Síndrome de Down. Os campeões voltaram a poder sonhar

Síndrome de Down. Os campeões voltaram a poder sonhar


A seleção portuguesa de futsal para atletas com trissomia 21, campeã europeia em título, tinha a participação no Mundial em risco por falta de verbas. Eliseu Correia, empresário algarvio, tomou conhecimento da história e ofereceu os 35 mil euros necessários. “O que levamos desta vida é o bem que fazemos aos outros”, diz ao i.


Quinze de novembro de 2018. A data não sai da cabeça de nenhum dos elementos que estiveram envolvidos no incrível feito: na primeira edição do Campeonato de Europa de futsal para atletas com síndrome de Down, a seleção portuguesa defrontou a anfitriã Itália (campeã do mundo) na final e venceu por 4-0, trazendo o tão desejado troféu para casa.

Menos de cinco meses depois, a seleção campeã europeia voltou a ser lembrada, mas por motivos distintos. A participação no Campeonato do Mundo, que se realizará em Ribeirão Preto, Brasil, em maio, estava em risco devido à falta de verbas para garantir a presença na prova, com a ANDDI (Associação Nacional de Desporto para Deficiência Intelectual), entidade que tutela a secção, a promover campanhas para angariação de fundos.

Eram, mais concretamente, 35 mil euros que separavam a equipa nacional da prova onde até ostentaria o estatuto de vice-campeã mundial – terminou em segundo lugar no Mundial de 2017, na primeira edição da prova, que se realizou em Viseu. Até que aconteceu o mais inesperado: uma única entidade doou os 35 mil euros necessários, permitindo a concretização do sonho dos dez atletas e respetiva equipa técnica. A EC Travel, uma agência de viagens DMC (vende pacotes de serviços a operadores turísticos que depois os vendem a retalhistas e consumidor final) com base em Olhão, assumiu a totalidade dos custos de participação, no que foi o maior donativo alguma vez recebido pela ANDDI.

Questionado pelo i sobre os motivos por trás deste gesto, Eliseu Correia, diretor da empresa algarvia, é bastante claro. “Toda a gente tem direito ao sonho e todos somos filhos de Deus. Fiquei completamente siderado quando li a história – nem sei se fiquei mais chocado ou triste – e nem quis saber quanto era: só de imaginar que os miúdos não podiam ir ao Campeonato do Mundo porque o país deles os tinha abandonado e não lhes dava hipótese de realizar o seu sonho por causa de dinheiro… Foram cinco minutos: vi aquilo, virei-me para a minha esposa e disse ‘isto não pode ser, não podemos deixar que isto aconteça’”, explica o empresário.

A EC Travel, refira-se, já tem historial de apoios a nível social – o próprio Eliseu Correia já foi distinguido com a Medalha de Mérito Grau Prata pela Junta de Freguesia de Montenegro e Medalha de Honra pela Junta de Freguesia de Olhão, entre várias outras condecorações. “São 16 ou 17 instituições que apoiamos todos os anos: terceira idade, deficiência, apoio aos sem-abrigo, aos animais… E outras situações que vão surgindo e que tentamos dar a mão, como por exemplo a MamaMaratona, em conjunto com a Associação Oncológica do Algarve, da qual somos patrocinadores. Só não ajudamos se não pudermos mesmo”, frisa, explicando a sua filosofia. “Para mim, é um enriquecimento muito grande poder ajudar outras pessoas. O que levamos desta vida é o bem que fazemos aos outros. Nessa vertente, considero-me uma pessoa muito rica”, realça o empresário de 51 anos, revelando que a agência, galardoada em 2016 pela revista Exame como a melhor PME (Pequena e Média Empresa) nacional na área de serviços e vencedora em várias ocasiões do prémio PME Líder e Excelência, tem registado faturações anuais na ordem dos 30 milhões de euros.

Lenine abriu caminho Eliseu Correia é também o patrocinador de Lenine Cunha, o atleta português de 36 anos que recentemente ultrapassou a barreira das 200 medalhas conquistadas na carreira (203, 69 das quais de ouro) e que é também o padrinho da seleção portuguesa de futsal de atletas com síndrome de Down. Foi precisamente através do pedido de ajuda publicado por Lenine Cunha na sua página de Facebook que o diretor da EC Travel tomou conhecimento da situação.

“Liguei para o senhor Costa Pereira, responsável da ANDDI, ele explicou-me as necessidades e, apesar de eu sentir que era um esforço tremendo, fiz o maior donativo que nós já fizemos – e o maior na história da ANDDI. E se amanhã tivesse de fazer outra vez, fazia. A alegria que tenho é ver os miúdos a embarcar para o Brasil, e se formos campeões do mundo então… Como segundo padrinho, era uma alegria muito grande. Mas só ver o sorriso dos miúdos a arrancar para o Brasil já me deixa feliz”, revela Eliseu Correia. A ação, garante, nada teve a ver com uma questão de marketing ou procura de destaque para a sua empresa: “Nós não vendemos ao público, trabalhamos só para empresas. Aliás, isto até causou aqui… as pessoas viram que éramos uma agência de viagens e começaram a mandar-nos emails e mensagens a dizer que queriam marcar as viagens connosco, mas nós não temos nada para vender ao público. Fizemos isto por altruísmo, faz parte da nossa cultura, não tem nenhuma vertente de marketing”.

Do outro lado, a oferta de Eliseu foi recebida com espanto… e muita felicidade, obviamente. “Nós agradecemos de igual forma a quem ajuda seja como for, a quem dá um euro ou 35 mil, como foi o caso aqui. Mas claro que um donativo desta dimensão, que nunca antes a ANDDI tinha recebido, deixou-nos perplexos e de coração cheio”, assume ao i Judite Freitas, Diretora de Comunicação e Marketing da ANDDI. “O senhor Eliseu ofereceu literalmente os 35 mil euros. Isto não acontece todos os dias, nem à ANDDI nem a ninguém! Já conhecia o senhor Eliseu, já sei o bom coração que ele tem e estou inclusivamente a tentar que ele seja homenageado”, acrescenta.

As necessidades da associação, todavia, não se esgotam no financiamento para a participação no Mundial. A deslocação da seleção de futsal ao Brasil “é só um dos casos” em que os apoios financeiros são precisos, lembra Judite Freitas, dando o exemplo dos Global Games, uma espécie de Jogos Olímpicos para a deficiência intelectual, que se realizará em Brisbane, Austrália, em outubro: “São dez modalidades diferentes, sendo o futsal uma delas. E vão ser precisos bem mais que 35 mil euros – provavelmente um valor a rondar os 200 mil. Posso-lhe já dizer que não vamos conseguir levá-las todas, não haverá com certeza verba suficiente e já nos estamos a mentalizar disso”.

Do Estado, a fatia de apoios que chega é sempre muito pequena. “Não chega nunca para participar em qualquer competição deste tipo. A ANDDI envolve três mil atletas, 300 atividades ao ano, 16 modalidades, tanto na deficiência intelectual como no síndrome de Down. Não é brincadeira nenhuma, e o que o Estado nos dá não cobre, nem de longe nem de perto, o que é necessário”, ressalva. Um cenário que, de resto, não se afigura perto de mudar: “De ano para ano, o que acontece é uma lamentação de terem cada vez menos fundos. Não temos essa esperança a curto prazo”.

Para se manter em funcionamento, a associação precisa constantemente de fazer campanhas a pedir apoios, “seja a privados ou aos familiares dos atletas”. “Mas ficamos sempre aquém, acabamos sempre por ter de reduzir as equipas ou os técnicos, o que se pode até tornar perigoso: se acontecer alguma coisa àquela pessoa, quem toma conta dos miúdos? Corremos até alguns riscos. Em 2010, num torneio em África, já tínhamos desistido de ir participar, a equipa já estava desmobilizada, quando um empresário se disponibilizou a pagar as viagens. Acabámos por ir com metade daquilo que era previsto, metade dos recursos humanos”, confessa Judite Freitas, frisando que Eliseu Correia “salvou a situação” referente ao Mundial, mas que a ANDDI “precisa de ajudas o ano inteiro, estas necessidades são constantes”.

Sem mediatismo A ausência de disponibilidade por parte de entidades públicas para ajudar nesta situação particular foi das questões que mais revoltou Eliseu Correia. “Estes atletas é que deviam ter tanto ou mais conforto e apoio que os ditos ‘normais’. Quando olhamos à nossa volta e vemos o desperdício com a seleção de futebol, as mordomias que têm, pessoas altamente pagas e que têm todas as facilidades do mundo, e depois percebemos que não existe uma entidade pública que arranje esta verba para ajudar campeões da Europa – que é o caso desta equipa -, leva-nos a questionar o que está de errado. Devemos jogar a mão a quem mais precisa, e não o contrário. Infelizmente, neste país quem mais precisa é quem menos apoio tem”, realça o empresário.

“Mesmo se os miúdos perdessem os jogos todos, a gente ajudava. Mas não! Eles vão lá para fora, pegam na nossa bandeira e vão honrar o nome do país lá fora! Eu, como ser humano, isto deixou-me completamente transtornado e triste. Como é possível? Quais são as prioridades do nosso país, das nossas câmaras, das nossas entidades públicas? A EC Travel faz o seu papel social, mas faz também o de outras entidades, que vemos a esbanjar dinheiro em coisas que nem sabemos bem quais são, e depois quando é preciso dar a mão a alguém, como neste caso, não há!”, dispara.

O (pouco) destaque mediático dado à ação de Eliseu Correia – mas também à própria participação da seleção portuguesa no Mundial – merece também críticas do empresário. “Acho estranho e lamentável que coisas que não têm qualquer impacto ou que são negativas sejam tão badaladas por parte das entidades públicas, ao contrário das positivas. Por exemplo: não houve uma única televisão que tivesse interesse em falar connosco, mas se eu tivesse cometido algum crime hediondo estaria na abertura de todos os telejornais, até tinha de pagar para me tirarem as câmaras de cima! Diz muito sobre o que é a nossa sociedade hoje em dia”, refere, lamentando ainda a total ausência de divulgação ou contacto por parte de qualquer entidade pública, seja a nível local ou nacional.

O Mundial de futsal para atletas com síndrome de Down irá decorrer de 28 de maio a 5 de junho em Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, no Brasil. Portugal terá dez atletas convocados, dois dos quais os portistas César Morais e Daniel Maia, segundo foi possível saber através de comunicado emitido pelos dragões. César Morais foi mesmo o melhor marcador do último Europeu, com seis golos. “Depois desta situação toda, estou com um feeling… acho que os miúdos podem ganhar o Mundial. Era a melhor coisa que me podia acontecer este ano”, sentencia um esperançado Eliseu Correia.