No contínuo silêncio da memória


Crónica de Afonso de Melo


SOCHI – “Inventei um novo género literário – o do silêncio!”, pronunciou Isaac Babel, mais um daqueles escritores russos imensos como a taiga e profundos como o mar. Proclamou-o em voz alta no Congresso dos Escritores Soviéticos de 1934, já depois de ter sido testemunha da Holodomor, a Grande Fome da Ucrânia, provocada pelo bloqueio de alimentos ordenado por Estaline à revelia daquilo que se proclamava como a unidade sagrada do povo soviético.

Babel seria, quatro anos mais tarde, vítima das purgas. Tornou-se uma não-pessoa. O seu nome foi banido das enciclopédias, proibido de ser citado em escolas e universidades, tirado da boca do povo. Acusado de trotskismo, foi condenado à morte. Josef Vissarionovitch Estaline tinha uma visão muito própria da organização social: “A morte resolve todos os problemas. Onde não há homem, não há problema.”

Silenciaram Babel.

Multiplicaram-lhe os silêncios. Sobre silêncios é possível encher linhas e linhas de letras infinitas; sobre silêncios é possível mesmo escrever livros perpétuos. Aliás, a verdade é que tudo se pode escrever sobre silêncios porque a leitura é, provavelmente, a forma mais perfeita do silêncio. É o silêncio lá dentro, soando em palavras mudas.

Há quem diga, por outro lado, que os grandes silêncios implicam muita gente, talvez mesmo multidões. Como no futebol. Talvez. Eu ouvi o silêncio do Maracanã abandonado horas depois da feroz histeria de um Fla-Flu, uma brisa de fins de tarde espalhava farrapos de lixo ao longo das bancadas e havia uma espécie de eco ainda suspenso no ar; e ouvi o silêncio ensurdecedor de Wembley no mais clássico de todos os clássicos, o Inglaterra-Brasil: os ingleses, sentindo-se vitoriosos, entoavam cânticos de glória mas, de repente, com o encanto divino dos que são bafejados pela felicidade do talento, os brasileiros traçaram na relva o esplendor de órbitas imaginárias e, com elas, desceu sobre o estádio esse tal silêncio capaz de rebentar o mais duro dos tímpanos, como se fosse o tributo devido à inimitável estética dos artistas. 
Há um silêncio odioso: o silêncio insuportável das conivências. Não do medo, que esse não precisa de mordaça porque não tem boca sequer. É mais um silêncio de revolta contra os que vão aceitando (em silêncio) a inevitabilidade dolorosa das destruições. 

O silêncio de que falava Martin Luther King: “O que me preocupa não são os gritos dos maus, é o silêncio dos bons.”
É madrugada e estou envolvido noutro qualquer silêncio, desses tantos silêncios que existem. Recordo-me da Águeda da minha infância e do silêncio que havia em Águeda. Um silêncio com ruídos ao fundo para que se destacasse como um relevo: as badaladas dos sinos que dobravam no pináculo da igreja; o piar do melro por entre os dióspiros; o zumbido de uma motoreta na estrada nacional; o silvo do meio-dia na fábrica da telha. 

Não quero mentir, mas acho que já ouvi seguramente mais de um milhão de silêncios. Cada um deles trazendo consigo imagens, lugares, pessoas, sentimentos e coisas de escrever e de exprimir. O silêncio intocável das montanhas do Tibete, acima dos seis mil metros de altitude, e um céu transparente e sem pássaros sobre os planaltos do Ü; o silêncio húmido de Angkor nos corredores esverdinhados de Angkor Wat, onde um velho soldado sem pernas tocava na flauta de cana todos os queixumes do Cambodja; o silêncio escaldante do deserto da Núbia no regresso de Abu Simbel, as caravanas de camelos desenhadas ao longe nos recortes do sol; o silêncio selvagem do Ngorongoro até à hora de chegar a primeira estrela da tarde, os leões espojados na terra batida das picadas, os elefantes refugiados na sombra confortável das acácias e dos baobás.

Silêncios. Tantos silêncios.

Por isso não entenderei nunca a frase: reduzido ao silêncio.

É no silêncio que recordo tudo. No contínuo silêncio da memória.