Não há de errado com a ideia de descentralizar competências do Estado e aproximar o poder público dos cidadãos. No entanto, este princípio não pode ser traduzido numa fórmula cega aplicada a todas as funções do Estado, sob pena de pormos em causa o acesso universal a direitos que nos são conferidos, não enquanto munícipes, mas, enquanto cidadãos e cidadãs deste país.
O projeto de descentralização de competências que o Governo do Partido Socialista apresentou na Assembleia da República, e que espera vir a aprovar com os votos da direita no pós autárquicas, comete esse erro em várias áreas e, em particular, na educação.
Uma das primeiras perguntas que devemos fazer antes de transferir competências é “para quem?”. Qual é o destinatário com vocação, capacidade funcional, saber e autoridade para desempenhar aqueles poderes com respeito pelos “princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública”, como diz a Constituição?
Se a resposta a esta pergunta estiver errada, tudo o resto é um perigoso absurdo. Exemplo disso foram todas as tentativas de municipalização da educação nas suas várias vagas ao longo do tempo, fosse na versão mais radical apresentada pelo PSD ou no mais recente projeto apresentado pelo Governo.
Não se trata aqui de discutir a necessidade de combater o centralismo burocrático da 5 de outubro, coisa aliás reconhecida pela generalidade dos profissionais que gastam os seus dias a preencher “plataformas”. O problema é que, mais uma vez, uma tentativa de descentralização de competências passa ao lado – se não por cima – da autonomia escolas.
Ao não compreender que o primeiro destinatário da descentralização de competências na Educação são as Escolas, o Governo desilude as promessas de valorização da Escola Pública. Pior, ignora que primeiro fundamento para a organização do sistema educativo deve ser o critério pedagógico.
Em consequência, a proposta de municipalização da Educação falha os principais objetivos de progresso da Escola Pública e cria uma dupla tutela que lhe servirá de lastro. Não a democratiza, pelo contrário, deixa-a ainda mais permeável a ser palco de disputas partidárias e instrumento de clientelas locais. Não contribui para promover a igualdade e a inclusão porque fortifica as barreiras entre as diferentes e desiguais realidades do país. Não contribui para uma educação de qualidade porque aprofunda a falta de autonomia das escolas para fazer escolhas com impacto pedagógico e desvaloriza os órgãos pedagógicos que têm vocação para o fazer.
Isto não significa arredar a comunidade local da responsabilidade global pela educação, nem desresponsabilizar as autarquias pela inclusão e sucesso educativos. Contribuiria muito mais para esse efeito uma profunda democratização do modelo de gestão de escolas do que a tentativa – pelo menos numa autarquia, bem sucedida – de colocar o gabinete do Vereador da educação dentro da Escola.
Nas suas experiências intermitentes e bastante confusas, todas as experiências de dupla tutela têm criado situações tão caricatas como a rotatividade de assistentes operacionais entre o canil e a escola e Presidentes de Câmara que querem definir o horário dos funcionários dos Agrupamentos.
Todos estes riscos são suficientes para exigir ao Governo que arrepie caminho, mas nada é mais grave do que o perigo de atomização do sistema público de educação. Um sistema universalista oferece a um aluno em Vila Real ou em Viana do Alentejo as mesmas oportunidades e o mesmo infinito na linha do horizonte.
À beira de eleições autárquicas e do início do ano letivo, convém reforçar fileiras. São imensos os itens da lista de condições necessárias para garantir uma educação de qualidade, progressista e inclusiva. Tenho a certeza de que a municipalização não é uma delas.
Deputada do Bloco de Esquerda