A esquerda, a social-democrata, a socialista, a comunista e a bloquista, tem imensas falhas de memória quando isso lhe convém, e é muito ingrata. O ódio a Cavaco Silva é não só uma demonstração de irracionalidade como um exemplo flagrante de alguém que morde a mão a quem lhe dá de comer.
Tanto como primeiro-ministro como enquanto Presidente da República, Cavaco Silva deu inúmeras provas de que é um grande homem de esquerda. Ninguém como ele fez tantos investimentos públicos, ninguém como ele apostou tudo no crescimento económico e no aumento do emprego à custa dos milhões investidos em betão público. A sua fé na economia do Estado foi tão grande que até atirou para o caixote do lixo com a formação profissional. Se os milhões dos fundos europeus foram gastos em tudo o que era obra pública, feita e inaugurada a rigor, os milhões destinados à formação de mão-de-obra, uma opção que deu excelentes resultados noutros países europeus, serviram essencialmente para enriquecer uns tantos nos anos áureos do cavaquismo.
Mas não foi apenas a aposta na economia do Estado e nos investimentos públicos que marcaram as políticas deste homem de esquerda que a esquerda decidiu renegar e odiar de forma cega e irracional. Basta lembrar o brutal aumento de ordenados dos funcionários públicos, sem exceção, que o segundo governo de Cavaco Silva aprovou com pompa e circunstância. Homem do Estado, com o Estado a correr-lhe nas veias desde o momento em que saiu da faculdade, Cavaco Silva devia, agora que saiu da vida política ativa, ser homenageado por todos os sindicatos da função pública, da UGT e da CGTP, e pelos partidos que mais pugnam pelos privilégios de quem trabalha para o Estado.
Como a memória da esquerda é curta quando lhe convém alimentar um ódio irracional a um homem do povo que subiu na vida a pulso, importa aqui e agora lembrar o que aconteceu em Portugal em 1989 pela voz autorizada de um homem que foi ministro das Finanças de Cavaco Silva e acompanhou de perto o seu pensamento e as suas políticas. Num texto que foi incluído no livro “Cidadania, uma Visão para Portugal”, Cadilhe disse preto no branco: “Os trabalhos preparatórios do novo sistema retributivo da função pública correram sob a responsabilidade direta de Cavaco Silva, como ele próprio afirma na sua ‘Autobiografia Política’.” Cadilhe recordou já há bastantes anos que, no Conselho de Ministros de 1989 em que foi aprovado o novo sistema, apresentou as suas preocupações e procurou sujeitar a respetiva aplicação à redução de outras despesas e à melhoria da produtividade.
Contudo, o governo não deu a devida continuidade a estas restrições e isso teve efeitos avassaladores nas despesas correntes do Estado. Miguel Cadilhe sublinhou que tentou contrabalançar o novo sistema, nomeadamente, com a introdução de auditorias externas aos serviços, mas Cavaco desistiria delas, confessou Cadilhe, “nem sei bem porquê”. O ex-ministro concluiu ainda: “Admito que a resistência dos burocratas se tenha aliado às conveniências eleitorais e antirreformistas dos políticos.” Basicamente, Miguel Cadilhe disse, e muito bem, que Cavaco Silva foi o pai do monstro que ainda hoje atormenta a despesa pública, que provoca défices excessivos, que aumenta a dívida pública, obriga a enormes aumentos de impostos, abafa a economia, as empresas, afasta o investimento privado e provoca o desemprego.
Por estas e por outras, não se percebe o ódio da esquerda a Cavaco Silva. Se fossem minimamente justos, deviam estar eternamente gratos ao ex-Presidente da República e beijavam o chão que ele pisava. Não é crível que o ódio dos sindicatos e da esquerda em geral ao homem que ganhou duas eleições legislativas com maioria absoluta e foi eleito duas vezes à primeira volta Presidente da República se deva ao facto de Cavaco Silva, enquanto primeiro-ministro, ter retirado um ano a tolerância de ponto no Carnaval aos funcionários públicos. Mas se as políticas do ex-Presidente nos dez anos que esteve à frente do governo são um hino à esquerda, importa registar também o apoio inequívoco aos governos de esquerda nos dez anos como chefe do Estado.
Importa de novo relembrar a uma esquerda de memória convenientemente curta a cooperação estratégica com o primeiro governo de maioria absoluta de José Sócrates. Importa relembrar o seu apoio a todos os desmandos do governo socialista, incluindo aos projetos megalómanos de obras públicas. Importa lembrar o seu apoio entusiástico ao aumento de 2,9% dos funcionários públicos em 2009, quando o mundo já estava em crise e Portugal caminhava rapidamente para o abismo.
E importa também relembrar o apoio ao segundo governo minoritário de Sócrates em 2009, quando se exigia mais do que nunca estabilidade e bom senso.
E importa não esquecer que Cavaco Silva não demitiu o executivo socrático quando foi traído nos estatutos dos Açores. E no seu último grande ato como Presidente, Cavaco Silva deu posse ao governo das esquerdas derrotadas nas eleições de Outubro. Por estas e por todas as outras, a esquerda, se fosse justa, estava eternamente grata a Cavaco Silva. O seu ódio é irracional. Talvez a única explicação seja o caviar.
É que a esquerda, especialmente a socialista e a do Bloco de Esquerda, odeia homens e mulheres que vieram do povo, de Boliqueime, e subiram a pulso na vida. Odeiam homens e mulheres, como Cavaco e Maria, que não frequentam os serões da capital, não tocam piano e não falam francês. Mas, acima de tudo, a esquerda, toda ela, sem exceção, é ingrata. Muito ingrata para um homem de esquerda que defendeu sempre a esquerda em S. Bento e em Belém. De alma e coração.
Jornalista