Foi em 1937 que os portugueses venceram a Espanha pela primeira vez. Há mais de um ano que a seleção estava parada. Depois das amaldiçoadas eliminatórias para o Mundial de 34 realizara somente três jogos: com a Espanha, em Lisboa (3-3), com o famoso Wunderteam da Áustria, no qual jogavam Mathias Sindelar, o Homem de Papel, Bican, Binder e Zischek, no Porto (2-3), e com a Alemanha, em Lisboa (1-3).
Em julho desse ano, o levantamento da guarnição de Melilla, um enclave espanhol do norte de África, dá início à guerra civil que irá devastar o país até 1939. Goded e Franco juntam-se à rebelião. É Franco quem vai tomar o comando do Exército de Marrocos. O levantamento espalha-se a Sevilha, a Oviedo, a Saragoça… Nos dois meses seguintes, as tropas nacionalistas, como se autoproclamam, já estão às portas de Madrid. Francisco Franco reclama a chefia do governo e torna-se Generalíssimo dos Exércitos. Os italianos vêm em auxílio de Franco e avançam sobre o País Basco. Com o apoio da Luftwaffe, a força aérea alemã, os bombardeamentos são intensos, sobretudo nas zonas de Guernica e Durango.
Em novembro de 1937 já o governo republicano, agora chefiado por Negrín, se refugiou em Barcelona e o avanço nacionalista é feroz. A batalha de Teruel está no auge.
Foi em Vigo, no dia 28, numa Galiza completamente submetida à nova ordem, que Espanha e Portugal se encontraram pela 13.a vez. E é uma Fúria enfraquecida que os lusitanos irão vencer. Há dois anos que o campeonato espanhol está interrompido, alguns dos selecionados são militares que vêm diretamente das linhas da frente, a equipa está naturalmente desfalcada de muitos dos seus melhores jogadores. Atrás da tribuna central dos Balaídos estão colocados dois enormes panos com os perfis de Salazar e Franco. Enquanto se executam os hinos, a multidão mantém-se de pé e de braço estendido, na tradicional saudação fascista. Os legionários portugueses gritam três vezes: “Salazar! Salazar! Salazar! Franco! Franco! Franco! Portugal! Portugal! Portugal! Espanha! Espanha! Espanha! Viva Portugal! Viva Espanha!”
Um verdadeiro encontro de irmãos.
Euforia Aos golos de Pinga e Valadas respondeu Gallart fixando o resultado em 2-1 para Portugal. Compreensivelmente, a vitória foi vivida com euforia. Era a primeira frente à Espanha e punha fim a uma frustração de 1 anos. E dificilmente outra derrota seria tão bem aceite pelos espanhóis.
Manolo de Castro, um conhecido jornalista do “Faro de Vigo”, que costumava escrever sob o pseudónimo de Handicap, desfez-se em mesuras: “Pode dizer–se que desta vez venceu não somente o que mereceu triunfar, mas o que jogou melhor. Esteve por um triz que assim não fosse. Não teria sido justo, e ontem foi uma dessas vezes em que se impõe no marcador uma vitória bem alcançada, sem a menor sombra de ilegalidade.”
O “Pueblo Gallego” afinava pela mesma nota, embora não fugisse à desculpabilização: “Enquanto os nossos homens – se não todos, pelo menos a maioria – se batiam nas trincheiras contra o marxismo, espingarda na mão e muito longe de qualquer preparação desportiva, os portugueses cuidavam da sua forma e da sua classe. (…) Não pretendemos com isto deslustrar o triunfo alcançado por Portugal, muito justo, porque, conforme já dissemos, sobre o terreno mostraram-se superiores em tudo: em forma, em classe, e sobretudo em entendimento entre as diferentes linhas da equipa.”
Elogios aos quais não escapa uma sensação de gratidão. Porque Portugal era a única seleção que se prestava a defrontar uma Espanha em guerra cuja seleção não era reconhecida pela FIFA. Num país dividido, com duas federações a reclamarem o direito de se considerarem as responsáveis pela representação nacional, o conjunto que defrontara Portugal limitava-se a ser o… conjunto nacionalista. Tal como sucedeu em 1938, quando os espanhóis vieram a Lisboa. Por isso, a FIFA nunca reconheceu estes dois encontros. O que, para os franquistas, pouco importava. A propaganda ia sendo feita com a conivência dos amigos portugueses.
Estrearam-se em Vigo com a camisola das quinas três jovens jogadores de brilhante futuro: o guarda-redes Azevedo, do Sporting; e os belenenses Mariano Amaro e Manuel Quaresma. Azevedo seria o guarda-redes da famosa equipa do Sporting que contou com os Cinco Violinos na linha de ataque. Quaresma viria a ser um dos campeões do Belenenses de 1946: driblador exímio, ficou conhecido pela sua habilidade e pelo seu repentismo. Mas Amaro foi, seguramente, a maior figura humana de todos eles.
Os três ficaram ligados a um dos acontecimentos marcantes da história da nossa seleção. No dia 30 de janeiro de 1938, noutra receção à Espanha, no momento de cumprimentarem o público com a saudação fascista, Azevedo esticou o braço mas manteve os dedos encolhidos, Quaresma limitou-se a ficar em sentido e José Simões, também do Belenenses, e Mariano Amaro levantaram os punhos. Os jornais dos dias seguintes procuraram não tocar no assunto, a revista “Stadium” chegou mesmo a retocar a fotografia das equipas alinhadas de forma a que nada se notasse. Mas nenhum deles escapou às incómodas perguntas da PVDE, tendo José Simões e Mariano Amaro sido mesmo presos para interrogatório. Uma exibição pública de coragem e de convicção que marcava a sua personalidade.