A caixa


No meio das minhas arrumações deparei-me com uma caixa no fundo de um armário. É de cartão e suficientemente grande para conter papéis, recortes de jornais e de revistas, jornais inteiros e revistas inteiras também, e outras coisas que quem guarda sabe que segredos se guardam com elas. Cartas, muitas cartas, com envelopes e selos,…


No meio das minhas arrumações deparei-me com uma caixa no fundo de um armário. É de cartão e suficientemente grande para conter papéis, recortes de jornais e de revistas, jornais inteiros e revistas inteiras também, e outras coisas que quem guarda sabe que segredos se guardam com elas.

Cartas, muitas cartas, com envelopes e selos, cartas que recebi quando adolescente, de uma época em que não havia email nem redes sociais; cartas que podemos ler anos mais tarde, reviver as trocas de ideias, as impressões, as certezas, as promessas, cartas escritas e lidas por quem tudo esperava nesta vida e cujo conteúdo mais ninguém sabe, mais ninguém pode conhecer que não nós – neste caso, eu. 

Revistas d’“O Independente” quando “O Independente” era “O Independente”. Uma revista do “Expresso” com o prof. Agostinho da Silva, crónicas do MEC, uma do Vasco Pulido Valente, de 13 de outubro de 1989, com o sugestivo título “O Problema Alemão”, uma edição comemorativa do n.o 1000 do “Expresso” com as mil figuras do séc. xx. Esta regressou ao lugar que merece na estante. 

Recortes de artigos sobre BD franco-belga, não tivesse eu cerca de 700 álbuns. Mapas de passeios feitos no passado, de carro, de bicicleta ou a pé. E muitos outros segredos que ficam para mim. Olho para o conteúdo da caixa e pergunto-me o que pensará o meu filho de mim quando vir os recortes do que foi a minha vida antes de ele nascer. Os nossos pais e avós, antes de nós existirmos, são um mistério que a informação adensa ainda mais. 

Porque a caixa, esta caixa, a caixa que cada um de nós pode ter arrumada no fundo de qualquer armário é nossa, de mais ninguém, esconde-se, é o nosso retrato, do que fomos e do que quisemos ser. Os nossos sonhos estão lá. Olho para dentro da caixa, para a privacidade que guarda neste tempo em que a vida é devassada pelas redes sociais, em que nos expomos e aos que nos são mais queridos (até as mensagens, as antigas cartas, ficam na posse de alguém virtualmente virtuoso, porque incógnito, perdidas para não mais serem lidas, recordadas, sentidas), e revejo o poder que tínhamos sobre nós. 

Com as redes sociais, perdemos a privacidade, o direito ao que é íntimo, pessoal. Mas perdemos também a possibilidade de retomar a posse do que vivemos, de voltar ao que fomos; de recordar. Que é também acordar. Andamos a dormir porque não temos segredos; já não guardamos caixas dentro dos nossos armários.

Advogado 

Escreve à quinta-feira