Das polícias


As delimitações conceptuais da ordem e tranquilidade públicas não são mais as mesmas, assim como os valores morais e éticos indispensáveis ao bom funcionamento da sociedade


A consciencialização de que o exercício dos mais diversos direitos fundamentais apenas se manifesta de forma plena se o Estado prover condições de segurança pessoal não apenas é um fito jusfundamental de mútua dependência como um valor decisivo da nossa organização coletiva democrática merecedor de expressa abordagem nos diversos institutos jurídicos nacionais e internacionais.

A evolução conceptual da segurança, e da segurança interna em particular, assume uma relação de proporcionalidade direta com a própria evolução da sociedade e, de uma forma geral, dos diversos quadros interativos e produtores das mais diversas normas que classificam e caracterizam um mundo em mudança. As vicissitudes de um conceito de segurança interna, produzido num contexto de afirmação do Estado social decorrente da ii Guerra Mundial, são hoje imensas, tornando a sua abordagem e estudo permeáveis às realidades dinâmicas e situacionais em que nos encontramos.

Os efeitos da globalização, da crescente multiculturalidade como pilar transformador das sociedades, das neoameaças como o terrorismo ou a criminalidade transnacional organizada, das preocupações ambientais e alimentares, da tecnologia e a sua abertura de portas a um cibercrime, variadas vezes sem rosto, invasivo da privacidade dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais, ou das intensíssimas crises migratórias constituem permanentes desafios aos Estados na sua conceção e abordagem “securitária”. Pior, são elementos exuberantes na criação de uma sensação de insegurança social a que apenas forças e serviços de segurança capazes e munidos de meios podem acudir. As diferenças entre segurança interna e segurança externa são cada vez mais separadas por uma linha ténue face à complexidade e aos efeitos da supressão fronteiriça tradicional, conjugada com as sensações de uma criminalidade global, mas de absoluta incidência local. É à luz destes efeitos e das consequências que eles provocam que os paradigmas de segurança interna devem ser repensados.

As delimitações conceptuais de ordem e tranquilidade públicas não são mais as mesmas, assim como os valores morais, éticos e sociais indispensáveis ao bom funcionamento da sociedade. E também não o são as tradicionais limitações espaciais de intervenção das forças e serviços de segurança. Hoje há uma evidente dimensão externa da atuação interna da segurança – quer seja ela revestida de uma juridicidade formal e orgânica, quer seja ela produto do sentimento de proteção social, radicando, por conseguinte, a ideia de segurança no direito, não apenas hermeticamente constitucional, mas sobretudo multinacional, revestindo inquestionavelmente a sua dimensão positiva (o direito à proteção dos poderes públicos face às agressões de outrem) com uma latitude verdadeiramente ampla. Deste modo, a insegurança não pode ser vista como um problema exclusivo da atuação policial. Antes pelo contrário. A insegurança é mormente um problema de sociedade e de confronto civilizacional e que apenas pode ser combatido prevenindo causa, reprimindo consequências e – hoje igualmente importante – conjugando esforços e meios, num frenesim interpretativo do conjunto de novos desafios face a esta era caracterizadora dos cânones do Estado pós-social e das vicissitudes que o caracterizam.

Na última semana, a atuação policial teve como consequência a lamentável morte de um civil, uma senhora que acompanhava um homem que, por circunstancias ainda por apurar, não respeitou a abordagem de paragem da polícia e decidiu fugir, tendo alegadamente tentado atropelar dois polícias. A onda de indignação, compreensível sempre que resulta da atuação de poderes públicos, manifestou-se de forma audível. Infelizmente não tão audível quanto as já 380 agressões deste ano aos membros das nossas forças de segurança. Não tão audível quanto as várias mortes dos homens e mulheres que dão a vida pela nossa segurança coletiva nas condições precárias que todos conhecemos e que insistimos em não reclamar o seu fim. E isso é bastante representativo do estado a que chegámos, infelizmente.

 

Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário, Escreve à segunda-feira