Há coisas de que podemos falar, certos eventos traumáticos perpetuam-se num estado de dolorosa indefinição até que os saibamos cauterizar pela escolha acertada das palavras. Seja aludindo, seja descrevendo com algum detalhe, de forma sóbria ou delirante – a capacidade de narrar um episódio devolve-nos algum controlo. Todo o narrador terá obtido aquele nível de compulsão e deleite que chega a raiar a sensação de se estar sobre o efeito de um poderoso narcótico. Debruçar-se sobre a memória de um facto vergonhoso e virá-lo do avesso ou, simplesmente, neutralizá-lo é uma forma de poder que vicia os escritores desde sempre, como deuses que gozam de uma impunidade que é, em si mesma, um excitante sem igual. Em nenhuma outra arte se atinge a precisão que faz de um talento mesquinho uma projeção de tal forma grandiosa que domina os sentidos do público, deixando-o inebriado. Há muito que a escrita é sugerida por terapeutas como uma ocupação regeneradora, uma forma de escapar ao atropelo com que os acontecimentos marcantes, tal como sismos, ao longo da vida, vão produzindo réplicas tão ou mais destrutivas para uma personalidade. E se podemos falar de eventos tenebrosos, relatá-los com um grau de minúcia raiando o pavor, mostrá-lo seria já outra coisa.
Na minissérie de cinco episódios Patrick Melrose da Showtime, adaptada a partir dos cinco romances do escritor inglês Edward St. Aubyn, um dos aspetos que fazem desta ficção televisiva um triunfo é a forma como os criadores puderam aludir aos abusos sexuais que o protagonista sofre às mãos do pai sem o mostrar. O quinteto tem uma assumida carga autobiográfica, mas se St. Aubyn reconheceu que a literatura lhe foi útil para exorcizar demónios, seria um erro pensar que uma perspetiva meramente utilitária chegaria para produzir uma série de romances onde é raro virar-se uma página sem esbarrar em alguma frase, ou mesmo todo um parágrafo, com um vigor capaz de deslumbrar e gelar-nos na mesma medida. Há o estonteante apuro da prosa, o apontamento prenhe de um malicioso gozo, reflexos de uma mente brilhante sujeita à tortura emocional e aos maus hábitos adquiridos nas suas origens aristocráticas, esta é uma narração que oscila entre a beleza selvagem da frase e o estupor da realidade descrita.
Se a ficção pode ser usada para atingir a verdade, St. Aubyn não deixou passar a oportunidade de distorcer a mensagem, não apenas para satisfazer as suas ambições literárias, mas igualmente para se proteger, ganhar alguma distância e servir ao leitor uma viagem irrecusável. Assim, este ciclo publicado entre nós com o selo da Sextante e que James Wood descreveu como “uma espécie de bildungsroman blasfemo”, ofereceu-lhe a hipótese de fundir numa mesma liga a sua história e a de Patrick para ter margem de recuo diante dos contornos mais escabrosos dos abusos que sofreu na infância e que o levaram a passar boa parte da adolescência e juventude numa espiral autodestrutiva, tendo começado a injetar cocaína e heroína aos 16 anos, quando frequentava a Westminster School, em Londres.
Aguentou-se ao longo de uma década em que, de todas as formas que usou para encontrar um fim, o álcool acabou por se tornar a mais tolerável arma que apontava a si mesmo. Às tantas, deu-se conta de que só lhe restava entregar-se verticalmente à escrita ou matar-se. Por isso, trancou-se e produziu um dos monumentos do romance contemporâneo. Cerca de novecentas páginas que adquirem “o peso de um poema em prosa, com o fôlego de um grande romance e a estrutura de uma vinheta”, como o descreveu o crítico Troy Patterson, na New Yorker. E se a série televisiva não pode ombrear com uma obra literária em que cada frase se desdobra em eco, e a respiração do leitor vai sofrendo variações como se sujeita a uma sulfurosa melodia, se o rasgo maníaco desta prosa soberbamente controlada não poderia encontrar uma simetria perfeita em cinco horas de televisão, como Patterson refere, a minissérie (transmitida entre nós pela HBO Portugal) funciona, ao mesmo tempo, como uma sebenta a resumir os tópicos principais da narrativa e a servir de apoio à leitura dos romances e como uma luxuriante nota de rodapé.
Benedict Cumberbatch havia já assumido a sua admiração pelos romances, tendo revelado numa entrevista que Patrick surgia a par de Hamlet como os papéis que ambicionava desesperadamente representar. A série tem, assim, na sua estrela um dos principais atrativos, e sendo alguém que há muito vinha cultivando uma cumplicidade com o protagonista, não o atraiçoa para exibir-se, mas consegue ser fiel ao tom, à tão sedutora quanto malévola espirituosidade que levou a crítica a comparar St. Aubyn a supremos estilistas da língua e da ironia como Oscar Wilde e Evelyn Waugh. E isso torna-se óbvio na maneira como, ao longo das cinco horas, são extraídas dos romances e destiladas na ação muitas das frases que provam o parentesco entre o romancista e Shakespeare. E Cumberbatch surge-nos ao mesmo tempo como a encarnação de Patrick e o ator deliciado diante da realização de um sonho, deixando transparecer um evidente gozo ao ser veículo de tiradas de um mórbido humor que adquirem em nós, enquanto audiência, a mesma ressonância e prazer que tira um leitor diante de uma frase impressa de forma tão perfeita que adquire um brilho quase funesto.
Cruzar a fronteira entre tudo o que foi escrito, e nos romances é denunciado através do efeito de uma sátira mortífera, e passar para a representação, mostrando o que foi entregue à imaginação dos leitores seria um ilícito insuportável, mas a produção escrita por David Nicholls e realizada por Edward Berger consegue superar não só esse handicap como a dificuldade de comprimir em cinco horas as novecentas páginas em que a ação não tem o domínio, mas os efeitos são aquilo que faz o leitor sentir-se como um náufrago entre os sumptuosos destroços que compõem esta obra. Assim, a série funciona como um maravilhoso teaser para uma obra literária que, na sua descida a um inferno pessoal, se destaca num momento em que a produção literária começa a ficar saturada de uma série de romances que se apresentam um passo atrás ou à frente da autobiografia, seja como obras de não-ficção seja como exemplares da chamada “autoficção”. Tem sido de tal ordem o dilúvio nessas categorias que, no Reino Unido, há um termo para se lhes referir que sinaliza bem o desprezo pela sua popularidade. Chamam-lhes “memórias miseráveis” (“misery memoir”). Ao inscrever o seu quinteto entre as exceções, o que St Aubyn conseguiu foi servir com uma frieza glacial a vingança da sua inteligência arrebatadora contra as condições miseráveis que mostram como o que definhou com as velhas elites foi um terrível pacto de silêncio.