Depois de dias de negociações, os dirigentes do Movimento 5 Estrelas (M5S) e da Liga foram ao Palácio do Quirinal pedir ao presidente da República, Sergio Mattarella, mais tempo para negociar um governo de coligação. A uma semana de declarações otimistas seguiu-se agora a prudência dos líderes dos dois partidos, Luigi Di Maio, do M5S, e Matteo Salvini, da Liga (antiga Liga Norte), à saída do palácio presidencial.
“Há pressões e prazos que nos pressionam a apressar as coisas, mas nós estamos a elaborar um programa de governo para cinco anos e não um contrato de aluguer [de um apartamento]”, fez notar Luigi Di Maio, acrescentando que, em relação ao nome apontado para liderar o governo, em nome dos dois partidos, concordaram “não o discutir em público”.
Já o líder da extrema-direita fez notar que estas conversações não seguem a agenda eleitoral do seu partido: “Se atuássemos pelo que dizem as sondagens, a Liga seria a primeira a querer a repetição das eleições”, afirmou Salvini, que explicou as linhas vermelhas do seu partido nesta negociação: “Ou conseguimos formar um governo que rediscuta os nossos compromissos com a Europa, ou todo este processo não passará de um sonho que se esfumará.”
O esboço assustador
Entretanto, o site Huffington Post Italia revelou um esboço de uma versão do acordo de governo entre os dois partidos antissistema. Nesse documento de 39 páginas preveem-se três medidas que fizeram soar os alarmes em Bruxelas: um perdão da dívida italiana, por parte do Banco Central Europeu, que atingiria os 250 mil milhões de euros; a criação de um mecanismo para sair do euro; e o fim das sanções à Rússia. Os dois partidos confirmaram a autoria do documento, fazendo notar apenas que se tratava de uma versão inicial e que muitas das coisas que dele constavam tinham sido alteradas e matizadas, nomeadamente a criação de um mecanismo para sair do euro.
“O contrato de governo publicado pelo Huffington Post é uma versão antiga que foi amplamente modificada no decurso das últimas reuniões. A versão atual não corresponde a essa. Muitos conteúdos mudaram radicalmente. Sobre o euro, por exemplo, as partes decidiram não colocar à discussão a permanência na moeda única. A versão publicada não é fiel à atual”, afirmam fontes dos negociadores dos dois partidos, citadas pelo “El País”, que comenta que, de qualquer forma, este esboço não data de há cinco anos, mas de há dois dias.
Sobre o “perdão” de 250 mil milhões de euros que o BCE teria de dar à Itália, responsáveis do M5S vêm dizer que é um apenas um perdão contabilístico e que pretendem que a dívida ao BCE não conte para as estatísticas sobre a dívida pública global e o défice público. Recorde–se que a dívida pública italiana está orçada em mais de 130% do PIB, muito longe do acordado no Pacto de Estabilidade, em que só pode atingir 60% do PIB – algo que é impossível que países como Itália e Portugal possam atingir nas próximas décadas, sem uma reestruturação profunda das dívidas soberanas. O BCE detêm atualmente cerca de 368 mil milhões de euros da dívida pública italiana, 16% do total. De qualquer forma, estas notícias tiveram uma reação dos mercados: em poucas horas, os juros da dívida italiana subiram de 1,87% para 1,95%.
Segundo garante o diário francês “Le Monde”, caso os mercados desconfiem da capacidade da Itália para pagar a sua dívida, os investidores poderiam começar a vender os títulos da dívida italiana, fazendo subir as taxas de juro de empréstimos a Itália para níveis que, se atingissem os de 2012, poriam em crise a União Europeia, dado a Itália ser a terceira economia mais forte dos 28.
Rússia como parceiro económico
Outro ponto que deve assustar Bruxelas e Washington é a passagem do esboço do programa de governo que fala da alteração da política em relação à Rússia. Tanto o M5S como a Liga têm participado em inúmeros encontros com dirigentes de Moscovo e são considerados partidos que contam com algum apoio do Kremlin. Os dois partidos defendem o fim das sanções económicas à Rússia e que esta seja vista “não como uma ameaça, mas como um parceiro económico e comercial”. O documento defende que Moscovo tem de ser considerado um “parceiro estratégico” para a resolução dos conflitos na Síria, Iémen e Líbia.
Além deste acordo há vários pontos de fricção que os dois partidos ainda não foram capazes de limar. O mais importante é o nome do primeiro-ministro. É difícil que qualquer um dos partidos aceite o nome do líder do outro como chefe do executivo. E ambos não aceitam a sugestão do presidente de Itália de procurar um homem com um “perfil técnico”, porque lhes lembra o governo imposto pela UE, de Mario Monti. O segundo ponto de discordância é a UE: embora o M5S tenha sido fortemente antieuropeísta, quer neste momento uma política prudente a esse respeito, dizendo que vai cumprir os compromissos internacionais com os países da UE, algo com que a Liga não está de acordo, sobretudo em relação ao controlo de fronteiras e à expulsão de imigrantes. O partido de extrema-direita pretende ter o controlo das pastas do Interior e da Imigração, levando a cabo um programa de expulsão de centenas de milhares de imigrantes.
Além disso, ainda há prioridades diferenciadas em relação à política económica que decorrem das bases eleitorais distintas dos dois partidos: o M5S é hegemónico nas regiões do sul de Itália, as mais pobres; e a Liga, antigo partido independentista do norte [Padânia], é maioritário no norte de Itália. Dessa forma, as promessas eleitorais dos dois partidos, que segundo o “Corriere della Serra” custariam mais de 78 mil milhões de euros, são distintas: a Liga pretende a instauração de um imposto fixo que não exceda os 15%; e o M5S, a aprovação de um subsídio de 780 euros para toda a gente que tenha perdido o trabalho.
Caso estas desavenças sejam sanadas, o programa assinado pelos dois partidos ainda será referendado, por internet, pelos militantes do Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo.
Se não houver avanços na próxima semana, é muito provável que Itália, que foi às urnas a 4 de março, volte outra vez a ser chamada a eleger um novo parlamento, sem garantias, segundo as sondagens, de que se constitua uma maioria que permita a algum dos três blocos dominantes (Partido Democrático, de centro-esquerda, Movimento 5 Estrelas e o centro-direita com a Liga, Força Itália e Irmãos Italianos) formar um governo. A instabilidade política italiana parece que veio para ficar.