Está em Portugal num périplo mundial para estabelecer contactos com movimentos da esquerda democrática. Já passou pelos Estados Unidos, onde se encontrou com Bernie Sanders, o senador do Vermont que desafiou Hillary Clinton nas últimas eleições primárias democratas. Encontrou-se com o antigo ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, que formou um partido chamado DIEM 25, e com dirigentes dos socialistas e do Podemos em Espanha. E com líderes da Frente Ampla, no Uruguai. Sempre acompanhado pelo antigo ministro Tarso Genro, outra das referências do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad passou agora por Portugal para encontros com dirigentes do PS, PCP e Bloco de Esquerda. A ideia, como refere o próprio, é mobilizar a esquerda em relação ao que se passa atualmente no seu país, “é fazer ver que essa não pode ser uma preocupação do Brasil, da oposição brasileira apenas”. Para o candidato derrotado na segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, antigo ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, aquilo que se passa no Brasil está relacionado com “a escalada da intolerância a nível global”, só assim se podendo explicar que “um país constituído muito fortemente por imigrantes” se retire do pacto global da ONU sobre migração, ainda para mais “sem nenhuma reflexão”, “macaqueando as decisões tomadas pelos americanos”, como afirmou na conferência de imprensa, antes de se sentar com o i para esta entrevista.
Que balanço faz das primeiras medidas tomadas pelo governo de Jair Bolsonaro, que entrou em funções no princípio deste mês?
São medidas preocupantes porque, de certa maneira, vão ao cerne de questões muito caras aos brasileiros e que têm a ver com a agenda democrática. Faço referência específica à questão ambiental, que é a mais evidente – o desmonte das estruturas do Estado para a proteção ambiental -, e à nomeação de ministros sem nenhum compromisso com essa agenda. A questão da educação nos preocupa muito, os ataques à escola pública laica e, agora, mais recentemente, sinais preocupantes sobre a questão da autonomia universitária. Sinais de que não respeitarão essa autonomia, o desrespeito ao orçamento, o desrespeito aos dirigentes – sobretudo reitores. E a política externa, que ganhou um automatismo, um alinhamento automático com os norte-americanos sem nenhum tipo de mediação, sem nenhum tipo de reflexão sobre se aquelas medidas dialogam com os interesses nacionais. Como se houvesse uma confusão entre os interesses brasileiros e norte-americanos. A questão é, evidentemente, a do apelo às armas como solução para a crise de violência urbana que estamos vivendo, não é? Num país onde o feminicídio, a violência doméstica são tão presentes, permitir que as pessoas mantenham armas em casa não vai dar bons resultados, na minha opinião.
Esta medida da liberalização das armas responde a uma parte dos anseios da população que acha que ela vai trazer mais segurança às suas vidas. As políticas dos anteriores governos não conseguiram eliminar a criminalidade, a violência quotidiana – em 2017 bateu-se o recorde do número de mortes violentas no país. Há alternativas? Esta política é justificável?
A nossa proposta era que federalizássemos alguns aspetos do combate à violência. Hoje, a quase totalidade da responsabilidade recai sobre os estados e, no nosso plano de governo, a polícia federal assumiria uma parte importante do combate à criminalidade. Na minha opinião, a criação de um sistema único de segurança pública era o caminho natural para a superação das nossas dificuldades, até porque os estados estão sem recursos para enfrentar o desafio da segurança pública.
É o caminho oposto de Jair Bolsonaro, que quer mais poder para os estados e menos federalização.
Na verdade, ao liberalizar a posse e porte de armas você vai gerar um processo natural de privatização da segurança pública. Essa é a razão pela qual Bolsonaro mantém historicamente relações estreitas com milícias, sobretudo no Rio de Janeiro. Veja que os gabinetes da Família estão recheados de parentes de milicianos, inclusive um que está sendo apontado como assassino de Marielle Franco. É uma situação extremamente delicada aquela que estamos vivendo.
Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia?
Depende do que se entende por democracia. Até ao presente momento, o que afirmo sem medo de errar é que os direitos políticos, sociais e ambientais estão na mira do governo. Quando você ameaça a liderança do movimento popular de criminalização, isso é um atentado à democracia. Quando você incita estudantes a filmar os seus mestres e denunciá-los por doutrinação, isso é uma ameaça à democracia. Quando os direitos ambientais não estão sendo resguardados e os indígenas não têm os seus direitos sequer reconhecidos – porque [o governo de Bolsonaro] já anunciou que não irá remarcar um milímetro de terra indígena -, isso é um atentado à democracia. Se você tem uma visão larga da democracia, então sim. Se tiver uma visão estreita – foi eleito, tomou posse, o Congresso está funcionando -, aí, ainda não, mas como professor de Ciência Política digo que essa visão estreita da democracia não é uma visão moderna.
Todos esses meios de que falou, a violência ambiental, o aumento do poder dos fazendeiros, etc., junto com as milícias, parecem colocar isso em causa. Vê um quadro em que a influência política de Bolsonaro possa aumentar com essa ligação às milícias, que controlam os votos em muitas zonas, como no Rio de Janeiro e em São Paulo?
Num Estado democrático, as milícias deviam estar a ser combatidas, porque a remuneração das milícias é, no geral, feita mediante extorsão. Não é mediante contribuição voluntária, é mediante extorsão. Não é como um condomínio de classe média em que as pessoas se reúnem e se quotizam para pagar as despesas comuns, não é assim que funciona. As milícias abordam o cidadão e vendem a segurança pública mediante extorsão: se você não paga, sofre as consequências. E vi uma entrevista recente do próprio Bolsonaro, na altura ainda deputado, dizendo que era absolutamente legítimo pagar 50 reais [13 euros] por cidadão para manter um grupo de milicianos à disposição.
Paralelamente, ao mesmo tempo que empodera as milícias, o governo de Bolsonaro pretende criminalizar o Movimento dos Sem Terra. Como vê essa tentativa?
Como uma ameaça à democracia.
É a criminalização da pobreza?
É a criminalização da política e a politização do crime.
Face a tudo isto, quando é que o PT começa a fazer uma oposição mais ativa, tanto no congresso como nas ruas? Tendo também em conta o equilíbrio de forças no Congresso e o facto de o seu partido ter a maior bancada de deputados.
Essa é outra dimensão interessante. O pouco que nós estamos fazendo neste começo de governo já gera preocupação no próprio governo. Hoje, um ministro de Bolsonaro nos está acusando de fascistas pelo tipo de oposição que estamos fazendo. Eles não aceitam vozes dissonantes de nenhuma ordem, vão na direção contrária ao que você está perguntando. Você está dizendo “quando é que vão às ruas?”, eles estão dizendo “você não vai parar?”. (risos)
Como vê os equilíbrios no Congresso? Acha que o governo de Bolsonaro vai conseguir fazer alianças para passar o seu programa económico, político e social?
A feição deste governo é conservadora, mas não sei se eles têm, apesar de um viés favorável desse Congresso, capacidade de articulação. Vai depender muito deles.
Bolsonaro fala constantemente em fazer um governo sem ideologia, que usa muitas vezes como sinónimo da esquerda. Acha possível ser governo sem ideologia?
Acho que o Bolsonaro tem dificuldade com o conceito. O que ele quer dizer com isso? A impressão que dá é que o problema dele é com quem pensa diferente, não é com a palavra ideologia, “todo o mundo que não pensa como eu penso é ideológico”. E aí fica fácil fazer esse tipo de manobra retórica. Mas pode ser que ele tenha aprendido assim, que não seja propriamente má fé da sua parte. Ele aprendeu assim porque é fruto dos porões da ditadura militar, que pensava assim da oposição, que pensava que a oposição era antipatriótica, que a oposição era ideológica, que não podia não concordar com o regime militar, que não podia lutar por liberdades. Por isso, insisto, pode não ser por má-fé, pode ser por incompreensão da complexidade da vida democrática. Uma coisa curiosa nos discursos correntes do Bolsonaro é a menção das minorias. Para ele, minoria é aquela parte da população que tem de se submeter à maioria em qualquer circunstância. Ou seja, o conceito de minoria política para Bolsonaro é um conceito estranho à sua cultura política. Por exemplo, ele diz que o Brasil é um país cristão e que a minoria tem de se submeter a isso. O que significa? Que o pessoal de matriz afro, ateus, judeus, muçulmanos vão ter de abdicar das suas crenças?
Assusta-o o programa ultraliberalizador de Paulo Guedes, com uma lista enorme de privatizações, redução substancial de impostos às empresas, reforma da previdência [segurança social]?
O Paulo Guedes é um ultraliberal, um neoliberal, um ultraneoliberal. Não sabemos bem ainda quais são efetivamente as propostas. Até aqui, o que tenho ouvido é a redução de impostos para ricos, também macaqueando os norte-americanos, e as outras medidas não te sei dizer quais serão. Não houve debate, ainda não sabemos exatamente.
Fala-se também da privatização da Petrobras.
Ah bom, isso sim.
Preocupa-o, assusta-o essa possibilidade?
Ah, eles vão vender o que puderem. Eles não têm nenhuma visão estratégica.
Mas tendo em conta que as classes dominantes brasileiras são historicamente protecionistas, não acha que esse programa ultraliberalizador de Paulo Guedes irá entrar em confronto com o agronegócio, que é historicamente protecionista?
Quem é mais protecionista no Brasil é a indústria, que não tem força neste governo. O agronegócio não é protecionista, bem pelo contrário, tenta derrubar as barreiras externas aos produtos brasileiros.
O que diria que são os grandes alicerces, as grandes bases de poder do governo de Bolsonaro?
Ele tem uma base fundamentalista de caráter religioso, com uma agenda bastante retrógrada e pré-moderna, diria. Não é nem liberal, é pré-liberal. E o mercado financeiro. É muita coisa, isso não é pouco.
Existe também um segmento crescente da população que tem um antipetismo virulento. Acha que a eleição de Jair Bolsonaro se deveu sobretudo a este antipetismo virulento ou há um autoritarismo e conservadorismo a crescer no Brasil também?
O antipetismo sempre existiu desde que existe PT. Ele está mais forte hoje em função de quatro governos, de quatro vitórias consecutivas, mas ele sempre existiu. Agora existe um pensamento mais organizado de extrema-direita com métodos absolutamente preocupantes de atuação.
Ou seja, na sua análise da última eleição presidencial, acha que foi uma vitória de Jair Bolsonaro ou sobretudo uma derrota do PT?
Acho que foi uma combinação de fatores. A ausência de Lula da disputa, acho que foi um facto marcante. A maneira, os métodos da extrema-direita. A Europa está começando a sentir isso – Espanha e Itália já estão sentindo o que são os novos métodos da extrema-direita no mundo, o jeito de fazer política. O Trump já é sintoma disso e lamento informar que não é um problema apenas brasileiro.
Por exemplo, arrepende-se da sua estratégia de na primeira volta tentar uma identificação com Lula da Silva?
Não, de jeito nenhum.
E depois demarcou-se na segunda volta.
De jeito nenhum, era vice dele. Não iria negar essa minha condição, era vice, fui alçado à condição de candidato depois de Lula ter tido a sua candidatura impugnada.
A questão da impugnação da candidatura de Lula à presidência do Brasil e as muitas acusações, dentro do seu partido e mesmo internacionalmente, de que a justiça brasileira está a ser politizada, como vê essas questões?
Olha, esse é um drama que o país está vivendo. O próprio presidente do Supremo Tribunal Federal tem dito que o judiciário tem de se recolher. Temos de fazer leitura disso, do que quer dizer na prática. O facto é que um judiciário, quanto mais discreto e imparcial, melhor – melhor para todos.
Na sua opinião, a sucessão de decisões da justiça em geral e do Supremo brasileiro em particular pôs em causa o Estado de direito no Brasil?
As pessoas estão-se sentindo inseguras, e isso é preocupante. Insegurança jurídica é um dado da realidade hoje.
Dado esse crescimento do antipetismo tão virulento, acha que o partido precisa de fazer mudanças internas? Está disponível para encabeçar essas mudanças?
Vou participar. Participo.
Acha-as necessárias?
Sempre é, e depois desta crise do sistema partidário brasileiro será um desafio recompor o sistema partidário. Não é só o PT; o PSDB, por exemplo, está numa situação ainda pior, o PMDB. O PT é o único partido que saiu desta eleição de pé. Machucado, mas de pé. Os outros partidos nem de pé saíram.
Pretende encabeçar uma nova liderança do PT?
Não, a direção do partido, não.
O governo de Bolsonaro pretende acabar com todos os governos de esquerda na América Latina e alinhar–se apenas com governos de centro-direita. Como vê esse posicionamento?
Como uma miopia política. Ele não sabe por quem Portugal é governado, não sabe por quem a Espanha é governada, por quem é o Uruguai governado. Qual é o sentido de o Brasil querer ditar o padrão de governabilidade nos demais países?
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi à tomada de posse de Nicolás Maduro. Como analisa a presença da senadora na cerimónia?
Analisei a questão numa entrevista ao “El País”, dizendo que nestes casos em específico você tem de cuidar muito da comunicação, o que você quer comunicar, para que as pessoas não façam mau juízo da sua atitude. Mas, se conheço a Gleisi, o que ela quis com o gesto foi sinalizar que o Brasil não pode ser parte da ameaça à soberania dos demais. Pelo contrário, tem de ser, como sempre foi, um país que constrói as soluções para os conflitos internos sem dar aos Estados Unidos o poder de ingerência sobre o continente.