Lula. Duas fotografias no mesmo sítio com 40 anos de diferença

Lula. Duas fotografias no mesmo sítio com 40 anos de diferença


Uma viagem às origens para sublinhar a tentativa de Lula conseguir, na cadeia, a unidade da esquerda brasileira


A fotografia que simboliza estes dias foi tirada por Francisco Proner Ramos: vê-se Lula no meio de uma multidão que se movimenta para ele, sendo carregado aos ombros. Está a poucas horas de se entregar à polícia federal para ir para uma cela onde pode passar os próximos 12 anos. A poucos metros dele, o metalúrgico aposentado António Carlos dos Santos, de 71 anos, segura um retrato com uma foto em que aparece ao lado de Lula. Santos chora. “É bom chorar que passa.” Um jornalista pergunta-lhe: o que sentia e o que representava Lula para ele? “Para mim ou para o povo? Para mim representa muito, mas para os pobres, os que vivem na miséria, representa muito mais. [A prisão] é a coisa mais ruim que já vi no mundo”, disse.

Esta cerimónia é uma tentativa de que, com a sua prisão, a esquerda brasileira se una numa candidatura comum. Ao seu lado no palanque, o ex-presidente beija e abraça o candidato do PSOL, Boulos, e a do PCdoB, Manuela d’Ávila.

Lula foi o coreógrafo da sua própria entrega. Fê-lo na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, no ABC de São Paulo (São Bernardo do Campo), em que se sindicalizou em 1968, e no mesmo palanque em que irrompeu na política brasileira ao dirigir as greves de metalúrgicos em 1978.

Comecemos nessa data primeira, imortalizada num filme de Leon Hirszman. Numa cena extraordinária desse “ABC da Greve”, os operários ocupam a praça à espera que fale o líder. A maior parte das intervenções anteriores apelam a que se recuse o acordo que permite que as direções sindicais voltem a ser legalizadas em troca do retorno ao trabalho. Lula vai discursar e mudar a opinião da multidão de 80 mil pessoas. “Ele está lá, mas a massa não o vê. Surgirá, todos sabem, no terraço elevado que dá para a praça, espécie de parlatório improvisado onde outros sindicalistas já discursam”, relembra João Moreira Salles num artigo na revista “piauí”. “Lula aguarda a hora. Está recuado, a uns dez passos do guarda-corpo, invisível à multidão. A câmara de Adrian Cooper o mostra de corpo inteiro. Veste uma camisa estampada de manga comprida, e fuma. Tenso, porque seria irresponsável não estar, e determinado, porque o desenlace dependerá dele, parece ter plena consciência de que este é um momento histórico do qual é ele o protagonista. (…) Aos 34 anos, Lula exala autoridade, não hierarquia. Num gesto que só pode existir entre iguais, alguém puxa sua mão e acende um cigarro no dele. Lula nem olha. Mantém os olhos fixos na direção de onde chega o rumor da multidão. Todos se agitam à volta dele, satélites sob efeito de seu campo gravitacional. Lula, ele próprio, não sai do lugar. Embora cercado de companheiros, nessa hora grave é um homem sozinho. Nada chama mais atenção do que isso.”

Quarenta anos depois, o homem que deixou a presidência com 85% de popularidade cai enredado na corrupção do Brasil. Tirou 40 milhões da pobreza, mas não foi capaz de fazer a política fora da corrupção brasileira. É preso num processo em que não se esgotaram os recursos, por um juiz que o tomou como objetivo e caça. Num país em que grande parte da classe média passou a odiá-lo. Lula foi eleito pelo voto da classe média, para passar a ser reeleito pelos pobres.

Ao ser transportado no avião para Curitiba, onde ficará preso, escuta-se uma voz não identificada no avião da Força Aérea Brasileira, “manda esse lixo janela abaixo”, diálogo em que se ouve também “leve e não traz nunca mais”. Um diálogo confirmado em comunicado pela Força Aérea do Brasil, que confirma que não foram os controladores aéreos, mas não se será aberto um processo.

No domingo à noite, na sua cela, Lula assistiu ao jogo da sua equipa, o Corinthians. “Da última vez que eu o vi, a equipa dele estava a ganhar um a zero. Então acredito que o ex-presidente deve estar muito feliz”, disse um polícia federal à BBC Brasil.