É melhor trabalhar no público ou no privado?

É melhor trabalhar no público ou no privado?


Não é fácil comparar setores: além da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e do Código do Trabalho, há carreiras especiais no Estado e acordos coletivos entre patrões e sindicatos que tornam a realidade muito diversa. Especialistas ajudam a identificar diferenças, para lá da novidade do aumento do “salário mínimo” no Estado. A maior,…


Salários: onde se ganha mais?

Os funcionários públicos têm salários mais elevados que os do privado? Mário Centeno, ainda no Banco de Portugal, chegou a assinar análises que confirmavam essa tendência histórica. Num estudo com base em inquéritos europeus para o período antes do euro (1993/2000), concluía-se que Portugal era o país com maior diferencial nos salários por hora entre público e privado, uma diferença de 36%; em França, o país com menor hiato, era de 1,8%. Mais recentemente, uma análise da Comissão Europeia para o período entre 2006 e 2010 concluiu que os salários da função pública eram 11,9% superiores aos do privado, situação que comparava com Itália ou Espanha. Os autores consideravam que o diferencial era maior nos trabalhadores com menos estudos (de 18,6%, contra 4,5% nos trabalhadores mais qualificados). Em que ponto estamos? Pedro Madeira de Brito, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, admite que é difícil uma análise geral, mas aponta três indicadores: no caso do salário mínimo, com a alteração agora introduzida, fica mais elevado no Estado. “Ninguém entrará no setor público com menos de 635 euros.” Outro indicador que pode ser tido em conta são os salários médios: em 2017, 1460 euros no Estado e 913 no privado, segundo uma análise recente publicada pelo “JN”. Madeira de Brito faz uma ressalva: “Os dados têm-nos dito que são mais elevados no público, mas as pessoas também são, em média, mais qualificadas, o que pode explicar a diferença.” Salários de topo são sempre mais elevados no privado. “Não há um teto, enquanto na função pública os valores são tabelados: têm como limite máximo a remuneração do Presidente da República (6700 euros brutos). Há pessoas no privado a ganhar mais do que isso, mesmo que sejam exceções.”

35 horas vs. 40 horas

A lei que repôs as 35 horas como período normal de trabalho na função pública foi publicada em junho de 2016 e passou a abranger todos os trabalhadores do Estado no segundo semestre de 2018. No setor privado, a regra é a que vem no artigo 203.º do Código do Trabalho: “O período normal de trabalho não pode exceder oito horas por dia e quarenta horas por semana.” Quem trabalha mais? Vai depender, já que existem mecanismos de isenção de horário nos contratos. Por outro lado, pode haver acordos nas empresas para horários menores. “Em princípio, no privado, o período normal de trabalho semanal são as 40 horas, mas isso não quer dizer que não existam entidades, e são muitas, que têm em vigor 35 horas ou 37,5 horas”, explica Madeira de Brito. Além disso, é preciso contabilizar o trabalho extraordinário: tudo indica que aumentou com o regresso às 35 horas.

Quem tem mais férias?

Tanto a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas como o Código do Trabalho garantem o mesmo período de férias: 22 dias úteis/ano. Mas a lei que abrange os funcionários públicos prevê mais um dia útil por cada dez anos de serviço. E há regimes especiais: por exemplo, o pacote de incentivos para médicos que aceitem trabalhar em zonas desfalcadas dá mais dois dias de férias, a que pode somar-se mais um dia por cada cinco anos de serviço. Do ponto de vista legal, o público garante assim mais férias a alguns trabalhadores, mas há muitas empresas que também dão essa benesse. O estudo “Total Compensation Portugal 2018”, da Mercer, que no ano passado analisou os benefícios em 397 empresas (uma amostra de 148 mil postos de trabalho, a maioria no privado), concluiu que 56% concediam dias de férias extra. E em relação a 2017 havia mais firmas a fazê-lo. 

Idade de reforma

Este ano, a idade de reforma sem penalizações é de 66 anos e cinco meses. Aqui, a regra é geral para todos os trabalhadores, embora subsistam regimes diferentes para funcionários públicos mais antigos, nomeadamente para os que começaram a trabalhar antes de 1993, explica Madeira de Brito. “No fundo, o regime normal é igual para todos, o que subsiste são casos transitórios.” A principal diferença na comparação entre setores prende-se com as reformas antecipadas: na função pública tornou a ser possível a reforma aos 55 anos com 30 anos de descontos, ainda que com penalizações. No setor privado, aliás como no público, o regime de flexibilização veio entretanto permitir a reforma antecipada aos 60 anos para carreiras contributivas mais longas (40 ou mais anos). 

Evolução na carreira

E quem progride mais rápido? O descongelamento das carreiras tem estado no centro da luta sindical e os especialistas em direito do trabalho dizem que é difícil responder em termos de rapidez. Uma coisa parece certa: a situação mais difícil é a dos trabalhadores do setor privado que não estão abrangidos por acordos de empresa, a maioria das pessoas que trabalham em empresas de pequena e média dimensão. “Para os trabalhadores do privado que não têm contratação coletiva, a progressão na carreira é uma miragem. No setor público há sempre uma estruturação da carreira. Depois podem estar congeladas durante anos, mas no privado isso pode acontecer uma vida inteira”, diz Madeira de Brito. Ainda assim, em períodos de retoma, parece ser mais fácil ver uma luz ao fundo do túnel no privado. Segundo o estudo da Mercer, em 2018, os incrementos salariais rondaram os 2%. Para 2019 previa-se um aumento maior.

Emprego mais estável no Estado?

Para os especialistas ouvidos pelo i, é na proteção do emprego que se encontra a principal diferença entre setores nos dias de hoje. O despedimento é mais difícil no Estado? “Por causas objetivas, seguramente que sim. Por causas subjetivas (infração disciplinar), tenho dificuldade em responder: a relevância da infração depende muitas vezes dos tribunais. Mas diria que o emprego ainda é mais estável na função pública: não existem extinções de postos de trabalho e os despedimentos coletivos estão vedados”, diz Luís Gonçalves da Silva, também professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Madeira de Brito sublinha que a proteção não só é maior como foi retomada. “No tempo da troika, no âmbito da requalificação, os trabalhadores começavam a ganhar menos mas, se se tornassem desnecessários para o Estado, o vínculo era extinto. Desde 2017, com a alteração da lei de valorização profissional, não há extinção. Existe uma vitaliciedade do vínculo de emprego público”, explica. 

É o Estado que está bem? “No setor privado é impossível impor uma regra destas. As empresas funcionam em função de determinados objetivos e não podemos dizer que, havendo diminuição da atividade, não possam fazer redução dos efetivos. Outra coisa é dizer que os empregadores por vezes abusam da figura para reestruturar e para despedirem quem não querem, é verdade, mas a figura tem de existir.” 

Alterações nos salários

Um aspeto menos vezes apontado na comparação entre setores, e que neste caso coloca em desvantagem os trabalhadores do setor público, tem a ver com as alterações de salários. No privado, explica Madeira de Brito, a remuneração dos trabalhadores é fixada no contrato ou nas convenções coletivas. “No Estado, a remuneração nunca pode ser fixada por convenção coletiva, é sempre o Estado unilateralmente que a fixa e, portanto, pode alterá-la independentemente da convenção.” É certo que os trabalhadores podem recorrer a formas de luta como greves para a contestar mas, nos acordos de empresa no privado, se a remuneração estiver em vigor para cinco anos, nesse período não se pode alterar a remuneração. Mais uma vez, uma vulnerabilidade que também é maior nos trabalhadores de PME’s, como mostrou a crise.

ADSE vs. Seguros e outros benefícios

Segundo a Mercer, 94% das empresas atribuem um plano médico aos colaboradores e 7% pagam a mensalidade de uma atividade desportiva. A atribuição de viatura também é comum. Marta Dias, consultora da empresa, assinala que a criação destes benefícios flexíveis é uma tendência que a legislação no setor público torna mais difícil seguir. Madeira de Brito explica: no privado há vantagem fiscal nesses benefícios. No público as regras são outras. “Só pode haver benefícios aos trabalhadores se estiverem previstos na lei ou em instrumentos de contratação coletiva.” É proibido uma entidade pública pagar um seguro de saúde aos trabalhadores. Ou um ginásio. Os subsistemas públicos de saúde acabam por ser caso isolado. “A ADSE era suportada pelos impostos, mas passou a ser autossuficiente com as contribuições dos trabalhadores (3,5% do salário). Hoje pode ser considerada uma exceção enquanto benefício, mas também sai do bolso dos trabalhadores.”