismo”…

É neste quadro de grande confusão e loucura coletiva que se dá o 25 de Novembro. Neste momento já tinha nascido o meu primeiro filho, o Francisco, que completava então dois meses. Nós morávamos no Rio Seco, na Travessa do Giestal, relativamente perto de uma zona de quartéis onde ficava Cavalaria 7 (uma unidade fiel ao Governo no 25 de Abril mas que se rendera na Ribeira das Naus sem disparar um tiro), Lanceiros 2, uma unidade de elite, e a Polícia Militar. Tudo isto ficava ali, paredes-meias com a nossa casa. E um pouco abaixo ficava o Palácio de Belém.

Assim, quando rebentam as primeiras notícias do golpe, ficámos de sobreaviso. A Polícia Militar tinha-se radicalizado sob a liderança do famoso major Tomé, um menino-família que se tornara um perigoso revolucionário. A certa altura começámos a ouvir tiros e rajadas de metralhadora. Havia lutas nos quartéis. A minha mulher assustou-se a sério – não tanto por nós, mas pelo bebé. E se estalasse uma guerra civil? Por isso foi um alívio quando, ao princípio da noite, Costa Gomes, o Presidente da República, anunciou que um golpe de paraquedistas tinha sido dominado. E pouco depois aparecia Ramalho Eanes, de camuflado e óculos escuros, a falar no seu modo brusco, na qualidade de comandante do contragolpe, enaltecendo “os homens do coronel Neves”. Referia-se aos comandos, que tinham desempenhado nesse dia um importante papel.

Depois soubemos que a troca de tiros que tínhamos ouvido de nossa casa, e de que havia resultado a morte de dois soldados, ocorrera durante a ocupação do quartel da Polícia Militar amotinada pelos comandos encabeçados por Jaime Neves.

A revolução tinha acabado. Ia começar a difícil institucionalização da democracia.

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O meu 25 de Novembro


Viveu o 25 de Abril com entusiasmo, foi à manifestação do 1.º de Maio com o pai e agradece ao 25 de Novembro, que começou a institucionalização da democracia.


Como a maioria dos jovens da minha geração, recebi entusiasticamente o 25 de Abril. Nessa altura já era casado (casei em março de 1973), já tinha acabado o curso e trabalhava como arquiteto num ateliê privado. Acompanhei com alvoroço os acontecimentos desse dia e dos seguintes. Nunca gostei muito de manifestações, mas participei em algumas – a começar pelo 1.o de Maio de 74, que juntou na tribuna do então estádio da FNAT Mário Soares e Álvaro Cunhal. Desfilei de braço dado com o meu pai, que estava no exílio na Holanda e só depois da revolução regressou a Portugal. Embora ele já tivesse deixado o PCP, percebi que se emocionou ao ver Álvaro Cunhal ali, na tribuna de um estádio no centro de Lisboa. Com a voz trémula, disse-me, apontando na sua direção: “Aquele é o Cunhal”. Pertencer ao PCP deixou-lhe marcas profundas, embora ele se tenha libertado totalmente das amarras ideológicas.

Mais tarde, numa manifestação junto ao Palácio de Belém, sucedeu um episódio curioso. Uma velhota com ar muito humilde, vestida de preto, que devia ter batido palmas a Salazar e era certamente tudo menos uma militante política, disse-me, apontando para a minha carteira, que estava meio à vista: “Cuidado que andam por aí fascistas!” Os fascistas para ela eram os maus, os ladrões que roubavam carteiras.

Mas nos meses seguintes assistimos a uma tomada das alavancas do poder por parte do PCP. Os comunistas poderiam estar em minoria em toda a parte – mas como eram muito organizados, acabavam por dominar. Enquanto os outros atuavam isoladamente, diziam anarquicamente o que pensavam, os comunistas tinham uma estratégia e um discurso, pelo que impunham a sua vontade. Começaram a dominar as comissões de moradores, as comissões de trabalhadores, as ocupações de casas e herdades, as administrações de empresas, os jornais do Estado e a RTP, o MFA, vários ministérios, como o do Trabalho, o da Educação e outros.

E aí, as pessoas como eu, que embora apoiantes da revolução não eram comunistas, começaram a preocupar-se. Todos os dias, os trabalhadores ocupavam mais uma empresa, mais uma herdade, havia prisões de empresários, as ruas eram invadidas por militares barbudos e mal fardados, com armas nas mãos, que davam vivas ao socialismo. Uma onda de loucura varria o país e parecia imparável.

Spínola não conseguiu pôr ordem nas coisas e demitiu-se no 28 de Setembro. No 11 de Março de 1975, como resposta a um golpe spinolista que nunca ficou claro, a revolução radicalizou-se: fizeram-se nacionalizações em massa. Vasco Gonçalves começou a fazer discursos de punho cerrado e os operários gritavam: “Força, força, companheiro Vasco! Nós seremos a muralha de aço!”

Aí, já era claro que uma vanguarda comunista, apoiada por muitos compagnons de route sem preparação ideológica mas inebriados pela revolução, conduzia os acontecimentos. A situação tornava-se assustadora. Mário Soares tentava remar contra a maré, mas a corrente era muito forte. Álvaro Cunhal mexia os cordelinhos na sombra, levando a revolução para a frente com mão firme mas cautelosa. Tentava aproveitar a confusão provocada pela extrema-esquerda mas não queria confundir-se com ela – ciente de que “o esquerdismo é a doença infantil do comunismo”…

É neste quadro de grande confusão e loucura coletiva que se dá o 25 de Novembro. Neste momento já tinha nascido o meu primeiro filho, o Francisco, que completava então dois meses. Nós morávamos no Rio Seco, na Travessa do Giestal, relativamente perto de uma zona de quartéis onde ficava Cavalaria 7 (uma unidade fiel ao Governo no 25 de Abril mas que se rendera na Ribeira das Naus sem disparar um tiro), Lanceiros 2, uma unidade de elite, e a Polícia Militar. Tudo isto ficava ali, paredes-meias com a nossa casa. E um pouco abaixo ficava o Palácio de Belém.

Assim, quando rebentam as primeiras notícias do golpe, ficámos de sobreaviso. A Polícia Militar tinha-se radicalizado sob a liderança do famoso major Tomé, um menino-família que se tornara um perigoso revolucionário. A certa altura começámos a ouvir tiros e rajadas de metralhadora. Havia lutas nos quartéis. A minha mulher assustou-se a sério – não tanto por nós, mas pelo bebé. E se estalasse uma guerra civil? Por isso foi um alívio quando, ao princípio da noite, Costa Gomes, o Presidente da República, anunciou que um golpe de paraquedistas tinha sido dominado. E pouco depois aparecia Ramalho Eanes, de camuflado e óculos escuros, a falar no seu modo brusco, na qualidade de comandante do contragolpe, enaltecendo “os homens do coronel Neves”. Referia-se aos comandos, que tinham desempenhado nesse dia um importante papel.

Depois soubemos que a troca de tiros que tínhamos ouvido de nossa casa, e de que havia resultado a morte de dois soldados, ocorrera durante a ocupação do quartel da Polícia Militar amotinada pelos comandos encabeçados por Jaime Neves.

A revolução tinha acabado. Ia começar a difícil institucionalização da democracia.

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