A morte do jornalismo é anterior a si mesma


Numa altura em que há uma crise das mediações e do modelo económico do jornalismo, há dois livros que nos permitem analisar as vivências e a arqueologia de uma profissão no Brasil, de modo a pensar num futuro diferente


Aproximou-se um grupo de oficiais da Aeronáutica, todos fardados, e com uma mesura ofereceu-lhes uma taça. Um deles, alto e louro, tomou uma taça nas mãos e perguntou-lhe delicadamente:

– O senhor sabe quem eu sou?

Ele respondeu com um sorriso:

– Não, não sei. Quem é o senhor?

O jovem oficial respondeu de cara fechada:

– Eu sou o tenente Paulo Bockel, seu filho da puta! Sou o irmão do Clito Bockel!

Nem acabou de falar e, num gesto instantâneo que sem dúvida ensaiara, com a mão esquerda jogou a taça de champanhe nos olhos do jornalista e com a direita aplicou-lhe um violento murro no olho esquerdo. Apesar da sua resistência de remador, Chateaubriand percebeu instintivamente que o homem que o agredia era pelo menos 20 centímetros maior que ele. Largou a bandeja com garrafa e taças no ar, enfiou a mão na cintura e tirou o revolver, que já saiu do coldre disparando.” Assim reza a página 401 do livro “Chatô: o rei do Brasil”, biografia do jornalista e dono de grupo de comunicação Assis Chateaubriand, escrita pelo jornalista Fernando Morais. Chatô falha o oficial mas atinge um ator, perfura a batina de um padre e escapa por centímetros a acertar num governante. O tiroteio no meio de uma cerimónia de entrega de aviões à força aérea brasileira em que o magnata da imprensa ganhava milhões a desviar verbas, deve-se ao facto de o oficial ser irmão de um homem que tinha fugido com a amante de Chatô. E por causa disso era repetidamente apelidado nos jornais de Chatô como “veado” e “chulo”. Depois do tiroteio, nada acontece a Assis Chateaubriand. O livro de Fernando Morais é um prodigioso retrato não só do alegado descendente dos índios que comeram o bispo Pero Fernandes de Sardinha (Chatô), no glorioso dia de 15 de junho de 1556, mas também do processo de constituição dos grupos de comunicação social do Brasil, semelhante a muitos cantos do planeta: uma imprensa diretamente ligada a interesses pessoais, económicos e financeiros.

Fernando Morais é um genial biógrafo politicamente alinhado à esquerda. Mas a genialidade está democraticamente distribuída: para demonstrar que na escrita, mais que a posição política do autor, está a sua capacidade de revelar um horizonte através da sua arte temos Nelson Rodrigues, jornalista, escritor, dramaturgo e apoiante da ditadura militar no Brasil . O “Anjo Pornográfico”, como o próprio se chamou – “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)” – e foi usado como título da sua biografia escrita por Ruy de Castro, tem em “A Menina Sem Estrela” um livro em que ecoam as suas memórias com um imenso brilhantismo e sensibilidade.

Uma vida no jornalismo desde os 13 anos, em que vê morrer o irmão pelas balas de uma leitora ofendida.

“Sempre achei e, o que é pior, ainda acho que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver, eis a verdade, não devemos sobreviver. Vida continua, mentira. Morremos com o ser amado. E se o outro ser amado morre, novamente morremos. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver.”

O pai de Nelson Rodrigues, Mário Rodrigues, sobrevive só dois meses ao assassinato do filho. Os jornais desaparecem como apareceram.

“Ninguém queria empregar os filhos de Mário Rodrigues. Em vida de meu pai e enquanto circulou a ‘Crítica’, tínhamos amigos por toda a parte. Eu era tratado, desde os 13 anos, como um pequeno génio. Mas morto Mário Rodrigues e morta a “Crítica”, os rapapés sumiram até ao último vestígio. Ninguém era amigo.”

Depois de estar um ano a trabalhar sem ser pago no “Globo”, Nelson Rodrigues começa a trabalhar e anota: “Eu aprendi que sentimentos fortes, como a ira, o ódio, a inveja, exigem um salário”.

A Menina sem Estrela
Nelson Rodrigues
Preço: €17,91

Chatô: o rei do Brasil
Fernando Morais
Companhia das Letras

 

Frases na rede

https://www.mediapart.fr/

Mediapart é uma experiência de contracorrente na comunicação social. Um site em que grande parte dos conteúdos são pagos e que aposta na investigação e no jornalismo aprofundado. Quando outros tentaram combater a crise no modelo de negócio da comunicação social pelo embaratecimento dos custos – cortes nas condições de produção das matérias jornalísticas e nos salários –, o Mediapart, constituído por jornalistas maioritariamente saídos do “Le Monde”, apostou numa estratégia diferenciadora: para o jornalismo sobreviver é preciso dar maior valor às notícias e aos conteúdos jornalísticos, de modo a que não se confundam com as centenas de posts divulgados nas redes sociais e feitos por não jornalistas, ou com meras réplicas de notícias de agências repetidas milhões de vezes sem terem nada de novo.

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Numa altura em que há uma crise das mediações e do modelo económico do jornalismo, há dois livros que nos permitem analisar as vivências e a arqueologia de uma profissão no Brasil, de modo a pensar num futuro diferente


Aproximou-se um grupo de oficiais da Aeronáutica, todos fardados, e com uma mesura ofereceu-lhes uma taça. Um deles, alto e louro, tomou uma taça nas mãos e perguntou-lhe delicadamente:

– O senhor sabe quem eu sou?

Ele respondeu com um sorriso:

– Não, não sei. Quem é o senhor?

O jovem oficial respondeu de cara fechada:

– Eu sou o tenente Paulo Bockel, seu filho da puta! Sou o irmão do Clito Bockel!

Nem acabou de falar e, num gesto instantâneo que sem dúvida ensaiara, com a mão esquerda jogou a taça de champanhe nos olhos do jornalista e com a direita aplicou-lhe um violento murro no olho esquerdo. Apesar da sua resistência de remador, Chateaubriand percebeu instintivamente que o homem que o agredia era pelo menos 20 centímetros maior que ele. Largou a bandeja com garrafa e taças no ar, enfiou a mão na cintura e tirou o revolver, que já saiu do coldre disparando.” Assim reza a página 401 do livro “Chatô: o rei do Brasil”, biografia do jornalista e dono de grupo de comunicação Assis Chateaubriand, escrita pelo jornalista Fernando Morais. Chatô falha o oficial mas atinge um ator, perfura a batina de um padre e escapa por centímetros a acertar num governante. O tiroteio no meio de uma cerimónia de entrega de aviões à força aérea brasileira em que o magnata da imprensa ganhava milhões a desviar verbas, deve-se ao facto de o oficial ser irmão de um homem que tinha fugido com a amante de Chatô. E por causa disso era repetidamente apelidado nos jornais de Chatô como “veado” e “chulo”. Depois do tiroteio, nada acontece a Assis Chateaubriand. O livro de Fernando Morais é um prodigioso retrato não só do alegado descendente dos índios que comeram o bispo Pero Fernandes de Sardinha (Chatô), no glorioso dia de 15 de junho de 1556, mas também do processo de constituição dos grupos de comunicação social do Brasil, semelhante a muitos cantos do planeta: uma imprensa diretamente ligada a interesses pessoais, económicos e financeiros.

Fernando Morais é um genial biógrafo politicamente alinhado à esquerda. Mas a genialidade está democraticamente distribuída: para demonstrar que na escrita, mais que a posição política do autor, está a sua capacidade de revelar um horizonte através da sua arte temos Nelson Rodrigues, jornalista, escritor, dramaturgo e apoiante da ditadura militar no Brasil . O “Anjo Pornográfico”, como o próprio se chamou – “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)” – e foi usado como título da sua biografia escrita por Ruy de Castro, tem em “A Menina Sem Estrela” um livro em que ecoam as suas memórias com um imenso brilhantismo e sensibilidade.

Uma vida no jornalismo desde os 13 anos, em que vê morrer o irmão pelas balas de uma leitora ofendida.

“Sempre achei e, o que é pior, ainda acho que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver, eis a verdade, não devemos sobreviver. Vida continua, mentira. Morremos com o ser amado. E se o outro ser amado morre, novamente morremos. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver.”

O pai de Nelson Rodrigues, Mário Rodrigues, sobrevive só dois meses ao assassinato do filho. Os jornais desaparecem como apareceram.

“Ninguém queria empregar os filhos de Mário Rodrigues. Em vida de meu pai e enquanto circulou a ‘Crítica’, tínhamos amigos por toda a parte. Eu era tratado, desde os 13 anos, como um pequeno génio. Mas morto Mário Rodrigues e morta a “Crítica”, os rapapés sumiram até ao último vestígio. Ninguém era amigo.”

Depois de estar um ano a trabalhar sem ser pago no “Globo”, Nelson Rodrigues começa a trabalhar e anota: “Eu aprendi que sentimentos fortes, como a ira, o ódio, a inveja, exigem um salário”.

A Menina sem Estrela
Nelson Rodrigues
Preço: €17,91

Chatô: o rei do Brasil
Fernando Morais
Companhia das Letras

 

Frases na rede

https://www.mediapart.fr/

Mediapart é uma experiência de contracorrente na comunicação social. Um site em que grande parte dos conteúdos são pagos e que aposta na investigação e no jornalismo aprofundado. Quando outros tentaram combater a crise no modelo de negócio da comunicação social pelo embaratecimento dos custos – cortes nas condições de produção das matérias jornalísticas e nos salários –, o Mediapart, constituído por jornalistas maioritariamente saídos do “Le Monde”, apostou numa estratégia diferenciadora: para o jornalismo sobreviver é preciso dar maior valor às notícias e aos conteúdos jornalísticos, de modo a que não se confundam com as centenas de posts divulgados nas redes sociais e feitos por não jornalistas, ou com meras réplicas de notícias de agências repetidas milhões de vezes sem terem nada de novo.

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