Daniel Adrião foi o único candidato contra António Costa nas últimas eleições internas e defende que a geringonça não deve continuar na próxima legislatura. O dirigente do PS critica a ala mais à esquerda do partido e entende que só é possível fazer reformas de fundo com o apoio do PSD. Continua a bater-se pela reforma do sistema político e quer que os candidatos às europeias e legislativas sejam escolhidos através de eleições primárias.
Esperava que esta solução política durasse os quatro anos da legislatura?
É um feito notável que este governo tenha chegado ao fim da legislatura. Não podemos esquecer-nos que este é um governo minoritário do PS. É extraordinário que um governo minoritário tenha conseguido chegar até ao fim da legislatura. Só alguém com a sapiência política do António Costa é que conseguia fazer com que a geringonça chegasse até ao fim.
Há quem ache que as características desta solução impediram a realização de reformas importantes…
Isso é verdade. Isto era sobretudo uma solução transitória. A geringonça é uma solução engenhosa que correspondia a um sentimento maioritário da sociedade portuguesa. A direita tinha praticado uma espécie de experimentalismo social com consequências traumáticas e era necessário evitar que essa experiência se prolongasse. Estamos a falar de um governo que cortava salários e pensões, condenando à pobreza milhões de portugueses, e ao mesmo tempo fazia sorteios de carros de luxo. Isto é uma maldade. É, no mínimo, falta de respeito pelo sofrimento dos portugueses. O fantasma do regresso da direita ao poder é que permitiu a existência da geringonça – particularmente do regresso do ex-primeiro-ministro Passos Coelho.
Isso quer dizer que esta solução dificilmente se repetirá?
Acho que pode não ser repetível. Até aqui, o PS tinha, não um casamento, porque não havia condições para o PS casar com o Bloco e o PCP, mas uma espécie de união de facto. Havia, pelo menos, um voto de fidelidade ao PCP e ao Bloco durante o período da legislatura. Esse voto de fidelidade dificilmente se manterá depois desta legislatura. Julgo que o PS vai usar de maior liberdade de ação numa futura legislatura e vai procurar entendimentos mais alargados.
Com a direita?
Esses entendimentos não devem excluir o PSD, porque há reformas que necessitam de um consenso muito alargado como, por exemplo, a reforma do sistema político.
Não o chocaria uma coligação entre o PS e o PSD?
O bloco central não é uma boa solução para o país. Não é isso que defendo. O que acho é que em circunstâncias pontuais pode haver acordos com o PSD sobre questões de regime.
Isso quer dizer que o PS não deve voltar a fazer acordos escritos com os partidos à sua esquerda?
Julgo que, na próxima legislatura, o próprio PS procurará evitar esse tipo de acordos escritos e fará uma governação com mais liberdade de ação. Há reformas de que o país precisa com urgência e que necessitam desse entendimento mais alargado.
Como encara o entusiasmo da nova geração do partido com um PS mais à esquerda?
O PS é um partido de esquerda, mas não é um partido esquerdista. Sei que há quem gostasse de ver o PS transformado numa espécie de suflé do Bloco de Esquerda, mas o PS tem uma história e uma identidade muito próprias. O meu mentor político sempre foi Mário Soares. Nunca foi o dr. Louçã. E Mário Soares dialogava com o dr. Louçã, mas também dialogava com o prof. Freitas do Amaral. É isso que o PS deve continuar a fazer.
No último congresso criticou a postura de Pedro Nuno Santos, que tem sido uma espécie de líder desta nova geração mais à esquerda…
O Pedro Nuno Santos [secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares] não perde uma oportunidade para profetizar que vai ser o próximo líder do PS. É um pouco descabida essa necessidade de estar constantemente a pôr-se nos bicos dos pés e a proclamar que está escrito nas estrelas que será o futuro líder do PS. António Costa, caso não aconteça nenhum cataclismo, será primeiro-ministro, pelo menos, até 2022. Não compreendo muito bem que alguém que faz parte da equipa do António Costa esteja, no fundo, a disputar o seu lugar.
No congresso do PS disse que os cidadãos sentem uma profunda frustração em relação aos partidos. O que leva a essa frustração do eleitorado com os partidos tradicionais?
Julgo que as pessoas não se sentem verdadeiramente representadas. Há um défice de representação. Já falei na reforma do sistema político, com a implementação dos círculos uninominais. Isso é crucial para a regeneração do sistema político e para combater o clima de profunda desconfiança dos cidadãos em relação aos agentes políticos. Como sabe, eu defendo a realização de eleições primárias para a escolha de todos os candidatos a cargos políticos. Era muito útil que os próximos candidatos do PS ao Parlamento Europeu fossem escolhidos através de eleições primárias.
Na prática, como seriam escolhidos os candidatos?
Os militantes e simpatizantes poderiam apresentar as suas candidaturas. Esses nomes seriam votados por um universo de militantes e simpatizantes do Partido Socialista que se inscrevessem com o objetivo de participar nessas primárias. Isto permitiria promover um forte debate político sobre as questões europeias. Por outro lado, haveria concorrência com o objetivo de escolher os melhores.
Essa alteração poderia reduzir a abstenção?
Claro. A abstenção é um fenómeno monstruoso em Portugal. Nas últimas eleições europeias, a abstenção atingiu 66%. Isto é um absurdo. Hoje, as maiorias políticas não correspondem a maiorias sociais.
É também defensor da limitação de mandatos para os deputados. Porquê?
Devia haver limitação de mandatos para os deputados, como já existe para os autarcas ou para o Presidente da República. Os deputados deviam cumprir três mandatos.
Os partidos, em geral, não estão muito abertos a essas alterações?
Os políticos querem manter-se no sistema. Hoje em dia, a política é encarada como uma carreira, uma espécie de função pública de primeira categoria. Entram para a política como se entrassem para o funcionalismo público. Acham que aquilo é um emprego para a vida.
Como encara o caso de José Sócrates? O PS tem conseguido lidar bem com o facto de ter um ex-líder envolvido num processo de corrupção?
O PS tem tido muitas dificuldades em lidar com esta situação porque não é uma situação fácil. Trata-se de alguém que foi um líder incontestado do Partido Socialista. Foi primeiro-ministro. E foi a pessoa que ofereceu ao PS a sua única maioria absoluta. Não é fácil lidar com esta situação. É preciso que o PS consiga virar a página e continue a ser um grande ativo da democracia portuguesa.
José Sócrates fez bem em desfiliar-se do PS?
Ele explicou que era uma situação embaraçosa e que pretendia pôr fim a um embaraço mútuo. É uma decisão respeitável.
Publicou recentemente um livro, que foi entregar ao ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, em que propõe um novo modelo para a educação. O que o levou a escrever sobre educação?
A educação é a questão estratégica de fundo do país. O país precisa de mudar o seu paradigma educativo para poder mudar o seu paradigma de desenvolvimento. O sistema educativo está completamente ultrapassado. Foi criado em função das necessidades da Revolução Industrial e está completamente desajustado do mundo atual. As crianças e os jovens precisam de adquirir competências que a escola, hoje, não lhes fornece. A escola preocupa-se apenas com um conjunto de competências cognitivas básicas. O pensamento crítico, a criatividade, a capacidade de resolução de problemas, a empatia são competências fundamentais para um mundo globalizado que muda de uma forma vertiginosa.
Defende a utilização das novas tecnologias e, por exemplo, a desmaterialização dos manuais escolares. Esse caminho não está a ser feito?
As novas tecnologias estão afastadas das escolas. A ferramenta usada no processo de ensino foi inventada no séc. xv: é o livro impresso. Houve uma revolução tecnológica que inventou novas ferramentas de interação e de comunicação entre as pessoas. E, portanto, as escolas vivem cristalizadas no passado. Não houve um impacto do choque tecnológico ao nível do sistema educativo.
Acredita que é possível implementar algumas das propostas que apresenta para as escolas?
É preciso fazer isto de forma faseada e apostando muito na formação dos professores, mas é urgente fazer uma reforma na educação. Nós precisamos de uma geração que esteja munida das ferramentas e das competências do séc. xxi. Isso é fundamental para dar o grande salto de desenvolvimento de que o país precisa. Portugal precisa de mudar o seu paradigma de desenvolvimento e passar de uma economia baseada na mão-de-obra intensiva e nos baixos salários para uma economia baseada no conhecimento e na mão-de-obra qualificada e bem remunerada. Precisamos de fazer essa transformação para sermos competitivos. Não podemos continuar a basear a nossa competitividade nos preços baixos e nos salários baixos.