Algo arredado hoje do exercício de crítica literária que desenvolveu nas páginas do “Expresso” e, paralelamente, num conjunto de outras publicações, Manuel de Freitas acaba de reunir 14 textos publicados entre 2005 e 2015 na “Telhados de Vidro”, publicação que dirige com Inês Dias, e que é já um caso sério, em termos de longevidade, no panorama das revistas literárias portuguesas, tendo alcançado o 20º número este ano. “Incipit” foi o título da série e agora do livro em que o poeta assinala em cada um dos breves ensaios aquelas que considera serem as estreias mais fulgurantes da poesia portuguesa pós-pessoana.
Num olhar retrospectivo tão exigente quanto paciente, Freitas detém-se nos aspectos que mais do que presságios, são já o travejamento de obras todas elas de excepção, umas hoje assumidas como incontornáveis, canónicas, outras bem longe disso. No arco que começa a desenhar-se com “Perseguição”, de Jorge de Sena, em 1942, e que termina em 1999, com a publicação “O Sino de Areia”, de José Miguel Silva, não sendo propriamente polémicas as escolhas, é evidente um esforço não apenas de prestar tributo mas, nalguns casos, de fazer justiça, procurando Freitas recuperar poetas cujas obras começam já a sumir-se no esquecimento que a posteridade reserva à imensa maioria. Os casos mais evidentes, serão António Manuel Couto Viana e Pedro da Silveira. Por outro lado, e como já acontecia na antologia “Perspectiva da Morte” (2009), as escolhas denotam claramente as afinidades com a própria obra poética de Manuel de Freitas, e uma das críticas que não deixa de ser fácil fazer-lhe é de que deixa muitas vezes a sensação de uma tentativa de ajeitar o canône para enfocar a sua própria aparição enquanto poeta, já no ano 2000, com o livro “Todos Contentes e Eu Também”. É algo que se pressente na forma como vai sublinhando a incidência do tema da “morte” na obra dos seus antecedentes, esse que é o signo obsessivo que nutre a visão agónica da sua própria obra, e que, Freitas parece interessado em franchisar.
Por maior consideração que se tenha pelo autor de “Beau Séjour”, o honrável esforço para resgatar autores certamente muito estimáveis não lhe dá carta branca para que, a meio de passagens valiosas na apreciação dos seus autores, se permita regougar de forma capciosa e infundada contra poetas que lhe parecem menos dignos de atenção. Este tráfico de irritações pontua toda a crítica de Freitas, puxando-lhe o pé para a chinela pela ânsia de zurzir nos seus alvos, os “legisladores e polícias culturais de serviço”, “os exegetas de serviço”, as “mentes requintadas” de “certas sacristias”… É vastíssima a galeria de epítetos que, com evidente prazer, Freitas vai calibrando na hora de mimar os seus bois sem nome.
Um exemplo disso surge quando, a propósito da poesia de Fernando Assis Pacheco, e ao afirmar que esta, “já na década de sessenta, constituía um caso bastante isolado de valorização do quotidiano, do banal e do concreto”, aproveita para acrescentar que “quaisquer semelhanças, a esse e outros níveis, com poetas tão sobrevalorizados como Alexandre O’Neill ou Ruy Belo revelam-se mera efabulação”. É a pior característicade de um leitor raro na forma como consegue ser empolgante e certeiro nos seus juízos, esta tendência para o desvario ou clara falsificação, tentando anular outros horizontes e escalas analíticas, como se houvesse uma só forma de abrir caminhos e perspectivas numa obra. Fá-lo, além do mais, recorrendo a um tom implicante e jocoso, não evitando muitas vezes a bazófia de quem se tem por uma sumidade na matéria, dando-se ao luxo de dispensar o exercício de demonstração do que diz.
Manuel de Freitas carregou com um ânimo fervoroso pelos anos zero as armas e bagagens dos jogos de oposição herdadas do século passado no campo da poesia portuguesa. E não apenas emergiu na linha da frente das tensões e conflitos como teve o dom de exponenciá-los, a tal ponto que, o que até então não ia para lá de desapercebidas intrigas de bastidores, viria a eclodir nas páginas dos jornais gerando uma polémica difusa, racionada segundo os esforços de recepção e arregimentação dos títulos que iam chegando às livrarias, servindo assim de tijolos para a troca degalhardetes.
Ensaiado o guião para o que teríamos de mais parecido com um western literário, a antologia “Poetas Sem Qualidades” (2002) abriu o catálogo da editora de Freitas, convocando para os papéis demau e vilão Nuno Júdice e Manuel Alegre. Duas eminências sempre muito à mão para quem tenha chame a si a fraca audácia de explicar às criancinhas que nenhum dos dois faz mais que ocupar as miseráveis embaixadas que se distribuem pela cultura em geral, e em particular pela poesia, que vai gozando mesquinhamente o pouco proveito da fama ser das expressões artísticas que mais elevaram a quimera da portugalidade.
Destacando-se pela veemência das suas posições, e colhendo em Joaquim Manuel Magalhães o cerimonial de um empenhado discurso, a um tempo elaborado e enxuto, capaz de detectar e interpretar as vibrações mais inquietantes na teia dos autores que lia, Freitas desenvolveu uma visão personalíssima e fortemente parcial da poesia contemporânea. A elegância incisiva dos seus textos de crítica, denotava o mesmo esmero e graça a que nos habituou Magalhães. Textos que, em alguns casos, se revelaram mais determinantes para a proposta de um horizonte de referências instigante do que muita da melhor poesia que se ia publicando. Era uma crítica verdadeiramente poética porque actuante, dialogando de forma instrutiva e complementar, num prolongamento das obras de que cuidava. Merecendo por direito próprio a cidadania no reino da arte, como exigia Schlegel.
Sem ser redundante em relação à abordagem de génio e fulgor mais ensaístico de Magalhães, nos seus momentos mais exaltantes Freitas sabia elogiar sem reservas e sem, por outro lado, derivar para um registo meramente impressionista. A vigorosa articulação do seu discurso sempre teve como ciência a capacidade de ilustrar de forma convincente os méritos de determinado autor recorrendo a versos exemplares. E, tal como aconteceu com Magalhães, não se pode deixar de assinalar o quanto a influência das suas luzes críticas teve na própria afirmação das respectivas obras poéticas.
A redundância em que o labor crítico de Freitas acabou por cair chegaria pela via da insistência, acabando a roer o osso do braço que mordera já fundo o suficiente. Possivelmente também porque, ao contrário de Magalhães, o seu talento não estava do lado dos lances mais criativos, mas antes na atenção ao detalhe, numa leitura feita com o dedo sobre cada verso. Esse foco minucioso, o ouvido apurado para ressonâncias barrocas, distinguia igualmente o tom da sua poesia, como orientava as escolhas que fazia enquanto editor. Tendo como guia a sua forte desconfiança em relação a sinais de grandiloquência ou ao “lirismo manso”, com “um gosto acerbo pelo desconcerto e pela provocação”, preferindo o desencanto à melancolia e uma “violenta ironia” ou “sóbria displicência” aos “bordados sintácticos” e aos “mitos da poesia pura, sublime ou angelical”. Segundo a formulação que usa no ensaio dedicado a Assis Pacheco, “[T]rata-se, sobretudo, de evitar afincadamente ocancioneiro gasto do nacional lamechismo”.
Em “Incipit” Freitas consegue dar largas à sua ânsia de posicionar os seus eleitos como soldadinhos (ainda que todos altas patentes na nossa hierarquia poética) e impô-los como uma insuperável linha na ficção que gosta de entreter de uma guerra contra os artífices das “habituais facilidades líricas”, os agentes do “tráfico de influências”, ocupados com a pilhagem desse ouro dos prémios e das teses que saem das faculdades de letras. E é curioso notar que Freitas está muito bem cotado no rating destas agências.
O seu talento foi de facto a invenção do inimigo neste território, fazendo do gosto não uma mera sensibilidade à boleia de uma certa disposição estética, mas disfarçando-o de algo mais. Fugindo afixar o enunciado de qualquer programa de ordem estética, a habilidade de Freitas foi gerar a ilusão de que, o princípio orientador da sua poética – que como já vimos promove a indistinção entre os versos e os textos de crítica literária – é uma certa noção de ética. Cabe-lhe, segundo esse princípio, o papel de um cruzado que, apesar de toda a auto-irrisão, não esconde alguns requebros fidalgais, fazendo a defesa de uma poesia que, apesar de rejeitar a grandiloquência, não renega a exemplaridade e a honra. Vai assim operar pela via da transgressão, num tempo de aceleração insana, impondo-se-lhe como discurso de “resistência” ou “atrito”, num ataque aos deslumbramentos com as falsas promessas do admirável mundo novo que, em favor do progresso e da máxima eficácia produtiva, nega o ócio e tenta converter o indivíduo numa roda dentada do mecanismo industrial, num autómato, desumanizando-o.
E como é que Freitas estabelece essa fronteira ética no campo da poesia? Aferindo da discrição dos poetas na relação com os meios de promoção no meio literário. Curiosamente, à medida que Freitas assumia maior preeminência, tornando-se o rosto mais visível da nova geração de poetas, o seu discurso crítico afrouxou tal como as suas escolhas a nível editorial. Apaziguado, chegava a hora de convidar as prebendas.
Com mais de 40 títulos publicados nesta década e meia do século XXI – e tendo este ano publicado outra antologia da sua obra poética, “Sunny Bar”, com selecção de Rui Pires Cabral e um posfácio de Silvina Rodrigues Lopes – Freitas não só é de longe o mais prolífico dos novos poetas portugueses, mas tem trilhado o caminho mais certo para a consagração, gerindo a sua influência como “marginal” cada vez mais recomendado pelas instâncias institucionais e ocupando uma centralidade que, curiosamente, o coloca hoje a par de Nuno Júdice na atenção que recebe. Enquanto isso, asua obra entrou numa asfixiante circularidade, com a bengala da morte a surgir como um artefacto patético em poemas que, inevitavelmente mais curtos, mal se levantam do chão, e que da furiosa atenção ao real caíram na mais pura e desasada biografia. Cedendo ao mesmo efeito de “penosa auto-caricatura” que via em Júdice, os poemas de Freitas não servem mais que apontamentos esteréis a nível lírico, que apenas lembram e, nessa medida, degradam a fulgurante obra que publicou entre 2000 e 2007, até “Juros de Demora”. O silêncio, já se sabe, é o mais difícil. E às vezes cabe aos leitores e à crítica decidir quando uma extremíssima voz elegíaca deu lugar à agonia de um moribundo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Jornal i, a 17.12.2015