Pelé. O rapaz com o nome errado

Pelé. O rapaz com o nome errado


Outubro é o mês do Rei. Despede-se dos seus 75 anos e fez o seu primeiro jogo em 1956 – era uma criança à beira de fazer 16.


João Ramos do Nascimento era um homem feliz. Em Três Corações, Minas Gerais, a sua mulher, Celeste, dera à luz um rapaz. E o município dera luz aos seus habitantes. Estávamos em 1940. 23 de Outubro de 1940. João, que era mais conhecido por Dondinho, quis homenagear o inventor da lâmpada, Thomas Alva Edison e deu o seu nome ao filho recém-nascido: Edison Arantes do Nascimento. «Na minha certidão de nascimento, o nome está escrito com um i, mas é um erro», escreveu Pelé na sua autobiografia. «Para meu aborrecimento, o i aparece em documentos oficiais e pessoais. E também registaram mal a data: puseram 21 de Outubro e eu nasci a 23».

Edson pode ter nascido errado, mas Pelé não. E antes de Pelé foi Dico, Gasolina e Bilé, e afinava quando lhe chamavam Pelé. «Não gostava. Queria ser chamado de Edson. Uma vez cheguei a dar um murro a um rapaz por me ter chamado Pelé». Ficou Pelé e ainda bem. Nelson Rodrigues, o grande cronista brasileiro, que escreveu as mais belas páginas sobre Pelé, dizia: «Edson Arantes do Nascimento – por extenso, Pelé!».

 

Outubro!

Outubro é o mês do aniversário de Pelé e é também o mês em que ele esteve em Lisboa, em 1962, para fazer talvez a melhor exibição da sua vida. Taça Intercontinental: o Santos vencera o Benfica, no Maracanã, por 3-2. A Luz abarrotou para ver uma linha avançada que soava como um chorinho: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Aos 17 minutos faz 1-0 a passe de Pepe; dez minutos depois finta cinco adversários e marca um golo soberbo; oferece o 3-0 a Coutinho no início da segunda parte; aos 64 minutos volta a fintar a fintar e a fintar antes de chutar, poderoso, para a baliza de Costa Pereira. O Santos chega ao 5-0; o Benfica ainda reduz para 2-5. O grande mestre Carlos Pinhão escreveu sobre essa noite fantasmagórica da Luz: «Tirem Pelé e venham, então, jogar com o Benfica. Pelé é único. E chamar-lhe monstro, rei, santo, que sabemos nós desta desenfreada ânsia de o exaltar, é sempre tarefa inacabada. Pelé é Pelé. Não se caracteriza, não se retrata, não se define».

Em 1962, já Pelé era muitíssimo Pelé. Muitos anos haviam passado sobre o dia 7 de setembro de 1956. Jogo inesquecível! Aos 20 minutos da segunda parte, o Santos vencia o Corinthians de Santo André por 5-0. Então, Lula, treinador do Santos, não teve dúvidas: tirou Del Vechio e fez entrar o menino que não completara ainda dezasseis anos. Subiu ao relvado com a camisola n.º 13. Quinze minutos decorridos, Raimundinho deu a bola para Tite e este passou a Pelé, à entrada da grande área. Pelé deu um toque ligeiro, fez passar a bola por sobre a cabeça de um defesa e, apertado por outro, chutou por entre as pernas do guarda-redes adversário: o sexto golo de um encontro que o Santos venceria por 7-1. Zaluar ficou para a história: mais tarde faria mesmo um cartão de visita – o guarda-redes que sofreu o primeiro golo de Pelé.

 

Nelson

Já falei de Nelson Rodrigues. O que ele escreveu sobre Edson Arantes do Nascimento é homérico. Por exemplo: «Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: – dezassete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverosímeis. Vejam: – dezassete anos! Na idade em que o pobre ser humano anda quebrando vidraça, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé torna-se campeão do mundo. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: – é um génio indubitável. Digo e repito: – génio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: – ‘Como vai, colega?’».

Em 1958, com tão só dezassete anos, Edson (que era Edison) foi campeão do mundo. Depois repetiu-se: 1962 e 1970, naquela seleção do Brasil que tinha cinco n.ºs 10 – Gerson, Rivelino, Tostão, Jairzinho e Pelé.

Outubro é mês de Pelé. 21 ou 23, vai somando anos. Despede-se agora dos 75 e deixa para trás, tão para trás, os momentos inesquecíveis da sua infância fadada. Em outubro de 1959, já fora campeão do mundo. Apesar disso, os adeptos do Juventus de São Paulo vaiavam-no como se estivem mais possessos que a pequena Linda Blair n’O Exorcista de William Friedkin. Pelé foi engolindo os insultos. Depois, fartou-se. Recebeu uma bola inofensiva e transformou-a em golo. Correu para o público, armou o salto e deu um soco no ar. Um gesto de revolta, portanto. Passou a comemorar todos os seus golos assim. Quem conta o episódio é José Castello, no seu livro Pelé – Os Dez Corações do Rei.

A imagem ficou para sempre na como um quadro na parede.