Nos últimos 60 anos, o direito internacional público foi palco de constantes mudanças na sua ação e na sua missão de orientador jurídico da relação inter-Estados. Hoje é claro para todos que o direito internacional já não se confina à sua função reguladora nas relações interestaduais; hoje, ele é simultaneamente regulador e potenciador das relações humanas e criador de direito no que tange às aspirações globais da comunidade em relação ao indivíduo e deste em relação à comunidade.
Há uma interdependência insofismável entre ambos, na medida em que um não existe sem o outro, mas também no sentido de os interesses globais não se sobreporem abruptamente aos direitos individuais, colocando em causa a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos. A sílaba tónica do direito internacional público mudou nos últimos anos. Há hoje uma preocupação central da sua ação. Uma neocentralidade que serve de batuta jurídica e que se consome com os direitos das pessoas, com a sua proteção num sentimento comum a toda a comunidade internacional.
As fases mais relevantes do direito internacional público moderno, em concreto no seu braço humanitário, vão desde a Convenção de Genebra de 1949, que institui a proteção das vítimas de guerra, militares ou civis, limitando o uso da força, onde ganha forma jurídica e teórica a contemplação do DIH como um ramo imprescindível do direito internacional, aos seus Protocolos Adicionais, em que se aprofunda o conceito de “humanidade” e a obrigatoriedade de determinadas proteções, sobretudo no que respeita a atentados contra a vida, saúde, bem-estar, dignidade da pessoa ou tratamentos humilhantes de civis, e a recusa de qualquer tipo de discriminação, passando evidentemente pelo Direito de Nova Iorque, a sua terceira fase, onde se intensifica o labor da ONU na proteção aos direitos humanos como forma de resposta à multiplicidade e complexidade de novos fenómenos de guerra cujas vítimas civis se adensam, com violações grosseiras de direitos humanos.
Por fim, a quarta fase, que interrompe o paradigma do direito internacional e que emerge do desafio de Kofi Annan a um novo conceito de soberania assente numa dupla responsabilidade dos Estados (interna e externa), que introduz um novo conceito de intervenção e um certo mea culpa da comunidade internacional pelo seu falhanço em conflitos como na Bósnia, no Ruanda ou em Timor-Leste. A complexidade e multiplicidade de fenómenos de guerra cujas manifestações fogem aos cânones tradicionais e não se limitam às ações tradicionais de autodefesa e contenção das ameaças à paz levaram a que a comunidade internacional encontrasse forma de responder às atrocidades cometidas contra as pessoas. O desafio de Kofi Annan, que estabeleceu uma neocentralidade da ação da comunidade internacional, ainda que com os percalços típicos de quem ousa a mudança de paradigma, tem ganho terreno dia após dia na consciência internacional. É hoje cada vez mais inquestionável que a dupla dimensão de soberania dos Estados exorta a que as fronteiras de ação, da nacionalidade, se confundam com a mera existência de povos. A “Aldeia Global” de McLuhan, aliada aos riscos globais de Beck, ditou que a própria comunidade interpretasse a sua soberania de acordo com a nova modernidade.
A responsabilidade de protegermos, enquanto Estados, e de sermos protegidos, enquanto pessoas, obrigou a que o direito internacional público se reorganizasse e conduzisse a sua alma mater à pessoa humana e ao incansável respeito e proteção dos seus mais ínfimos direitos. Trata-se de uma obrigação moral perante os dilemas desta nova modernidade. Uma obrigação moral que tarda em assumir-se na sua plenitude, mesmo com as más experiências passadas na resolução de graves conflitos, mas que merece esse estatuto, assim como a ponderação de alargamento do seu escopo a direitos humanos de amplitude conexa.
Infelizmente para todos nós, os direitos humanos, o seu respeito e a sua proteção nunca estiveram tanto em causa como hoje. O do terror do jihadismo radical, a previsível tensão crescente no conflito israelo-palestiniano, fruto de uma inexplicável ingerência do presidente norte-americano, a miséria imposta ao povo venezuelano, a ameaça nuclear da Coreia do Norte, passando pela fome, pela escassez de recursos, pela proteção do ambiente, pelo terrorismo industrial e económico ou pela invasão tecnológica da nossa privacidade, são argumentos suficientes para nos fazerem refletir. A celebração do Dia Internacional dos Direitos Humanos, mais do que um motivo de regozijo pela sua edificação jurídica, é um motivo de preocupação e alerta, porque muito está por cumprir.
Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário, escreve à segunda-feira