No meio do debacle evidenciado pela gestão das autoridades espanholas (judiciais e politicas) à questão do referendo da Catalunha é inquestionável dizer-se que, no plano político, é uma machadada à identidade unitária espanhola, ainda que a sua Constituição preveja a sua indissolúvel unidade no respeito pela diferentes autonomias e nacionalidades que compõem o Estado espanhol.
É inquestionável que, no plano jurídico, a normal realização de um referendo na Catalunha fere a legalidade constitucional do Estado espanhol. A realização referendária é uma competência de convocação exclusiva do Rei sob proposta do presidente do governo previamente consultado o Congresso dos Deputados. Aliás o próprio Tribunal Constitucional espanhol não apenas reconhece isso mesmo como suspende as recentes leis criadas pelo governo catalão – as chamadas leis de transição – que apenas a inabilidade politica justifica a sua criação, pois, para além de incompetência jurídica, ninguém compreende que existam leis confirmadoras de uma Republica da Catalunha sem sequer se ter realizado o referendo.
A intenção do povo catalão é, sem margem para dúvidas, no plano político e iminentemente jurídico, a de uma rutura com o estado constitucional espanhol não constituindo propriamente uma realidade até aqui desconhecida no quadro territorial e soberano europeu. A história da Europa é profusa no surgimento de novos Estados que emanam, quase todos de resto, de profundas ruturas constitucionais e que, hoje, merecem não só reconhecimento da comunidade internacional como igualdade soberana de direitos. Foi assim, a titulo de exemplo, com a independência das repúblicas do regime soviético e com a república da Jugoslávia de onde saíram Estados nunca antes constituídos. Com exceção das transitoriedades de regime políticos constitucionais, ditaduras para democracias por exemplo, as ruturas constitucionais dão-se desta forma. Com a manifestação de um povo a reclamar, e a decretar, a sua independência face a outro estado soberano.
A novidade está evidentemente nas circunstâncias e num juízo de prognose que deve irremediavelmente ser feito. Dispõe a Catalunha das mesmas circunstâncias que outros Estados recentes, falo por exemplo da Ucrânia, dos estados bálticos, da Croácia, em relação ao seu soberano? Evidentemente que não. A autonomia administrativa da Catalunha nunca foi posta em causa pelo Estado espanhol como o seu povo nunca foi amordaçado e privado do exercício de direitos fundamentais como foram os povos da ex-URSS e da ex-Jugoslávia.
Portanto pode por isso o povo catalão num laivo auto-determinista impor uma rutura desta natureza? Não pode. Apenas ocorrer uma secessão em resultado de uma consulta popular vinculativa a toda a população espanhola. De outro modo, pode ser ignorada a inabilidade política com o que o governo espanhol lidou com esta situação amplamente pré-anunciada? Também não. O mesmo se aplica ao sistema judicial que mandatou as forças de segurança para impedirem a todo o custo a realização da ilicitude eleitoral. E é aqui que reside o principal problema. As imagens que nos chegam da Catalunha (à hora que escrevo, mas que inevitavelmente preencherão também o dia de hoje) seriam em circunstâncias normais uma infeliz reminiscência de um passado não tão distante quanto isso, pois é terrível sempre que o Estado exerce a uma força musculada sobre quem pretende manifestar-se pela expressão popular, o voto. A predisposição do ato não se dá em circunstâncias normais. Dá-se num amontoado de ilegalidades. Ainda assim ficará o sentimento popular. Um sentimento de incompreensão e repulsa pelo numero de feridos que resultam do cumprimento da legalidade. Lembro-me da forma diplomática como o Reino Unido lidou com a Escócia aquando do referendo em 2014 para a sua independência. O sufrágio realizou-se por acordo. Os escoceses decidiram pela unidade do Reino. Vejo a forma violenta como se está a responder aos catalães e não tenho a certeza se isso não contribuirá para uma determinação ainda maior do seu povo na desagregação do estado espanhol, mas há uma coisa de que estou certo, em democracias consolidadas a força musculada de um estado contra pessoas com boletins de votos na mão é sempre um mau sinal.
Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário
Escreve à segunda-feira