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José de Guimarães. Uma antologia em jeito de exorcismo
José Guimarães não expõe em Lisboa desde 2008

José de Guimarães. Uma antologia em jeito de exorcismo

José Guimarães não expõe em Lisboa desde 2008 DR Raquel Carrilho 26/01/2016 15:30

Arranca amanhã na Galeria Millenium  “Esconjurações”, o regresso de José de Guimarães às mostras em Lisboa, quase oito anos depois da última

Uma porta singela. Entre portões mais majestosos e hotéis acabados de restaurar ninguém dá por aquele número 11, ali no sopé do castelo. Na campainha um minúsculo JG denuncia o proprietário daquele espaço. Seguem-se três salas interligadas onde não vemos peças de José de Guimarães, apenas artefactos africanos, parte da sua infindável coleção, e montra de uma ligação profundamente íntima com aquele continente. Indagamos, ainda que em silêncio, como será possível trabalhar ali. Que ateliê é este? Onde estão os cavaletes, os pincéis, as tintas, as mesas de trabalho?

“Descemos?”, pergunta-nos. Sim, claro. Escada de caracol em ferro, daquelas que nos fazem pensar que à mínima distração vamos parar ao hospital com uma perna partida. Obstáculo ultrapassado e finalmente descobrimos um espaço amplo, uns 500 m2, com janelas rasgadas a deixar a luz cegar. Peças acabadas, peças que nem chegaram a esse estatuto. Enfeites em plástico que mais parecem sugerir uma visita à Feira Popular. E, lá está, mais peças africanas. “É a minha fábrica”, diz-nos José de Guimarães. O operário desta fábrica aparece de preto dos pés à cabeça, como que para passar invisível por entre as cores fortes que sempre marcaram o seu trabalho. “Mas agora a minha fábrica está muito limpinha, normalmente não está assim”, esclarece.

Está “limpinha” porque os instrumentos necessários ao processo criativo estão momentaneamente arrumados, e uma grande parte das peças que aqui normalmente habitam já estão no espaço da Galeria Millenium (rua Augusta, 96), onde arranca amanhã, e fica patente até 20 de abril, “Esconjurações”. A mostra, dividida por três pisos, reúne obras do artista pertencentes à coleção Millennium bcp, entre as quais um alargado conjunto de tapeçarias de Portalegre de grandes dimensões, pertencentes à série Camoniana, e que, pela primeira vez, poderão ser vistas pelo público.

Em simultâneo com esta exposição, o artista que levou o nome emprestado à cidade onde nasceu, em 1939, lança dois livros, um em jeito de catálogo da exposição e com o mesmo nome; o outro com o título “P (de Pop, Pintura e Poster)”, criado sob a chancela da Documenta, é um ensaio inédito sobre obras pouco conhecidas ou totalmente desconhecidas do artista, realizadas entre 1963 e 1976, e que ilustram um dos epítetos de José de Guimarães: o artista pop.

Desde 2008, ano em que inaugurou a exposição “Brasil”, na Galeria Quadrado Azul, que José de Guimarães não fazia uma exposição em Lisboa, uma cidade que continua a ser sua, apesar de se dividir também por Paris, onde tem casa e um outro ateliê. “Mas não tirei um período sabático, durante estes quase oito anos fiz muita coisa”. Só não calhou expor em Lisboa. “Acho que, se possível temos de mostrar o nosso trabalho pelo mundo todo. E este período até foi muito importante porque foi um período em que pude investigar novas coisas, nomeadamente dois temas que se revelaram importantes: os Negreiros e Guaranis e, mais recentemente, o Ritual da Serpente”.

Se a temática dos Negreiros e Guaranis surgiu para José de Guimarães durante uma viagem ao Brasil; o Ritual da Serpente teve a ver com a criação do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em 2012. “Li muito sobre o filósofo Aby Warburg, para quem a cultura é um puzzle, e que acreditava num espírito de mélange entre as épocas. Uma obra pré-histórica pode estar ao lado de uma obra contemporânea. Foi depois destes estudos que nasceu a temática do Ritual da Serpente, que é um ritual dos índios Hopi, do Arizona, que este Aby Warburg conheceu e sobre o qual escreveu. São todos estes fenómenos antropológicos que dominaram os últimos anos da minha vida e que me têm levado a fazer coisas insólitas”.

Estes dois períodos estão também representados nesta exposição, nos outros dois pisos da Galeria Millenium. “Há lá coisas muito insólitas destas fases de que falei”, atira. A coleção de obras da autoria de José de Guimarães que o banco possui serviu então de ponto de partida para estas “Esconjurações”. “Mas depois juntei um conjunto de outras obras, umas mais antigas e outras mais recentes, que não fazem parte da coleção Millenium. Curiosamente, quase todas as obras que não pertencem à coleção do banco e que constam da exposição são objetos: relicários e caixas, dominadas por luzes neon e LEDs que lhes conferem um lado feérico. No terceiro e último piso há uma grande vitrina com relicários Kota e Fang, do Gabão, que são figuras protectoras de relíquias e que normalmente são colocadas em cima das caixas ou cestos de vime onde estão as relíquias”.

De forma transversal, as peças que José de Guimarães trouxe para esta exposição - que não é uma retrospetiva mas uma antologia, de 1973 até aos dias de hoje - “têm todas muito a ver com o culto funerário que é dominante nesta exposição. E esta mostra é também uma homenagem ao Aby Warburg, que muitos consideraram demente”. Incompreensão, de resto, não é palavra estranha para José de Guimarães. Mas, aos 76 anos, também já não lhe tira o sono. “Estas coisas que eu produzo não são muito cómodas visualmente. Nem para ter em casa. Normalmente não combinam com o sofá da sala. As obras que produzo são obras sem finalidade. Valem pela obra em si.”

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